Autor: José Eduardo de Resende Chaves Júnior (*)
O trabalho contemporâneo vem sofrendo uma transformação topológica, uma torção, não uma ruptura. Do trabalho “disciplinar”, da fábrica (Foucault), deslizamos para o trabalho da “sociedade do controle” (Deleuze).
Ingressamos na era da chamada gig economy, na qual o trabalho se torna temporário, precário, um bico. É a intensa redução da porosidade do trabalho, pelo aproveitamento de suas sobras, do tempo “morto” do trabalhador, que normalmente estaria desperdiçado ou destinado ao lazer, repouso ou mesmo a sua qualificação.
Fala-se em economia colaborativa, mas nos parece que é necessário evoluir um pouco mais, para distinguir-se entre a mera economia do compartilhamento e o autêntico consumo colaborativo (Erving).
Emerge a crise de valor decorrente da viragem estratégica da produção material para a produção imaterial. O exponencial impulso da reprodutibilidade dos bens materiais, acelerado pelos meios telemáticos e informáticos, aumenta a oferta de maneira desproporcional à demanda, reduz custos e induz, por consequência, um decréscimo ascendente nos ganhos reais dos produtos materiais — se e quando considerados fora de seu valor de uso social e cultural.
Some-se a isso, a alta conectividade tecnológica e seus impactos sobre os vários campos do conhecimento humano, sobretudo na sociologia, na política e na economia, que acaba por transformar a divisão entre as instâncias da produção e consumo, que, então, se confundem.
O fordismo descobriu que o trabalhador poderia ser também consumidor, mas nessas instâncias, ele mantinha sua subjetividade separada em compartimentos estanques. A categoria profissional não se misturava com sua vida privada.
Com a disrupção tecnológica, contudo, já não há mais distinção entre o prestador do serviço e o consumidor. A “multidão” é produtora e consumidora ao mesmo tempo e em tempo real.
Percebe-se a progressiva substituição das empresas de intermediação de mão de obra por plataformas virtuais, que conectam diretamente o tomador final com o prestador pessoal do serviço, que passa também a ser o detentor das ferramentas de trabalho — mas não propriamente dos meios de produção. Entra em cena o trabalho da multidão, não mais da categoria profissional especializada, o trabalho do “comum”.
O trabalho da “multidão”
O trabalho do “comum” (Negri & Hardt) não é o trabalho estatalista, senão o dos substratos imanentes da comunidade. Não é também um trabalho comunitário, assistencialista. Não é um trabalho público, nem comunitário, mas também não é um trabalho coletivo, entendido coletivo como restrito à esfera da autonomia privada coletiva tradicional, isto é, o trabalho de uma corporação profissional específica, do sindicalismo ‘por categoria’.
O trabalho “comum” é o trabalho da “multidão” (Espinosa), isto é, o trabalho que não pode ser reduzido a um tipo específico de categoria, e que também não pressupõe a existência de uma única classe operária produtiva.
Não é o trabalho coletivo da categoria, mas também não é o trabalho individual, mas o trabalho indiviso. Não é o trabalho isolado, da produtividade medida isoladamente, nem coletivamente medida em horas de trabalho. O trabalho “comum” é o trabalho contínuo, de fluxos contínuos, entrelaçados, misturados, enfim, fluxos reticulares de singularidades produtivas.
A gestão econômica do “comum” não é garantida pelo mercado ou pela empresa, nem pelo Estado ou pelo sindicato. Nem é uma articulação mecânica, predeterminada pela ‘caixa informática’ — hardware e software (Jolivet).
O “comum” produtivo sucede de uma forma cooperativa, que mais do que simplesmente informático é, sobretudo, informal e fluido. É uma concorrência (de vontades) imbricada com a cooperação.
O trabalho homogêneo, repetitivo, afastado da vida, tende à estabilização da atividade produtiva, à produção sedentária, fechada dentro da fábrica fordista.
No processo de conversão do trabalho no “comum”, esse novo trabalho misturado com a vida, esse trabalho híbrido, biopolítico, pressupõe uma organização produtiva desterritorializada, externa, uma produção nômade, que não se contém mais na fábrica.
Essa desconcentração produtiva incide no paradoxo de que o essencial do valor econômico provem da captação das externalidades da rede, ou seja, dos efeitos colaterais não previstos pelo mercado e até mesmo à margem da competitividade (Moulier-Boutang).
O conhecimento e o trabalho imaterial não são incompatíveis com uma ideia de valor-trabalho, isto é, parece possível compaginar a ideia de que o trabalho não-material e coletivo, a partir de um background de intercâmbio de conhecimentos, afetos, informação e comunicação, é que se constitui, na fase atual da produção econômica, no principal componente de valor capitalista.
O Direito do Trabalho Pós-Material compreende a ideia de que trabalho e conhecimento não são categorias antagônicas, nem necessariamente diferentes.
Estamos em transição, contudo, para um novo capitalismo, cognitivo e tecnológico, no qual a acumulação é cada vez mais baseada na captura do produto da cooperação social, como resultado do incremento da socialização da produção, principalmente pela atividade produzida por meio das redes sociais (Lucarelli & Fumagalli).
Nesse contexto, o capital apropria-se do “commons“, do conhecimento tácito e codificado da comunidade em rede e acaba por capturar as energias de emancipação que eclodem desse novo meio de colaboração produtiva.
Do trânsito da sociedade “disciplinar” para a do “controle”
Diante dessa profunda alteração da realidade produtiva, há uma impactante afetação da teoria clássica do Direito do Trabalho, para além das respostas que mercantilizam o trabalho, seja pela via indireta da (i) conversão dos direitos sociais em mercadoria, reduzidos a ‘negócios’ por meio da negociação coletiva, sem o pressuposto da reforma sindical, seja pela (ii) direta mercantilização do trabalho humano, pela instituição da plena e irrestrita marchandage ou terceirização.
Deleuze de maneira bem perspicaz, quase premonitória, já em 1990, havia identificado o início do deslize, da “sociedade da disciplina” para a “sociedade do controle”.
Essa nova sociedade é digital, desloca-se dos átomos para os bits. Não se trata mais de identidades, assinaturas, senão de senhas, cifras e códigos. São amostras e bancos de dados. Os indivíduos tornam-se divisíveis, “dividuais”, passíveis de replicação virtual. Não são necessárias palavras de ordem, seja na organização do trabalho, seja na organização da resistência sindical.
Substitui-se a fábrica pela empresa, transforma-se a solidariedade coletiva em concorrência, reconstroem-se as subjetividades dos trabalhadores, até mesmo na esfera do poder diretivo.
Estatui-se o capitalismo da “sobre–produção”, a fabricação é deslocada para os países periféricos; não se compram mais matérias primas e se vendem produtos acabados. Inverte-se a lógica: compram-se produtos e vendem-se serviços.
O poder empresarial expressa-se mais pela tomada do poder acionário, do que pela formação da disciplina do trabalho; mais por fixação de cotações, do que por redução de custos da produção. O poder empregatício descola-se da disciplina corporal e do tempo de trabalho, para o controle da alma e do marketing.
Ao controle já não interessa o confinamento dentro da fábrica, dentro de uma jornada fixa, dentro de uma disciplina linear, de um vínculo jurídico estável, mas, sim, de um vínculo etéreo, nas nuvens, pós-contratualista, pós-material. Emerge o contrato realidade-virtual.
No controle, o trabalho com vínculos precários pode ser organizado facilmente, desde que esses vínculos sejam contínuos, plugados, on line, virtuais. Estabelecem-se conexões heterogêneas, sem identidade, similaridade ou homogeneidade de categoria, esvaziando o artigo 511, § 4º da CLT. Singularidades produtivas, que se opõem às individualidades e coletividades. Mais relevante que o contexto social, passa ser o hipertexto cultural.
É a multidão e não mais a categoria que é agenciada pela neo-pós-produção, que nem faz questão de distinguir entre o operário e o consumidor.
O Contrato Realidade-virtual
A troika da União Europeia propõe a flexi–seguridade, mas não se trata mais disso, senão de flexi-liberdade, a liberdade dúctil, a autonomia enredada, antes que reticular — parassubordinada.
O trabalho zero hora inglês é o trabalho sem fim. É a hiperconexão ao trabalho. Zero que toca o infinito. O controle por meio da plataforma eletrônica é aferido milimetricamente, mas a exploração é desmedida.
O contrato-realidade de trabalho (De La Cueva), passa a ser regido pelo código fonte, code is law (Lessig). O decisivo é realidade-virtual do algoritmo, não o acordo abstrato de vontades flexi-libertadas.
O contrato realidade-virtual não cogita mais da disciplina. A “multidão” produtora é indisciplinada, mas pode ser direcionada, induzida, controlada.
Sem triunfalismo, muito menos obscurantismo tecnológicos. Nem apocalíptico, nem integrado. O direito é limite, limite do poder; do poder político e do poder econômico. O desafio do Direito do Trabalho, neste momento, sem dúvida, é limitar juridicamente o poder tecnológico do empregador-nuvem.
Autor: José Eduardo de Resende Chaves Júnior é desembargador no TRT-MG, doutor em Direitos Fundamentais e professor adjunto na pós-graduação IEC-PUCMINAS.