João José Leal
BRUSQUEVem aí o referendo, instrumento políticojurídico para que o eleitor decida sobre uma questão relacionada diretamente com a violência em nosso país. Embora existam outros temas importantes que poderiam ser objeto de consulta popular, considero o desarmamento uma questão relevante para conquistarmos um pouco mais de paz social.
Penso que o tema está sendo discutido com relativa intensidade. Além da propaganda oficial, os meios de comunicação social estão abrindo espaço para informações e debates sobre o assunto. E isto é bom. Creio que é preciso refletir seriamente sobre o assunto. Vejo que os ânimos começam a ficar exaltados. E isto não é bom.
Para se posicionar sobre o assunto, é necessário espírito desarmado. Somente assim, será possível, no dia 23 deste mês, dizer sim ou não ao desarmamento com a necessária consciência de cidadão interessado em participar da vida social de nosso país. É com o espírito desarmado que devemos ir às urnas, para referendar ou rejeitar uma norma, já aprovada pelo Poder Legislativo (artigo 23, da Lei 10.823/2003, Estatuto do Desarmamento), que proíbe o comércio de armas de fogo e munição em todo o país.
Os que são contra o desarmamento afirmam que a proibição é inconstitucional. Num Estado democrático, todo o cidadão teria o direito subjetivo de possuir uma arma de fogo. Esta seria uma liberdade individual, assegurada pela Constituição, que a lei ordinária não poderia suprimir. É um argumento que, juridicamente, não convence. Não existe nenhuma garantia constitucional à propriedade e posse de uma arma.
Assim, e apenas como exemplo, se a lei pode proibir a posse de pássaros e animais da fauna nativa, para assegurar um ambiente ecologicamente equilibrado; de substância entorpecente ou até de psicotrópico sem a necessária receita, pelo perigo à saúde pública; pode, também, de forma legítima, proibir a propriedade particular de armas de fogo. O potencial grau de lesividade individual e coletiva que as mesmas representam legitimaria a norma, em consonância com o princípio da razoabilidade. Com fundamento no valor maior da segurança coletiva, não me parece juridicamente desrrazoáve, nem inconstitucional, tal proibição.
Afinal, é preciso inverter o foco de nossa reflexão e ver a arma de fogo como ela é por sua natureza: um instrumento fabricado para matar e não para se defender. Com ela nas mãos, não perdoamos ofensas e a sombria e intolerante vingança encontra-se livre para semear a morte diante do mais trivial desaforo. Inclusive para o suicídio, quando a usamos para causar a nossa própria morte.
Eticamente, a norma proibitiva – que depende do nosso sim de cidadão comprometido com a paz social _e torna legítima na medida em que estejamos seriamente engajados em construir uma sociedade fundada em valores como a dignidade da pessoa humana, a fraternidade e a solidariedade entre os seres humanos. Se é este o nosso compromisso ético, parece difícil defender a idéia de que as pessoas precisam ter armas, que são instrumentos de agressão e de matança.
A questão, no entanto, deve ser enfrentada e decidida, principalmente, a partir de argumentos de natureza pragmática. E aí os argumentos em favor do desarmamento parecem prevalecer por serem mais razoáveis.
Na verdade, o que todos queremos é menos agressão, menos violência, menos maldade e mais tranqüilidade, mais segurança púbica e mais paz social. E isto, com certeza, não vamos conquistar com a posse de um revólver. A segurança, que se pretende ter com a posse de uma arma de fogo escondida em algum lugar da casa, é totalmente ilusória.
A experiência tem demonstrado que a existência de arma no interior das residências, não é garantia de proteção ou de segurança. Ao contrário, tem sido fator de maior violência e de maior brutalidade. Há estudos demonstrando que, nas hipóteses de assaltos, roubos e agressões, a tentativa de usar uma arma aumenta consideravelmente a probabilidade de morte ou grave lesão de quem pretende se defender. Pesquisa realizada em 1999 demonstrou que a possibilidade de morrer num assalto à mão armada é 180 vezes maior, quando há tentativa de reagir com arma de fogo. Na verdade, não estamos acostumados e nem sabemos como manejar uma arma de fogo. Ao contrário do assaltante, que ainda conta com o fator surpresa para agredir e tomar a arma da vítima. No manejo de arma de fogo, o homem de bem é amador e o bandido o profissional.
A ilusão da defesa ou da proteção se torna mais evidente quando se sabe que uma grande parte das armas utilizadas pelos bandidos é fruto de furto ou de roubo em residências ou de incautos ou iludidos portadores de armas. Dados estatísticos de 1998, apontam para o fato estarrecedor de que, das 77 mil armas apreendidas no Estado de São Paulo, 71.400 haviam sido furtadas. Isto demonstra que, ter uma arma em casa, mais que um instrumento de defesa, pode ser uma contribuição ao crime do outro. Na verdade, bandido não compra arma: rouba do cidadão de bem, que se enrola na utopia da proteção ilusória de uma arma (muitas vezes sem munição!) escondida no fundo de um guarda roupa ou de uma gaveta do armário de cabeceira.
É preciso finalizar. E nada melhor do que lembrar o emblemático exemplo de Gandhi _o extraordinário líder indiano partidário da filosofia da não-violência_ que conseguiu derrotar os fusis e canhões do imperialismo britânico, sem ter usado uma arma sequer. Salvo um cajado em que se apoiava para caminhar pelas estradas de seu país, numa comovente e motivadora peregrinação e pregação pela liberdade, fraternidade e pela paz entre os seres humanos. E, sem um tiro sequer, foi o maior artífice da independência de seu país.
Portanto, dizer sim ao desarmamento é dizer não à violência e à ilusão da proteção de uma arma que, dificilmente, poderá ser usada para defesa. Dizer sim ao desarmamento, é votar pela segurança coletiva e pela paz social.
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