Por Alexandre Pacheco Martins e Guilherme Silveira Braga
Entre as incoerências rotineiras que permeiam as relações entre a esfera legal, a administração pública e o contexto social brasileiro, a discussão sobre o aborto ganhou mais evidência nos últimos tempos. Recentemente, ao considerar inconstitucional o aborto até as 12 semanas de gestação, mesmo em casos nos quais a mulher não tenha condições psicológicas para ir em frente com a gravidez, o Senado vetou a proposta de descriminalização dessa forma de interrupção precoce da gestação. Além disso, o procedimento, de acordo com a nova redação, só pode ser feito por médicos, desconsiderando o fato de o Brasil não ter o suficiente desses profissionais e precisar, inclusive, de um Programa Federal que traga mais deles de outros países.
Os parlamentares se baseiam no entendimento da própria Lei, que é ambígua, pois, considera o sujeito detentor de direitos após seu nascimento e, ao mesmo tempo, também garante ao nascituro, embrião fecundado e não nascido, alguns direitos. Interpreta-se que o nascituro é, em verdade, possuidor de uma expectativa, ou seja, se vier a nascer poderá usufruir de direitos conquistados mesmo antes do nascimento. No entanto, se não nascer com vida, aquele direito outrora resguardado será perdido. É o caso do nascituro cujo pai falece durante a gravidez. O feto não tem direito à herança, porém, nascendo com vida poderá usufruir dos bens deixados pelo genitor.
O aborto é a quinta maior causa de mortalidade materna no Brasil, de acordo com o Conselho Federal de Medicina. Em um país onde não há políticas públicas assertivas em relação à educação sexual, a ações de popularização dos métodos contraceptivos e ao combate à depreciação feminina, é contrassenso restringir a liberdade individual das mulheres. Além da falta de condições psicológicas, nem todas têm acesso a hospitais e médicos. Isso deixa grande parte delas à margem da sociedade e, muitas vezes, é uma sentença de morte.
O empecilho mais evidente é a questão religiosa. A Bancada Evangélica ainda tenta, por meio do Estatuto do Nascituro, fazer dessa pratica um crime hediondo em sua totalidade, inclusive das exceções previstas em lei. No entanto, o que realmente parece ser o problema é a falta de informação. Afinal de contas, a retirada do feto é apenas a última etapa de um processo. Na prática, mulheres de todas as religiões fazerm o aborto no Brasil todo ano. Isso indica que a religião, por si só, não impede a pratica, apenas potencializa o preconceito com quem aborta.
No final de 2012, o aborto foi legalizado no Uruguai. Nos primeiros seis meses, nenhuma mulher morreu em decorrência do procedimento. A maior parte dos países desenvolvidos têm o aborto legalizado em seus códigos, até a décima segunda semana de gestação. Ao analisar a situação pré-eleitoral já citada e o conhecido preconceito religioso, a conclusão é de que o Brasil está muito longe de legalizar a prática.
Deve-se levar em consideração também o fato de que o próprio procedimento legislativo, moroso e ineficaz, contribui ainda mais para dificultar a efetiva legalização do aborto. Por isso, faz mais sentido, num primeiro momento, pensar na descriminalização. Isso demandaria apenas a revogação do artigo 124 e seguintes, visando a não penalização da prática, desde que essa seja feita com o consentimento da gestante.
Uma verdadeira legalização do ato demandaria uma série de regramentos em direção à criação de políticas públicas para que essa mulher sequer precise fazer o aborto, porém se entender necessário, que seja feito com toda segurança e estrutura médica e psicológica, antes e após a interrupção. Sendo assim, a descriminalização deve ser olhada como a primeira medida para uma mudança legal e de atitude que caminhe na mesma direção dos países mais desenvolvidos e, principalmente, que garanta a autonomia e autodeterminação das mulheres.
Alexandre Pacheco Martins é especialista em direito criminal e sócios do Braga e Martins Advogados.
Guilherme Silveira Braga é especialista em direito criminal e sócios do Braga e Martins Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 3 de outubro de 2013