Ivan Antonio Barbosa – 28/10/2001
I – Introdução
Consulta-nos o Exmo Sr. Prefeito, sobre a possibilidade de negação de vigência e eficácia de Lei Municipal, pelo Poder Executivo considerada por este como inconstitucional e ilegal.
II – Premissas necessárias.
Se inconstitucional e ilegal o ato Legislativo, não pode o Chefe do Poder Executivo dar-lhe cumprimento, pois atentaria contra a Lei Orgânica Municipal, Constituição Estadual e Constituição Federal. Compete a todos os Poderes o exame da Constitucionalidade das Leis, zelando pela Supremacia da Carta Magna.
Conforme entendimentos doutrinário e jurisprudencial, a Administração Pública pode negar validade ou eficácia à Lei que contrariar a Constituição. Se a Lei já nasce contrariando o preceito maior, que é a Constituição Federal, não há como exigir o seu cumprimento.
A jurisprudência, tem manifestado-se no sentido de que o Poder Executivo não é obrigado a acatar normas legislativas contrárias à Constituição ou a Leis hierarquicamente superiores, até que o Poder Judiciário, provocado decida a respeito. Tal posicionamento é pacífico no Supremo Tribunal Federal (STF, in RTJ 2/386, 3/760; RDA 59/339, 76/51, 76/308, 97/116; RF 196/59; RT 354/139, 354/153, 358/130, 594/218; BDM 11/600).
Na doutrina pátria abonam ainda esta tese: Caio Tácito, “Anulação de leis inconstitucionais”; Francisco Campos, “Direito Constitucional”; Carlos Medeiros Silva, “Leis Inconstitucionais”, Ronaldo Poletti, “Controle da Constitucionalidade das Leis”, Dalmo de Abreu Dallari, “Lei Municipal Inconstitucional”, entre outros.
Os Estados de Direito, como o nosso, são dominados pelo princípio da legalidade. Isto significa que a Administração e os administrados só se subordinam à vontade da lei, mas a lei corretamente elaborada. Ora, as leis inconstitucionais não são normas jurídicas atendíveis, pela evidente razão de que colidem com o mandamento de uma lei superior, que é a Constituição. Entre o mandamento da lei ordinária e o da Constituição deve ser atendido o desta, e não o daquela, que lhe é subordinada. Quem descumpre lei inconstitucional não comete ilegalidade, porque está cumprindo a Constituição.
Ocorre, porém, que como os atos públicos trazem em si a presunção de “legitimidade”, não cabe ao particular negar-lhes validade por entendimento próprio, sem que antes obtenha do judiciário a declaração de invalidade. Com a Administração Pública, todavia, a situação é diversa, porque a presunção de legitimidade milita a favor dos atos de todos os agentes do Poder Público.
Tomando os ensinamentos do profº Hely Lopes Meirelles, temos:
“Nivelados no plano governamental, o Executivo e o Legislativo praticam atos de igual categoria e com idêntica presunção de legitimidade. Se assim é, não se há de negar ao chefe do Executivo a faculdade de recursar-se a cumprir ato legislativo inconstitucional, desde que por ato administrativo formal e expresso (decreto, portaria, despacho, etc) declare a sua recusa e aponte a inconstitucionalidade de que se reveste.
Nessa atitude do Executivo não há rebeldia à lei, mas obediência à Constituição da República, que é a lei suprema. O essencial é que o prefeito, ao negar cumprimento a uma lei inconstitucional, justifique o seu ato e ingresse no Judiciário, se for titular de ação, para obter o pronuncimento de inconstitucionalidade pelo Poder que tem competência para fazê-lo” (in, Direito Municipal Brasileiro, 10ª edição, editora Malheiros, 1998).
Mais aguda a decisão, em Sessão Plena do Supremo Tribunal Federal, na Representação nº 512, do Rio Grande do Norte, Acórdãos de 07 de dezembro de 1962, Relator Ministro Pedro Chaves. A questão dizia respeito à inconstitucionalidade de Decreto do Poder Executivo que suspendera a execução de lei inconstitucional. Com isso, o Governador teria invadido a atribuição de competência do Senado Federal, ferindo o princípio da independência e harmonia dos poderes. Fazem parte do voto do eminente Relator os seguintes trechos:
“Entre nós, o órgão controlador é o Poder Judiciário, em cuja cúpula se encontra o Supremo Tribunal Federal. Entretanto, a atividade peculiar do Poder Judiciário não lhe confere a privatividade de zelar pela constitucionalidade, observar a Constituição e as leis e de nelas pautar a sua atuação, pois o dever de acatamento às diretrizes constitucionais é de todos os Poderes do Estado.
O que ocorre é que o Poder Judiciário é atribuída essa atividade peculiar de custódia, que não exclui a dos outros ramos do Poder, mas que a ele só pertence desempenhar em última instância, dizendo a palavra final.
Já deixei assentado como princípio que o dever de zelar pela constitucionalidade das leis é imposto pela Constituição a todos os Poderes e não constitui obrigação exclusiva do Poder Judiciário. Daí decorre, a meu ver, que nenhum dos Poderes se pode impor a obrigação de aplicar leis inconstitucionais, mesmo antes de haver o Senado suspendido sua execução, por força de decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Foi o que ocorreu na espécie. O Governador do Estado do Rio Grande do Norte, pelo Decreto nº 3.086, de 06 de fevereiro de 1961, suspendeu a execução das leis publicadas no período de 14 de novembro de 1960, até 31 de janeiro de 1961, atendendo a que, conforme comunicação que lhe fora feita pelo presidente da Assembléia Legislativa de que a partir de 10 de novembro não mais funcionara o órgão legislativo do Estado, até reunião sob convocação de leis e sim simples suspensão de sua execução, e, como corolário necessário, suspensão dos atos delas decorrentes.
Ora, essa medida decretada pelo Poder Executivo, alertado pelo presidente da Assembléia Legislativa não transpassa seu dever de zelar pela constitucionalidade das leis, nem ofende ao texto do art. 64, da Constituição, pois é simples medida preliminar, que nem subtrai ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal a competência para declarar a inconstitucionalidade, nem roubou ao Senado Federal a atividade complementar de ordenar a suspensão da executoriedade, em caráter definitivo. Esse direito deve suspender a execução de leis inconstitucionais, para exame; não tem sido desconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, como se vê do julgamento do Recurso de Mandado de Segurança nº 5.860, de que foi relator o eminente Sr. Ministro Vilas-Boas, invocando como presidente em memorial”( in, RDA 76/308). (grifos nosso)
O Ministro Luís Gallotti sustentou no Supremo Tribunal Federal (STF), com apoio unânime de seus pares, que “ os Tribunais só opinam sobre inconstitucionalidade das leis por ocasião de aplicá-las aos casos concretos; cada Poder, assim, tem que contar consigo mesmo para dirimir as questões relativas à sua competência; recusar, por conseguinte, ao Poder Legislativo ou ao Executivo a faculdade de interpretar a Constituição, e em virtude de sua interpretação tomar decisões, seria instalar nos dois grandes motores da vida política do País ou do Estado o princípio da inércia e da irresponsabilidade, paralisando o seu funcionamento por um sistema de frenação e obstrução permanentes”. E conclui que “esses Poderes não são apenas autorizados, mas necessitados e compelidos a julgar por si mesmos da constitucionalidade de seus atos” (MS 7.243).
Decidindo a mesma controvérsia, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pelo voto do Desembargador Andrade Junqueira, deixou julgado que, “se o prefeito municipal entende que determinada lei é inconstitucional, cabe-lhe o direito de não executá-la; e aos particulares prejudicados com a não execução cabe o direito de pleitearem ao Judiciário a proteção que lhes adviria da lei não executada, desde que entendam que não padece ela do vício da inconstitucionalidade.
Não compete exclusivamente ao Judiciário, embora sujeito ao seu controle final, o exame da constitucionalidade das leis, mas sim a todos os Poderes da República. Quando a autoridade administrativa entende que a lei que lhe incumbe executar é inconstitucional, o remédio imediato está em não executá-la por esse motivo, declarando-o expressamente; o Executivo é órgão de execução incumbido de movimentar a máquina administrativa do Estado; cabe-lhe o direito de administrar com os olhos voltados para a Constituição e para as leis que não tenham o vício da inconstitucionalidade; assim como o magistrado deixa de aplicar a lei inconstitucional e o legislativo deixa de votar as proposições do Executivo que entenda serem ofensivas do texto constitucional, também o Executivo tem o direito e a obrigação de não dar cumprimento a leis que entenda estarem viciadas de inconstitucionalidade.” (in, RT 323/340). (grifos nosso)
O Poder Executivo é órgão de execução, incumbido de executar a máquina administrativa, cabe-lhe o direito de administrar com estrita observância as normas constitucionais. Salientando ainda que este entendimento resulta do compromisso que o chefe do Executivo, segundo o qual promete manter, defender e cumprir a Constituição, e ainda, citando as palavras do Sr. Ministro Cândido Mota: “o zelo pela intangibilidade do regime não é, por certo, privilégio do Judiciário, uma vez que todos os Poderes da República são guardas da Constituição”. (RTJ 2/121)
III – Conclusão.
Diante do exposto, não pode a Administração Pública dar cumprimento a lei considerada inconstitucional e ilegal, em detrimento do ordenamento jurídico vigente.
Mauá, 08 de março de 2001.
Ivan Antonio Barbosa é Especialista em Direito Constitucional pela Universidade São Francisco/SP e Instituto Brasileiro de Direito Constitucional – IBDC
Mestrando em Direito Constitucional pela UNIBAN/SP,
Advogado responsável pela Assessoria Técnica Legislativa do Município de Mauá/SP