A crise política tem drama e humor. A queda de Severino Cavalcanti, a prisão de Paulo Maluf, os deputados que renunciam a seus mandatos com a rapidez de ratos que escapam de um naufrágio, os discursos do presidente – tudo isso é engraçado e, para alguns observadores, promissor. O Brasil sairia da crise, argumenta-se, renovado, melhor.
O relatório da ONU com o Índice de Desenvolvimento Humano, IDH, divulgado na semana passada, ficou apenas um dia nos jornais. É ele, no entanto, e não a crise, que mostra o que o Brasil é, quem somos.
Mostra, fundamentalmente, que é impossível usar a expressão “quem somos”.
O que aparece no IDH é um país cindido. Grosso modo, ele se divide entre os que têm tudo e os que não têm nada: os 10% de brasileiros mais ricos ficam com nada menos de 47% da renda nacional. O dado é impressionante. Ele ajuda a entender algumas coisas.
Com ele se entende por que a desigualdade social não é considerada o problema maior do país: são os 10% mais ricos que estabelecem – no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, nos partidos políticos, nas instituições religiosas, na imprensa, na academia, nas universidades – a hierarquia dos problemas nacionais. Como eles são beneficiários da desigualdade, não lhes convém chamar a atenção para o assunto.
Entende-se o motivo, recorrente, da discussão sobre a economia brasileira se dar exclusivamente em torno do crescimento. Mesmo os críticos do “pensamento único” dizem que o país melhoraria se o crescimento fosse acelerado, via redução da taxa de juros. Os críticos mais acerbos do modelo em vigor, que se mantém desde o governo Sarney, defendem o calote da dívida externa. Com o crescimento da economia, contudo, os ganhadores seriam justamente os 10% de brasileiros mais ricos. Aos outros, sobrariam as migalhas. Quem melhor defendeu essa política foi o então ministro da Economia Delfim Netto, há trinta anos. Ele usou uma metáfora precisa: é preciso primeiro fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo. Em toda a história do Brasil, nunca chegou a hora da divisão. Agora, se perdeu até mesmo a perspectiva de dividi-lo.
Entende-se por que, numa outra estatística divulgada na semana que passou, 75% dos brasileiros são analfabetos funcionais: pessoas com dificuldades para ler. Aos 10% de privilegiados, interessa manter a massa na ignorância. A eles só resta o lixo televisivo.
Entende-se por que, de Gilberto Freyre ao Tropicalismo, se comemore a sensualidade, o colorido, a alegria, a cordialidade, o talento nacional para o carnaval, o futebol e o samba. O que os 10% comemoram, no final das contas, é o conformismo, a ausência de revolta, a passividade dos que sofrem com a desigualdade social.
Entende-se o culto da mobilidade social. Jogadores de futebol, manequins, cantores sertanejos e até o atual presidente da República (quando foi eleito) foram cantados em prosa e verso como exemplos das infinitas possibilidades do brasileiro. Basta trabalhar e ter talento, diz a cantilena, para que os indivíduos galguem degraus na pirâmide social. Os números do IDH provam que muros de ferro separam os 10% do resto. Na Europa, dizem os porta-vozes dos ricos, essa mobilidade não existe. Mas claro que não: há lá sociedades mais homogêneas e igualitárias.
Entende-se por que o banditismo e a criminalidade se espalham como pólvora. Quem não tem nada, não tem nada a perder – inclusive a liberdade e a vida.
Entende-se por que, a rigor, o Brasil não é uma nação. Dez por cento dos brasileiros proprietários têm acesso à cidadania. Os outros, em graus crescentes, não têm direito a moradia, saúde, educação.
A crise, o escândalo, é a desigualdade, e não a corrupção.
Tangencialmente, porém, a crise política tem a ver com a desigualdade. O fracasso e o esfacelamento do Partido dos Trabalhadores foram o dobre de finados da possibilidade de enfrentar a desigualdade social. Um partido autônomo, nascido de baixo para cima, independente dos 10%, poderia ter enfrentado os privilegiados, liderado a construção de uma sociedade, senão igualitária, ao menos integrada.
Essa oportunidade histórica se perdeu. Agora, o panorama que se abre à frente é ainda mais sombrio. Não há soluções à vista. Mas para que elas, as soluções, apareçam, convém saber qual é o problema. E o problema é a concentração de renda.
O Brasil não está sozinho. O Brasil sintetiza o mundo. Eis o que escreveram Antonio Góis e Luciana Constantino, na “Folha de S. Paulo”, sobre o relatório do IDH: “As 500 pessoas mais ricas do mundo têm renda total superior ao conjunto de 416 milhões de habitantes mais pobres do planeta. Isso equivale dizer que cada um desses 500 bilionários concentra em suas mãos uma renda igual à concentrada por 820 mil miseráveis.”
A relação é causal: há 500 bilionários no mundo porque existem 416 milhões de miseráveis. Para cada rico há 820 mil pobres. Este é o nosso mundo.
Mario Sergio Conti
Jornalista, artigo publicado no site nominimo.com.br