Desistência anterior à contestação não obriga a extinção do processo

Autores: Marcelo Mazzola e Humberto Dalla Bernardina de Pinho (*)

 

Logo em seu capítulo inaugural, o novo Código de Processo Civil, dentro da perspectiva de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, positivou inúmeros princípios da Carta Magna, como a inafastabilidade da jurisdição (artigo 3º), a duração razoável do processo (artigo 4º), a isonomia (artigo 7º), a dignidade da pessoa humana, a proporcionalidade, a razoabilidade, a publicidade, a eficiência (artigo 8º), além do contraditório (artigos 9º e 10), este último umbilicalmente ligado ao dever de fundamentação das decisões judiciais (artigos 11 e 489, § 1º).

Da mesma forma, alçou a boa-fé à norma fundamental do processo civil (artigo 5º), prevendo, ainda, que todos aqueles que participam da causa devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva (artigo 6º).

Nesse contexto, devemos, definitivamente, enxergar o processo civil com lentes constitucionais.

A questão que se coloca para reflexão é a seguinte: o pedido de desistência apresentado pelo autor antes do protocolo da contestação acarreta obrigatoriamente a extinção do processo?

Sobre o tema, o artigo artigo 485, § 4º, do novo CPC dispõe que “oferecida a contestação, o autor não poderá, sem o consentimento do réu, desistir da ação”, redação bem parecida com a do artigo 267, § 4º, do CPC/73 (“depois de decorrido o prazo para a resposta, o autor não poderá, sem o consentimento do réu, desistir da ação”).

Uma interpretação literal do dispositivo leva à conclusão de que, se o pedido de desistência for apresentado antes da resposta do réu, não há necessidade de consentimento desse último e o feito pode ser extinto sem resolução de mérito (artigo 485, VIII).

Antes de avançar, cabe pontuar que o Superior Tribunal de Justiça reconhece que, formalizada a citação, o autor “desistente” deve pagar honorários de sucumbência, à luz do princípio da causalidade (artigo 26 do CPC/73 e artigo 90 do novo CPC), mesmo que a contestação não tenha sido apresentada[1] e, em alguns casos, antes da própria fluência do prazo defensivo.[2]

Além disso, no caso de abandono da causa pelo autor, o STJ, sob a égide do CPC/73, editou o Enunciado 240 de sua Súmula (“A extinção do processo, por abandono da causa pelo autor, depende de requerimento do réu”), consolidando o entendimento de que, após a citação, o réu deve ser intimado sobre o pedido em questão.[3]

Da mesma forma, cumpre destacar que, “até a citação”, o autor poderá aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente do consentimento do réu (artigo 329, I, do novo CPC).[4]

Esse breve parênteses serve para demonstrar que a citação do réu sempre foi considerada um marco temporal relevante para fins de aplicação da sucumbência; na hipótese de abandono da causa pelo autor; e também no caso de aditamento ou alteração do pedido autoral.

Porém, com relação à desistência da ação, sempre prevaleceu a tese de que, até a apresentação da contestação (efetivo protocolo da peça), o pedido de desistência do autor não depende do consentimento do réu[5], mas que, após o protocolo da defesa, não pode o autor desistir da ação, sem a aquiescência do demandado.[6]

Surge então a indagação: será que na atual conjuntura do processo civil, em que pese a “clara” redação do artigo 485, § 4º, o mero pedido de desistência apresentando pelo autor antes do protocolo da contestação enseja, automaticamente, a extinção do feito sem resolução de mérito?

Pensamos que não e defendemos a possibilidade de uma interpretaçãoconforme, prestigiando-se os princípios constitucionais e do novo CPC. Um exemplo ilustrativo facilitará a compreensão da problemática.

Imaginemos que o réu é citado, comparece à audiência de conciliação/mediação — as partes não chegam a um acordo —, e, a poucos dias do prazo final da contestação, o autor apresenta um pedido de desistência. Na sequência, o réu, que sequer tomou conhecimento do requerimento do autor (porque este, por exemplo, ainda não foi levado à conclusão do juiz, ou mesmo porque não foi ainda despachado), apresenta normalmente sua contestação, suscitando inclusive a prescrição da pretensão autoral.

Primeira pergunta: deve o juiz intimar o réu para se manifestar a respeito? Parece-nos que sim, por força dos artigos 9º e 10 do novo CPC e da nova concepção do contraditório participativo, pressuposto do processo civil contemporâneo colaborativo. Segunda pergunta: deve o juiz extinguir o feito, sem resolução de mérito, considerando que o pedido de desistência foi protocolado antes da apresentação da contestação?

A questão ainda não foi enfrentada com profundidade pela jurisprudência, mas entendemos ser cabível uma interpretação sistemático-extensiva e lógico-argumentativa da norma processual em questão, valorizando-se não apenas a observância dos direitos e das garantias fundamentais, mas sobretudo a necessária ponderação do princípio dispositivo frente ao princípio da primazia do julgamento do mérito, eis que o novo CPC prestigia a “solução integral do mérito” (artigo 4º), isto é, a prolação de uma “decisão de mérito justa e efetiva” (artigo 6º).

O princípio em questão está intimamente ligado ao dever de cooperação (especialmente em sua faceta de prevenção), que reflete o poder do juiz de sanar vícios processuais e óbices ao desenvolvimento do processo, à resolução do mérito ou à atividade satisfativa do direito (artigo 139, IX). Afinal, o objetivo do processo é resolver o conflito.

As dimensões reduzidas deste artigo não permitem uma análise vertical do referido princípio, que, a bem da verdade, se projeta em diversos outros dispositivos do novo CPC.[7]

Dentro dessa concepção lógico-argumentativa e voltando ao exemplo ilustrativo, entendemos que, se o juiz julgar extinto o feito com base na desistência (artigo 485, VIII), quando a parte ré já tiver tomado as providências necessárias a viabilizar a defesa do seu direito, e proferir uma sentença terminativa, desprestigiará frontalmente o princípio da primazia de mérito.

Isso se agrava no caso do réu alegar qualquer das hipóteses que poderiam (e deveriam) ter sido apreciadas pelo magistrado, na forma do artigo 332, aí incluídas a prescrição e a decadência, que, se acolhidas, ensejariam a extinção do feito com resolução de mérito (artigo 332, § 1° combinado com artigo 487, II).

E suponhamos que o réu esteja buscando, em reconvenção, a condenação do autor ao pagamento de danos morais. Tal requerimento reforçaria ainda mais a necessidade de enfrentamento do mérito[8], sob pena de flagrante violação ao acesso à justiça (artigos 5º, XXXV, da CF e 3º do novo CPC).

Sob outro prisma, não se pode olvidar que, diferentemente do CPC/73, o novo CPC prevê uma nova etapa processual no início da ação, qual seja, a realização da audiência de conciliação/mediação do artigo 334.

Em tais audiências, embora não seja o ambiente adequado para se discutir o mérito da controvérsia, as partes acabam dialogando, explicando seus pontos de vista, questionando a pertinência de alguns pedidos e, algumas vezes, chegam a trazer documentos e elementos para embasar sua posição.

Ou seja, instala-se um efetivo contraditório, ainda que de baixa densidade. E pode ocorrer de o autor, justamente com base no que viu e ouviu, avaliar e resolver, na sequência, desistir da ação, evitando maiores desdobramentos.

Do lado do réu, embora o prazo de contestação só comece a fluir a partir do dia seguinte da audiência frustrada (artigo 335, I), não se pode ignorar que, uma vez citado, foi obrigado a contratar advogado, resgatar o histórico dos fatos, coletar documentos, se deslocar para a audiência de conciliação/mediação, revelando uma participação ativa na construção e no desenvolvimento da tese defensiva. Nesse contexto, considerando que foi literalmente “convocado” a integrar a relação processual (artigo 238), o réu tem o direito, à luz do contraditório (artigo 5º, LV, da CF e 7º do novo CPC), de exigir a adoção de todas as providências que possam ter utilidade na defesa de seus interesses.

Em nossa opinião, apesar da desistência ser um ato unilateral do autor [9], quando formulada após a citação do réu, ainda que antes do efetivo protocolo da contestação, não deve, abstratamente, se “sobrepor” ao direito do réu de continuar com a demanda em busca de uma decisão de mérito, sobretudo diante dos novos paradigmas e cânones do processo civil. É preciso valorizar a interpretação mais favorável à preservação do direito fundamental[10] de se obter uma tutela jurisdicional de mérito.

É evidente que o réu, além de boa-fé, precisará demonstrar fundamento legítimo para postular o prosseguimento do feito (sua “resistência” deve lhe trazer alguma utilidade), não podendo, porém, a nosso sentir, ficar ao talante do autor, em posição de desigualdade (artigo 5º, caput, da CF e 7º do novo CPC), na condição de agente secundário do processo.

 

 

 

 

 

Autores: Marcelo Mazzola é advogado e sócio do escritório Dannemann Siemsen. Mestrando em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

 Humberto Dalla Bernardina de Pinho é promotor de Justiça no Rio de Janeiro.


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