Diálogo entre a Lei Brasileira de Inclusão e o novo CPC: pelo fim da interdição judicial

Autor: Júlio Camargo de Azevedo (*)

 

O presente escrito possui o objetivo de provocar a seguinte reflexão: do cotejo entre a Lei Brasileira de Inclusão[1] e o novo Código de Processo Civil, é possível sustentar a sobrevivência do instituto da interdição no ordenamento jurídico brasileiro?

Nesta revista virtual, brilhantes autores chegaram a defender a manutenção da interdição e seu procedimento especial em nossa sistemática processual civil[2]. Permita-se, respeitosamente, o contraponto.

É cediço que, desde 2009, vige em nosso ordenamento jurídico a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (incorporada internamente pelo Decreto 6.949/2009), a qual ostenta status de norma constitucional, componente do chamado “bloco de constitucionalidade”, consoante o disposto no artigo 5º, parágrafo 3º, da Constituição da República.

A Convenção de Nova Iorque foi responsável por inaugurar, em nossa ordem jurídica, os paradigmas da autonomia individual, da liberdade de escolha e da efetiva participação e inclusão da pessoa com deficiência na sociedade (artigo 3º, “a” e “c”)[3], contrapondo-se ao regime civil estabelecido pelo Código Civil, calcado na ampla intervenção estatal, noregime de interdições e na proteção baseada em decisões substituídas.

Nesse sentido, previu o artigo 12, 1 a 4, do Decreto 6.949/2009:

1. Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei.

2. Os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.

3. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal.

4. Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa.

Dispôs, ainda, quanto às obrigações dos países signatários (artigo 4º, “a”, “b” e “c”), que os Estados-partes se comprometem a adotar todas as “medidas legislativas e administrativas necessárias para a realização dos direitos da pessoa com deficiência”, incluindo a “modificação ou revogação de leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes”, abstendo-se, ainda, de referendar “qualquer ato ou prática incompatível com a Convenção”, assegurando sua observância pelas autoridades e instituições públicas[4].

Ao interpretar o “direito à igualdade perante a lei”, o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, órgão responsável pelo monitoramento, fiscalização e implementação da convenção no âmbito internacional, publicou Observação Geral sobre o mencionado artigo 12, afirmando, em linhas gerais, a necessidade de se: i) reconhecer a capacidade jurídica a todas as pessoas com deficiência; ii) instituir modelos de “apoio” para o exercício de seus direitos (respeitada a vontade e preferência da pessoa com deficiência); iii) eliminar o modelo de decisões substituídas, baseados na tutela ou curatela plena e nas interdições judiciais[5].

Interpretando-se as normas e orientações acima retratadas, crível perceber a absoluta incompatibilidade existente entre o regime jurídico brasileiro aplicado às pessoas com deficiência e a Convenção de Nova Iorque, fundamentando a necessidade de modificações legislativas e a abstenção de novas práticas violadoras.

A fim de superar essa inconformidade normativa, editou-se, em 2015, a Lei 13.146, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão, a qual veio promover profunda reforma na legislação civil brasileira, adequando as disposições referentes à deficiência mental, às incapacidades, à curatela e ao procedimento de interdição ao regime jurídico inclusivo inaugurado pela Convenção de Nova Iorque. Aliás, esse alinhamento à norma constitucional supracitada consta expressamente do artigo 1º, parágrafo único, da Lei 13.146/15[6].

Nesse sentido, a Lei Brasileira de Inclusão revogou os incisos I, II e III do artigo 3º, bem como os incisos II e IV do artigo 1767, suprimindo ainda o alcance dos incisos II e III do artigo 4º e o inciso I do artigo 1767, todos do Código Civil, passando a considerar plenamente capaz a pessoa com deficiência, conforme expõe o artigo 6º[7]. Muda-se, nessa perspectiva, o foco da legislação civil: da proteção-substituição passa-se a inclusão-participação.

A legislação trouxe, ainda, recursos específicos de acessibilidade e comunicação, como a tecnologia assistiva (artigo 3º, inciso III), de observância obrigatória em processos judiciais de fixação da curatela (artigo 80), e a decisão apoiada (artigo 1783-A do CC/02), no sentido de efetivar o “apoio” exigido pela convenção, ínsito ao exercício da capacidade afirmada.

Por fim, e aqui reside o ponto alto do debate que se instala, previu a legislação inclusiva a reforma da sistemática aplicada ao procedimento de interdição, revogando todas as disposições pertinentes ao instituto no Código Reale (exceto pela equívoca menção à seção — “dos interditos”). Em suma: a Lei 13.146/15 eliminou a possibilidade de decretação da incapacidade absoluta do sujeito com deficiência, exigindo árdua fundamentação do magistrado para a fixação da curatela, a qual foi prevista como medida extraordinária, restrita a atos negociais, proporcional às circunstâncias do caso e limitada no tempo pela necessidade concreta (artigos 84 e 85)[8].

É possível perceber, portanto, que os (novos) direitos da pessoa com deficiência, decorrentes da Convenção de Nova Iorque e da Lei Brasileira de Inclusão, instituem verdadeira quebra de paradigma na sistemática jurídica anterior, implicando em uma operacionalidade normativa voltada à inclusão da pessoa com deficiência, a qual passa a permear todos os ramos jurídicos correlatos, do qual não se afasta, por óbvio, o Direito Processual Civil.

O maior pecado da legislação inclusiva foi, por certo, não ter dialogado com o novo Código Processual (Lei 13.105/15), o qual teve vigência posterior à Lei 13.146/15, ressuscitando, de maneira absolutamente descontextualizada, o instituto da interdição (artigos 747 a 758). O diploma processual acabou fulminando os artigos 1768 a 1773 do Código Civil, responsáveis por definir o procedimento de fixação de curatela.

Frente a isso, inevitável a retomada do questionamento inicial: o CPC/15 possui o condão de modificar o paradigma de direito material inaugurado pelas normas inclusivas antes citadas? Parece forçoso reconhecer que não.

Preliminarmente, à luz da Teoria Geral do Direito, é preciso pontuar a absoluta impertinência dessa construção jurídica, a qual presume pretensa sobreposição do Código Processual à Convenção de Nova Iorque, incorporada em nosso ordenamento como norma constitucional, sugerindo ainda a derrogação das disposições especiais trazidas pela Lei Brasileira de Inclusão, o que não se admite, no primeiro caso, em razão do critério hierárquico (lex superior derogat legi inferiori), e, no segundo caso, em razão do critério da especialidade (lex specialis derogat legi generali).

Porém, mesmo que superada essa questão de antinomia, à luz da dignidade da pessoa com deficiência, do paradigma da autonomia individual e da proteção à igualdade perante a lei, a manutenção do instituto da interdição não se sustenta.

Em um breve escorço histórico[9], fica claro perceber que a interdição jamais se voltou à efetiva proteção jurídica do incapaz, mas sim à segurança das relações negociais, do patrimônio de terceiros e da circulação de riquezas. Tanto é assim que, adotando discurso falsamente “protetivo”, ambos os códigos antecedentes (1939 e 1973) previam, em relação à interdição, regulamentação profundamente estigmatizante, contendo a ampla divulgação da condição de “interdito” na imprensa local e no órgão oficial, a inscrição da sentença no Registro de Pessoas Naturais, a exclusão do efeito suspensivo da apelação que desafia sentença que decreta a interdição etc.

A partir do decreto judicial de interdição, portanto, declarava-se a situação de absoluta incapacidade do indivíduo, ficando o interdito sujeito aos efeitos da curatela para todos os atos da vida civil, inclusive para atos existenciais (casamento, reprodução, planejamento familiar etc.), laborais e para o exercício da cidadania (voto). Essa situação, a qual implicava verdadeira castração (psicossocial) do indivíduo, somente poderia ser levantada — leia-se, desconstituída — à luz de incidente próprio (artigo 1.186, CPC/73), após perícia em que constatada a recuperação da plena sanidade mental do interditado (hipótese extremamente difícil na prática, dada à perenidade de muitas doenças).

Comum, ainda, no regime do CPC/73, que o ajuizamento de ações de interdições apresentasse nítido “desvio de finalidade”, ora visando à invalidação de atos praticados antes da interdição (nesse sentido, vale conferir a transcendental advertência de Barbosa Moreira)[10], ora decorrendo de absurda exigência de órgãos públicos para fins de concessão de benefícios legais.

O exemplo contemporâneo que melhor ilustra esta segunda situação diz respeito às inúmeras demandas de interdição propostas atualmente por exigência de órgãos previdenciários, como condicionante à concessão do benefício de prestação continuada (pedidos esses que, aliás, devem ser julgados improcedentes, com base na impossibilidade jurídica introduzida pelo artigo 110-A na Lei 8.213/91)[11].

Verifica-se, portanto, que o novo Código Processual não só reviveu um instituto abandonado pela lei civil, demonstrando-se descontextualizado, como também caminhou na contramão do direito material das pessoas com deficiência, por introduzir um procedimento inadequado à tutela destes direitos.

Ora, parece ilógico defender a subsistência do procedimento especial de interdição se não admitida a declaração da incapacidade da pessoa com deficiência. À luz da instrumentalidade processual, qual seria a utilidade deste instituto? Fixar a curatela de atos estritamente negociais? Mas porque então continuar decretando a interdição das pessoas?

Nesse caso, melhor seria pôr fim ao estigma das interdições judiciais, utilizadas cotidianamente como forma de alijar o deficiente mental ou intelectual de sua igualdade perante a lei, resumindo-o a um “subcidadão” ou a um “cidadão sem capacidade”. Daí porque o civilista Maurício Requião concluiu, acertadamente, que a extinção das interdições vai ao encontro dos ideais perseguidos pelo Movimento de Luta Antimanicomial e Reforma Psiquiátrica[12]. Às vezes, o simbólico fala por si e é necessário combatê-lo.

Ademais, parece ilógico admitir que justamente o Código Processual Democrático viria a suprimir ou violar os direitos da pessoa com deficiência, contrariando suas próprias normas fundamentais expostas nos artigos 8º (dignidade da pessoa humana) e 13 (respeito aos tratados e convenções internacionais).

Nesse prisma, entende-se que todos os atores do sistema de Justiça devem cumprir o disposto no artigo 4º da Convenção de Nova Iorque, abstendo-se de referendar qualquer ato ou prática incompatível com os direitos das pessoas com deficiência, dever este que direciona especial efeito à Defensoria Pública, instituição essencial à Justiça e constitucionalmente jungida à promoção dos direitos humanos de grupos vulneráveis.

Por tudo o que foi dito, longe de pôr fim à discussão que certamente apenas se inicia, finca-se aqui uma bandeira pela extinção das interdições e pela premente necessidade de adequação do procedimento especial voltado à tutela das pessoas com deficiência. O processo civil brasileiro precisa dar esse passo rumo à humanização, considerando o paradigma inclusivo. Há pessoas por trás dos autos. Que não nos olvidemos disso.

 

 

 

Autor: Júlio Camargo de Azevedo é mestrando em Direito Processual Civil pela USP, especialista em Direito Processual Civil pela Unesp, defensor público no estado de São Paulo e membro colaborador do Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem).

 


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento