André Luis Alves de Melo*
Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representação ou diretamente nos termos da Constituição. Seria constitucional a exigência de formação em Sociologia para exercer o cargo de presidente da República? Ou a exigência da formação de Direito para ser deputado? Então não há como admitir que para ser magistrado judicial seja exigido o diploma de bacharel em Direito e nem outro cargo jurídico, principalmente de natureza política.
O conhecimento será avaliado no concurso, permitindo assim a todos os cidadãos o direito de ocupar o cargo, independentemente da necessidade de adquirirem um diploma e enriquecer as quase 500 faculdades de Direito no país, as quais conforme fato público, em geral, não têm fornecido conhecimentos, mas apenas diplomas.
Um poeta não é obrigado a ser formado em Letras, um músico não é obrigado a ser formado em Música. Um jornalista não precisa ser formado em Jornalismo. Logo, um jurista não precisa ser obrigado a adquirir um diploma, pois deverá ser respeitado pelo seu conhecimento.
Poucos dos grandes juristas da História tinham diplomas em Direito. Eram respeitados pelo seu conhecimento, pois eram autodidatas. Para o Direito, seria bom que tivesse um ministro da Justiça sem o diploma de Direito, pois não seria corporativo e defenderia a sociedade em vez de atender aos interesses de determinada carreira.
Se o sistema jurídico faz lei entre as partes, o Legislativo faz leis gerais devendo também ter conhecimento jurídico, mas utiliza-se dos técnicos jurídicos para informar-lhes sobre as vias jurídicas. Pelo raciocínio todos os Legisladores deveriam ter diploma de Direito.
Outrossim, é possível o concurso exigir o diploma de contador e constar no Edital apenas matérias de matemática? Ou fazer concurso para médico e constar no programa apenas matérias de odontologia? Assim, também não é crível exigir o diploma de bacharel em Direito e cobrar matérias que não estão no programa fundamental do MEC, e ignorando as matérias fundamentais definidas pela Portaria do MEC 1886/94, que reformulou o ensino jurídico. Ora, não basta criticar os candidatos ao concurso, pois se os examinadores não cumprem o programa do MEC, não há como os candidatos aprenderem a matéria realmente.
Não está obrigado o concurso obrigado a cumprir o programa do MEC, mas não pode exigir o diploma de bacharel em Direito como pré-requisito, se não adequar o seu programa ao do ensino jurídico. E inclusive exigem o diploma antes da primeira fase, descumprindo a súmula 166 do STJ, pois sabem que se assim não o fizerem, a maioria dos aprovados poderia ser de pessoas com outra formação escolar, o que seria o derradeiro fim dos cursos jurídicos e a confirmação cabal de que não ensinam de fato.
Quem tem o conhecimento jurídico não precisa do monopólio do diploma, principalmente em concursos públicos. Quando se criou as corporações profissionais na França, o objetivo era regular as profissões privadas e não as públicas. Inclusive estas agora podem ser avaliadas através de concursos que medirão o conhecimento jurídico, desde que o examinador tenha capacidade para avaliar, não fazendo apenas perguntas sobre “o que é”, mas sim, perguntas que exijam capacidade mais elaborativa e não apenas memória como “para que serve”, “por que é assim”, exigindo uma visão crítica.
Quando falamos em exercício do poder pelo povo, não se fala apenas em eleição. Mas também em referendum pelo povo dos candidatos antes do vitaliciamento; consulta pública ao povo acerca da Lei Orgânica; prestação de contas ao povo da produtividade; audiências públicas para apresentação de soluções. E muitas outras formas.
Afinal, se exigimos o diploma de bacharel em Direito para decidir questões muitas vezes juridicamente simples como no juizado especial, de alimentos, acidentes de trânsito, divórcios, inventários; deveríamos exigir o diploma de administrador público para administrar os Tribunais, Procuradorias e demais órgãos jurídicos.
Aliás, no caso de Delegado de Polícia se é para exigir diplomas por que não serve o de formado em Segurança? Já existem quatro faculdades desta graduação no país.
Inclusive para ser ministro do STF não precisa ser bacharel em Direito, basta ter conhecimento jurídico. Aliás, o ideal seria exigir que tivessem também conhecimentos sobre economia, ciência política e sociologia, pois é impossível analisar a Constituição Federal sem estes elementos, pois é documento eminentemente político de constituição do Estado. O saber jurídico ao Supremo Tribunal Federal já é condensado nas manifestações das partes, mas quanto aos demais elementos, em regra, não. É por isto que na Europa prevalece o Controle Democrático da Constituição através de órgãos dinâmicos, com mandatos fixos e compostos por vários segmentos sociais e estatais. A Constituição e o Direito pertencem ao povo, nós bacharéis somos apenas técnicos aptos a apontar os caminhos viáveis a serem seguidos.
Somos como engenheiros sociais, onde fazemos o projeto, mas a decisão deve ser do proprietário, do povo, limitado pela Constituição e demais leis. Não podemos deixar que aquele que apenas repete conceitos sem análise e não cria de novo, age como um pedreiro social, ainda que tenha ‘diploma’ de curso superior.
No tempo de Roma o Direito não era científico e sim casuístico, logo poucos princípios são efetivamente aplicáveis atualmente, apenas funcionam como dogmas. Se não há uma relação de princípios pode ser qualquer um, em uma opção política e não jurídica. O que acontece é que quanto mais elaborado o sistema jurídico legal, menor o poder de interpretação dos bacharéis. Por isto em geral ‘os juristas’ reclamam da mudança das leis, mas ninguém reclama da mudança das opções nas sentenças.
As leis evoluem e são aplicáveis a todos. As sentenças evoluem, mas são aplicáveis apenas às partes. Logo, não há igualdade prévia, sendo necessário que cada um reclame o seu direito, mantendo o mercado jurídico em alta, mas incorrendo no descrédito a médio e longo prazo.
O novo programa previsto pelo MEC coloca como matérias fundamentais: sociologia, filosofia, ética, administração pública, ciência política, economia, direitos humanos, meios extrajudiciais de solução de conflitos, acesso à justiça e direitos coletivos. As matérias exigidas nos concursos jurídicos em geral não são as fundamentais atualmente, limitando-se ao núcleo profissional. Mas como interpretar uma lacuna de norma analisando os costumes, princípios gerais, o aspecto social e analogia, sem as matérias fundamentais que são desenvolvem os valores? E o Judiciário trabalha essencialmente com valores!!!. A rigor, cada parte alega um direito e fundamenta desenvolvendo uma tese e o Judiciário elege um dos litigantes em face dos valores sociais, ao menos teoricamente, acolhendo ou rejeitando a tese do autor, conforme art. 459 do CPC.
Quando se decidiu no início da República em 1889 que os cargos de jurídicos e de juiz seriam ocupados por bacharéis em Direito, era porque naquela época não havia concurso, a escolha era por indicação e assim o foi até 1934. Então não havia como avaliar o conhecimento e queriam evitar que os juízes leigos voltassem. Hoje, não faz mais sentido a reserva de mercado, principalmente para o Poder Judiciário, que é poder estatal e tem opção política de escolher entre as teses que lhe foram apresentadas.
E o conhecimento jurídico necessário será avaliado na prova do concurso. E também naquela época só existia três tipos de faculdades: Direito, Medicina e Engenharia. Hoje o mundo evoluiu e o conhecimento ampliou significativamente para outros ramos, inclusive com diversos cursos de nível superior, sendo quase cinqüenta tipos de cursos de graduação.
Entretanto, os concursos da Magistratura Judicial até antes da Constituição de 1988, era apenas de habilitação, ou seja, entre os aprovados o Governador escolhia os que queria (art. 144, I da CF de 1969; art. 136, I, da CF de 1967; art. 124, III, da CF de 1946; art. 103, a) , da CF de 1937; Quanto aos juízes federais sempre foram indicados livremente pelo Presidente da República até 1979, quando passaram a ser escolhidos mediante um concurso de habilitação, onde o Presidente escolheria entre os aprovados (art. 5° e 78, §3º da LC 35/79). Destacando que de 1937 a 1967 o Judiciário Federal permaneceu extinto.
Inclusive, como o Direito não pode ser monopólio de uma classe ou corporação, nem a Constituição Federal, é preciso interagir com a sociedade e demais ramos de estudo para se chegar a um denominador social comum. Aliás, o Direito isolado em um mundo globalizado, é tão possível como estudar física sem saber matemática.
Alguns países já romperam com o monopólio do bacharel em Direito como a Inglaterra, o Japão e alguns cargos de magistrados na França não precisa ser portador de diploma de bacharel em Direito para exercer cargo jurídico, a aprovação no exame governamental presume que tem o conhecimento jurídico. O que é razoável e reduz a indústria de fornecimento de diplomas em Direito financiados em 60 meses, pois não se tem obtido conhecimentos em faculdades em Direito que se limitam, em geral, a ler textos e repetir doutrinas básicas e ementas de acórdãos.
Na Inglaterra qualquer cidadão pode fazer exame de ordem para advogado, se aprovado exercerá a profissão. Em regra, 75% dos aprovados são oriundos de faculdades de Direito. Mas quando se quebrou o monopólio, os bacharéis aprovados passaram durante algum tempo a ser em menor número do que os não bacharéis. Com a concorrência as faculdades de Direito tiveram que investir em qualidade de ensino.
Nos Estados Unidos faz-se um curso geral na área de humanas, de duração em média de três anos, após o segundo grau e antes de entrar na faculdade de Direito. Ou seja, o ensino jurídico nos Estados Unidos consome em média de 08 anos, e ainda existe a avaliação social direta, pois em geral não há vitaliciedade e de tempos em tempos faz-se a avaliação social de juízes e promotores.
De forma curiosa no Brasil o juiz LEIGO do Juizado Especial deve ser formado em Direito e ter cinco anos de experiência, um prazo maior do que para ser juiz judicial em Minas Gerais, e sem falar que na maioria dos Estados não se exige tempo de experiência.
Particularmente, achamos que a experiência profissional e de vida é muito mais importante do que o diploma. Mas desde o positivismo os “intelectuais” tentam expurgar a sabedoria popular do círculo do conhecimento. Assim, o foi durante toda a fase Imperial, onde juízes leigos e de carreira disputavam espaço. Sendo que durante o Império prevaleceram os leigos, mas com a República a idéia de Iluminismo e Positivismo prevaleceu e os portadores do diploma que se auto-proclamaram intelectuais com o apoio dos militares impuseram a sua filosofia.
Mas é perfeitamente possível termos juízes não formados em Direito como juízes de paz, leigos e de arbitragem, tudo previsto na Constituição Federal, ainda não implantados em face do corporativismo dos bacharéis.
Inclusive como o Ministério Público a partir de 1988 aumentou substancialmente a sua parcela de no poder de soberania permanecendo com a fiscalização dos atos estatais e sociais, passando a atuar como um poder social ou um contra-poder, também deve se submeter às inovações democráticas que estão sendo analisadas. Sendo que o ideal é que todas as instituições jurídicas fossem democratizadas.
A rigor, o corporativismo dos bacharéis em Direito no Brasil é o maior do mundo, pois éramos a única Constituição Federal que previa a função de advogado particular como essencial e interpretada como obrigatoriedade de o cidadão contratar um advogado para resolver questões simples como inventário. Em 1994, a imponente República de Cabo Verde copiou este artigo brasileiro em sua Constituição.
Então, cabe ressaltar que há um projeto de Reforma do Judiciário, que de forma anti-democrática, prevê cargos de juiz e promotor sejam privativos de bacharel em Direito. Mas ainda não está em vigor a alteração, logo não pode surtir efeitos.
Dessa forma, como a Constituição Federal, nem a Estadual, nem a Lei Orgânica Federal da Magistratura estipularam o diploma de bacharel em Direito como pré-requisito não pode a Lei Orgânica Estadual o fazer, pois a Lei referida no art. 93, caput, da CF é de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, sendo portanto Lei Federal.
Paradoxalmente, afirmam alguns que exigência de idade mínima e tempo de experiência ferem o princípio da igualdade, mas não dizem o mesmo no tocante ao diploma. Todos podem alcançar a idade e a experiência profissional, mas nem todos podem adquirir um diploma, pois custa muito caro. Inclusive, o conhecimento supostamente obtido no diploma será aferido nas provas, mas o de experiência de vida e profissional não.
Então é avaliado duas vezes o conhecimento técnico, e abandona-se a sabedoria popular, fruto da vivência. Pode-se até dizer que um jovem tenha mais maturidade do que um idoso, mas isto não é a regra. Não podemos trabalhar com as exceções, caso contrário nem podemos sair de casa, pois é possível cair um raio, um meteoro e outras coisas não comuns. Inclusive exige-se idade para todos os cargos políticos e também em tribunais.
Portanto, devem os concursos jurídicos absterem-se de exigir o diploma de bacharel em Direito, em especial para cargos de natureza de agente político como o de juiz e promotor ou pelo menos adequar o programa do concurso à Portaria 1886/94.
Revista Consultor Jurídico
André Luis Alves de Melo é promotor de Justiça em MG e membro do Ministério Público Democrático