Autor: Wilson Levy (*)
A expressão “direito à cidade” já foi há muito integrada ao vocabulário da esfera pública brasileira, em inúmeras aplicações. Seu caráter polissêmico, contudo, é contraditório. Por um lado, ela permite que o conceito seja apropriado e significado por um conjunto amplo de atores sociais, que o utilizam para fortalecer pautas de reivindicação. Por outro, é um convite a imprecisão. E imprecisão, em matéria normativa, é terreno fértil para interpretações, muitas das quais pouco compatíveis com uma narrativa adequada a Constituição Federal de 1988, projeto jurídico-político de nação da República Federativa do Brasil.
Dito de outro modo, no horizonte de possibilidades de interpretação, o “direito à cidade” pode servir tanto como base para a luta pela moradia adequada de grupos marginalizados quanto para justificar a multiplicação de condomínios fechados e seus congêneres, contrariando a vocação do espaço urbano como espaço privilegiado de interação social.
Além de polissêmico, o direito à cidade não é expressamente assegurado por nenhum direito previsto no ordenamento jurídico. O que há é um conjunto de direitos que, uma vez interpretados sistematicamente, poderiam conduzir à sua fundamentação legal, sob a égide dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, que definem a política urbana e introduzem a ideia de “função social da cidade”: o direito fundamental à propriedade e sua consequente hipoteca social (artigo 5º, caput, XXII e XXIII) e o rol de direitos sociais (artigo 6º, caput) que encontram na cidade o seu âmbito de materialização, sobretudo os direitos à educação, à saúde, à moradia, ao transporte, à segurança, ao lazer e à assistência aos desamparados, sem desprezar a normatividade infraconstitucional, contida, como norma geral, no Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001) e no Estatuto da Metrópole (Lei n. 13.089/2015).
Longe de ser retórica, a afirmação é lógica: de acordo com dados de 2010 do IBGE, cerca de 85% dos brasileiros mora nas cidades, e não há como negligenciar o fenômeno urbano como foco de preocupação por parte do campo jurídico.
À míngua de uma norma é urgente o esforço por estabelecer marcos conceituais, destacando que a doutrina não deve ser mera reprodução do conteúdo literal da lei e tampouco o suporte de justificação das decisões judiciais: ela deve apontar caminhos, abrir clareiras, construir pontes e manter o próprio direito em movimento, em articulação com o que o tempo presente demanda.
Como fazê-lo?
A primeira tarefa impõe definir o que se entende por “direito à cidade”. Um passo preliminar pode ser dado no sentido de compreendê-lo como uma qualidade da ideia de “vida digna”, ou, em termos filosóficos, de “vida boa”. Há vida digna fora de cidades capazes de garantir a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a autonomia individual e todos os direitos indicados acima?
Cumprida esta etapa, é preciso deslocar o direito à cidade para o lugar certo: o de objeto do direito urbanístico. Antes interface desprezada do direito administrativo, o direito urbanístico adquiriu, sobretudo a partir da primeira década do século XXI, estatuto teórico autônomo. A incorporação da gramática do direito internacional dos direitos humanos como pilar estruturante de uma doutrina capaz de lidar com a informalidade e precariedade existentes nas cidades brasileiras sem sacrificar o direito à moradia no altar do direito de propriedade, a abertura para conceitos da tradição privatística ligados à atividade imobiliária e a compreensão de que não se pode avançar olvidando as particularidades do sistema de registro conferiram enorme musculatura ao direito urbanístico brasileiro. Cumpre agora ajustar a sintonia deste movimento.
Essa sintonia passa pelo reconhecimento de que o direito à cidade é informado por múltiplas vozes: a teoria social, a política, o urbanismo e as interfaces territoriais, e também os saberes tradicionais e não-formais, a arte enquanto experiência e a linguagem das ruas. Cada uma delas têm uma contribuição específica para a construção deste objeto. Se o direito chegou por último na discussão sobre a cidade, seu papel não é menos importante. Afinal, se há um “direito à cidade”, o seu conteúdo é, antes de tudo, normativo/prescritivo, cabendo ao “jurídico” o papel de espaço de convergência de saberes.
Uma vez realizado, este processo não implica na recusa do papel importante desempenhado pelo direito urbanístico no plano da regulação do território, através dos instrumentos previstos em lei. Pelo contrário: trata-se de qualificá-lo, a partir de nova orientação geral. Pensar leis de zoneamento, planos diretores, operações urbanas consorciadas e todos os demais componentes das relações territoriais a partir da ideia de direito à cidade é uma nova maneira de enxergar o direito urbanístico, atribuindo-lhe maior centralidade entre as disciplinas do saber jurídico.
Desde junho de 2013, quando as grandes cidades brasileiras foram tomadas por movimentos difusos, de algum modo articulados em torno da garantia do direito ao transporte, um novo desafio está posto: é preciso parar de enxergar os direitos que encontram abrigo na cidade de maneira fatiada. Moradia está tão articulado com transporte quanto este está com a saúde e a educação. E também o planejamento urbano e o cumprimento da função social da cidade. Neste processo, o direito à cidade tem decisiva centralidade. Compreendê-lo é a chave para que o pensamento jurídico assuma o protagonismo que o que dele se espera na construção de cidades justas, democráticas e sustentáveis.
Autor: Wilson Levy é advogado e doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP. Graduate Student Fellow do Lincoln Institute of Land Policy e membro da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-SP e do Núcleo de Direito Urbanístico da Escola Paulista da Magistratura. Professor e pesquisador do programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da UNINOVE.