Direito à saúde deve ser visto em face do princípio da reserva do possível

Autor: Ana Franco do Nascimento (*)

 

A saúde está positivada na Constituição como um direito de todos e um dever do Estado, que deve ser garantido por meio de políticas sociais e econômicas que objetivem a redução do risco de doença e de outros problemas, bem como proporcionem o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação.

A Constituição protege a prevenção e o tratamento de doenças, por meio de medidas que assegurem a integridade física e psíquica do ser humano. Ocorre que todas as receitas e despesas do Estado estão limitadas pela legislação, de modo que o Estado não pode realizar, por si, investimentos para os quais não haja recursos suficientes.

Desse modo, o direito à saúde, em que pese consubstanciar uma norma constitucional de caráter programático, encontra óbice na escassez de recursos e na seleção de prioridades do administrador público.

1. Direito à saúde na Constituição
A saúde, segundo a Constituição, é “direito de todos e dever do estado”, sendo um direito social fundamental, previsto também na ordem internacional. A Constituição brasileira apresenta diversos dispositivos que tratam expressamente desse direito, reservando ainda uma seção específica sobre o tema dentro do capítulo destinado à Seguridade Social.

Em seu artigo 6º, prevê a saúde como um direito social. No artigo 7º há dois incisos tratando da saúde: o IV, que determina que o salário-mínimo deverá ser capaz de atender as necessidades vitais básica do trabalhador e sua família, inclusive a saúde, e o XXII, que determina a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. Os artigos 23, e 24, inciso XII tratam da competência comum e concorrente que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios possuem de assegurar a prestação à saúde e legislar sobre a defesa da mesma.

Diversos outros dispositivos tratam da saúde, como o artigo 34, inciso VII, alínea “e” e 35, inciso III que possibilitam a intervenção da União nos estados e municípios quando não for aplicado o mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. O artigo 196 considerou a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O direito à saúde, portanto, é inerente ao direito à vida e abrange a saúde física e mental, devendo ser proporcionado por meio de políticas de tratamento e de prevenção, assistência médica, psicológica e jurídica por todos os entes da federação, para que haja efetividade na garantia do referido direito a todos e que seja observado o princípio da igualdade material, que considera cada caso concreto, bem como que seja garantido o mínimo existencial, que será mais a frente explicitado, e a dignidade da pessoa humana.

1.1. Da prestação do direito fundamental à saúde pela seguridade social
A Lei 8.090/1990 dispõe sobre as condições e o funcionamento dos serviços de saúde, de maneira que o Sistema Único de Saúde presta-se a promover a saúde, priorizando as ações preventivas, nos moldes da Carta de 1988, bem como informando à população acerca de seus direitos e dos riscos à saúde.

Muitas vezes, a prestação do direito à saúde encontra óbices, principalmente quanto ao fator financeiro, tendo em vista que nem sempre o Estado pode cumprir seus deveres, o que faz com que a demanda para o Poder Judiciário aumente, objetivando que o mesmo obrigue o Poder Público a fornecer medicamentos ou tratamentos que ultrapassam os limites da Lei Orçamentária, a fim de prestigiar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Para toda prestação, deve-se ter em conta os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, pois muitas vezes, para cada medicamento de alto custo que a justiça concede a apenas uma pessoa, milhares de outras ficam prejudicadas.

Diante das situações, surge a necessidade de fazer escolhas, tendo em vista que o princípio da reserva do possível, pautado na necessidade-possibilidade, deve ser levado em conta.

Desse modo, embora o direito à saúde seja um dever do Estado, tendo o artigo 196 da Constituição Federal caráter programático, não se pode aplicá-lo indistintamente em todas as situações, pois o Poder Público encontra-se amparado por limites orçamentários, e a população necessita de demais direitos além da saúde, como educação, segurança, alimentação, transporte, lazer, dentre outros.

Assim, é inviável assegurar indistintamente os direitos fundamentais, mormente no que se refere a tratamentos de custo altíssimo e sem perspectiva de efetividade. Viável será se no caso concreto estiverem presentes os três elementos: distributividade dos recursos, o número de cidadãos atingidos e a efetividade do serviço, observando, desse modo, o princípio da reserva do possível.

2. Do princípio da reserva do possível
O princípio da reserva do possível consubstancia aquele em que o Estado, para a prestação de políticas públicas – que incluem os direitos sociais e prestacionais – deve observar, em cada caso concreto, os três elementos ditos acima: a necessidade, a distributividade dos recursos e a eficácia do serviço. Conforme será visto, o Poder Público encontra-se limitado economicamente, não tendo condições de atender toda a população indistintamente.

Assim, havendo tais requisitos o serviço a ser prestado estará em conformidade com a reserva do possível. Consequentemente, incumbirá ao Poder Público prestar o serviço adequadamente, fazendo jus ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Para tanto, deve-se sempre observar as peculiaridades de cada caso concreto, pois como o Poder Público não possui recursos financeiros suficientes para o atendimento de todas as demandas, deve-se fazer escolhas entre os casos mais necessários. (LIMA, 2008, p. 319-323)

2.1. A garantia da saúde e a limitação orçamentária
O direito à saúde deve ter acesso universal e igualitário às ações e aos serviços necessários para sua promoção, proteção, bem como recuperação. Vale ressaltar que a observância desses princípios deve ser encarada com ligação aos limites orçamentários do Estado.

A Lei 4.320/1964, que trata das normas gerais de direito financeiro dispõe que haverá subvenções sociais para a garantia de serviços essenciais de assistência médica, social e educacional, nos limites das possibilidades financeiras, sempre que os recursos privados aplicados a esses objetivos revelarem-se mais econômicos para o Poder Público.

A Lei Orgânica da Saúde – 8080/1990 – dispõe, em seu artigo 2º, caput, que a saúde é direito de todos, devendo ser provida pelo Estado, responsável por garanti-la por meio de políticas econômicas e sociais que visem à prevenção e à redução de riscos de doenças e outros agravos. Dispõe ainda, nos parágrafos deste artigo, que há fatores determinantes e condicionantes da saúde, como a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a educação, o transporte, dentre outros.

Assim, no planejamento orçamentário, há verbas destinadas à saúde, tanto na modalidade assistencial, quanto preventiva, de maneira que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios têm o dever de garantir o direito à saúde, por meio do SUS, dentro, é claro, dos parâmetros orçamentários estabelecidos em lei, podendo, excepcionalmente, haver verbas suplementares, desde que, para tanto, haja autorização legislativa. A responsabilidade, portanto, é solidária ante os entes da federação (IBRAHIN, 2012 p. 3-4).

Em alguns casos, entretanto, a garantia do direito a saúde parece ser inviável, tendo em vista que o Poder Público não possui recursos suficientes para atender a todas as demandas, mormente as de altíssimo custo. Diante disso, é preciso invocar o princípio da reserva do possível, dentro, é claro, dos parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade.

2.3. O mínimo existencial e a reserva do possível
O princípio da reserva do possível, apesar de ser de fundamental importância, não deve ser banalizado, justamente para que não aumente as desigualdades já existentes, garantindo alguns direitos e restringindo outros.

Assim, para a prestação do direito social, deve-se levar em consideração, além da disponibilidade financeira do Estado e do possível beneficiário do serviço, a importância do direito a ser garantido, para que sejam salvaguardados os direitos a quem mais necessita, considerando, para tanto, o mínimo existencial, devendo, eventual impacto trazido pela reserva do possível ser reduzido pelo controle das decisões políticas, quanto à alocação de recursos, e à transparência das decisões, viabilizando o controle social sobre a aplicação dos recursos alocados no âmbito do processo político.

Há de se observar que o “mínimo existencial” depende da avaliação do binômio necessidade-capacidade, tanto do Estado, quanto da pessoa. Com efeito, deve-se ter em mente a ideia de que a reserva do possível não consiste em uma limitação à atuação do Estado na prestação dos direitos sociais, mas na obrigação do Poder Público reservar o total de recursos disponíveis para a gestão e execução das políticas públicas ligadas a tais direitos prestacionais.

Diante disso, deve ser levada em conta a reserva do possível, mas sempre preservando o mínimo existencial, ou seja, as condições básicas para a sobrevivência humana.

2.4. Necessidade de se fazer escolhas
Inicialmente, deve-se compreender que os direitos fundamentais não são absolutos e podem ser essencialmente conflitantes. Para tanto, deve ser aplicado o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade na resolução de questões desse tipo, como um meio de impedir ou reprimir violações a direitos fundamentais.

A Constituição Federal estabelece alguns princípios a serem observados na prestação do direito à saúde. Os principais são da universalidade, da integralidade e da equidade.

O legislador, como foi visto, teve a cautela de planejar todas as despesas a serem realizadas pelo Poder Público, mas tal ato, como dito no decorrer deste trabalho, não pode levar ao pensamento equivocado de que a previsão orçamentária limita a atuação do Estado na efetivação dos direitos sociais e fundamentais.

Assim, as prioridades devem ser levadas em conta para que seja preservado o “mínimo existencial”. Para tanto, deve ser feita uma ponderação de valores, a fim de que os direitos mais fundamentais sejam efetivados. Daí surge a necessidade de se fazer escolhas entre os casos mais necessários.

Conclusão
Pode-se concluir do presente trabalho que a saúde, sendo um direito fundamental social inerente à vida, deve ser assegurada pelo Poder Público, conforme disposto no artigo 196 da Constituição.

Tal artigo, embora seja uma norma de caráter programático, a qual trata de diretrizes e projetos futuros do poder executivo para ver assegurada a intenção do legislador, não deve ser interpretado como uma mera promessa, pois a saúde, como dito, é um direito fundamental, tendo aplicação imediata.

Para assegurar a saúde, o Poder Público criou o Sistema único de Saúde— SUS, por meio das Leis 8.080/1990 e 8.142/1990, que tem o objetivo de melhorar o acesso à saúde, por meio da criação de uma política descentralizada e solidária, ou seja, cabe à União, em conjunto com os estados e municípios, assegurar a prestação do direito à saúde, bem como disponibilizar hospitais e postos de saúde e outros meios que facilitem o atendimento da população, priorizando as ações preventivas, nos moldes da Carta de 1988, bem como informando à população acerca de seus direitos e dos riscos à saúde.

Diante da limitação de recursos do Estado, aliada à escassez dos mesmos, o Estado deve obedecer ao princípio da reserva do possível, segundo o qual o Poder Público atua balizado por cada caso, levando em consideração a concreta necessidade do cidadão, a distributividade dos recursos e a efetividade do serviço, para que seja assegurado o direito pretendido, observando, ainda, o mínimo existencial, ou seja, as mínimas e dignas condições necessárias de sobrevivência, considerando a necessidade do cidadão e as possibilidades do Estado.

Assim, se o Estado observar, no caso concreto, que há necessidade, recursos disponíveis e que o serviço tem possibilidade de efetividade, deve assegurar o direito, para fazer jus ao princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade material, pois deve se ater às prioridades, levando em conta a necessidade da coletividade.

 

 

 

 

Autor: Ana Franco do Nascimento é advogada, pós-graduada em Direito Constitucional.


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