Por Rodrigo Guimarães Colares
Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte Norte-Americana, já afirmou que “a informação deve ser livre como o ar”, ao se referir a todas obras que se encontram no domínio público e que podem ser livremente reproduzidas, sem que haja necessidade de autorização prévia de qualquer pessoa.
Na época, o eminente magistrado decidia acerca de um caso em que se discutia sobre obras que não atendiam ao requisito mínimo de “criação do espírito” como fator de proteção jurídica sob o direito de autor, tal qual a simples narração de fatos.
O exato sentido em que esse critério de proteção será adotado varia de um país para outro, e muitas vezes a previsão é consolidada pelas leis e o entendimento é expresso pelos tribunais, a cada caso.
Em países cujo sistema legal segue o common law, como os Estados Unidos da América, basta a obra não ser cópia de algo anterior. Já em países como o Brasil, que seguem a tradição do direito civil, a obra deve realmente ser considerada como algo original, que traduza o pensamento, o estilo ou qualquer sinal distintivo de autoria da pessoa que a fez.
Em comum, os dois sistemas guardam o fato de que a qualquer obra autoral será concedida a respectiva proteção jurídica, sem necessidade de qualquer formalidade de registro perante um órgão, entendimento que está previsto desde 1886 pela Convenção de Berna, e que foi repetido ao longo dos anos por diversos outros tratados internacionais, como os elaborados pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) e pela Organização Mundial do Comércio (OMC).
Na legislação brasileira – mais especificamente na Lei nº 9.610/98, de direitos autorais, existem algumas hipóteses em que são permitidas a utilização de uma obra por qualquer pessoa, sem que isso implique em ilegalidade. Podemos dividi-las em duas categorias: elementos que não são objeto de proteção pelos direitos autorais, como textos de leis, tratados, convenções internacionais e decisões judiciais; e as exceções ao direito de autor, como a reprodução de pequenos trechos de uma obra, para uso privado do copista, sem o intuito de lucro.
Se o juiz norte-americano tivesse decidido caso análogo sob as leis brasileiras, provavelmente ele estaria restrito a afirmar que apenas não seriam protegidas as informações de uso comum, tais como calendários, agendas ou cadastros, ou ainda simples constatações de fatos.
De resto, são protegidas todas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, desde o convencional papel até o ambiente cibernético criado pela grande rede de computadores.
Internet e o fim da cultura anarquista
Ocorre que muitas empresas pontocom, que se estabeleceram na Internet, estão utilizando material de terceiros sem qualquer permissão e, o que é pior, em boa parte das vezes suprimindo o nome do verdadeiro autor.
Primeiro é importante que tenhamos em mente o fato de que a lei existente e aplicável no território nacional será igualmente aplicável no ciberespaço. O tempo em que as condutas ilegais perpetradas pela Internet mantinham-se impunes já se foi, e muitos estão sentindo na pele tais impactos, por bem ou por mal.
Há alguns anos, desde meados de 2001, depois do boom da economia digital, ao tempo em que a poeira da euforia se assentou, decretou-se o fim da cultura anarquista na arquitetura eletrônica global. Os vetores empresariais passaram a reger a nova economia, e aqueles que se mostraram alheios a este fato tiveram sua sepultura selada.
Segundo é imprescindível entendermos que a grande maioria das obras postas na rede mundial, como músicas, programas de computador, textos, e outras, têm proteção do direito autoral e seus conexos, e não pertencem ao domínio público.
Assim, para qualquer forma de utilização que não consista em exceção legal, é necessário haver prévia anuência do titular de seus direitos. Ainda, ao se tratar de textos, a citação do nome do autor se demonstra imprescindível, e sua supressão caracteriza explícito dano moral, fazendo jus à respectiva indenização.
As empresas e os usuários estão cada vez mais atentos aos ciberdireitos, ou direitos do mundo virtual, e têm procurado sua proteção por meio de atitudes preventivas como a análise jurídica de seus websites e de demais produtos e serviços de informática. Muitas vezes, quando essas precauções não bastam, recorrem-se aos tribunais para fazê-los valer.
Direitos autorais e as Cortes de Justiça brasileiras
A Justiça brasileira, por sua vez, em muitos casos tem apresentado resultados surpreendentes, demonstrando o processo de atualização pelo qual nossos juizes têm passado, estando aptos a dirimir algumas questões oriundas dos mares de bits, mas às vezes pecando na aplicação direta da legislação existente.
Em 10 de dezembro de 2003, o Juiz Luiz Sérgio Silveira Cerqueira, do IV Juizado Especial Cível do Recife, decidiu um caso sobre reprodução não autorizada e supressão de autoria de um texto na Internet.
A empresa, conhecida como Hiway Internet Provider (ou CM Informática Ltda.), copiou um artigo científico, sem a autorização prévia e expressa do titular, Rodrigo Guimarães Colares (também autor deste artigo), e publicou-o em seu website (www.hiway.com.br), tendo, ainda, retirado o nome do verdadeiro autor do texto, expressamente creditando a propriedade e a feitura do texto para si, como se fosse uma notícia.
Notícias podem ser consideradas apenas textos ou narrações que constatam fatos, de simples percepção ao homem médio. Quaisquer outros que, de alguma forma, necessitaram de habilidades ou do conhecimento específico do autor para serem produzidos, gozarão de proteção jurídica do direito autoral. Em apenas uma leva, causou danos patrimoniais e morais.
Na verdade, o texto tratava-se de um estudo jurídico sobre a troca de arquivos na Internet, que fora anteriormente publicado em grandes portais, como Consultor Jurídico, InfoGuerra, Terra, e em jornais de alto renome, como o Jornal do Commércio de Pernambuco. Sempre com a chancela de seu autor e a devida citação de autoria, o que conferia legalidade à conduta dos publicadores.
O Juiz Silveira Cerqueira condenou a empresa ré a pagar R$2.000,00 (dois mil reais) ao autor, a título de danos morais, por não ter registrado o nome do autor no artigo científico. Apesar de sermos da opinião de que o valor foi por demais baixo, pois o potencial ofensivo da conduta é deveras alto (na lei penal, punível com 2 a 4 anos de cadeia e multa), sem dúvida alguma, trata-se de um avanço para o Direito da Informática no Brasil.
Todavia, o magistrado cometeu grave erro ao sentenciar no que tange o dano patrimonial. Decidiu que o autor, caso quisesse ver seu direito patrimonial sobre o artigo protegido, deveria ter inserido no material disponível na Internet “mensagem evidenciando a necessidade do pagamento de direitos autorais no caso de uso e reprodução das informações”. Sob este argumento, tratou que o autor teria agido com culpa concorrente na publicação de seu artigo sem sua expressa autorização.
Ora, tal assertiva se demonstra surreal à luz do ordenamento jurídico nacional e internacional, visto que a própria Constituição da República, em seu art. 5º, inc. XXVII, explicitamente prevê que aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras.
Além disso, a Lei de Direitos Autorais, em seu art. 29, inc. I dispõe que depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como sua reprodução parcial ou integral.
Para que haja ocorrência de dano patrimonial ao autor não é necessário que este tenha feito qualquer espécie de “reserva” de direitos, pois a legislação brasileira prevê o contrário, que deve haver autorização expressa do autor para que haja qualquer forma de utilização de sua obra por terceiros.
Interpretar de maneira contrária, como decidiu o juiz pernambucano, de modo a imputar ao autor a responsabilidade de expressamente consignar em sua obra a necessidade de sua prévia autorização expressa para seu uso ou reprodução, é decidir contra legem, desprezando a letra da lei. É ferir entendimentos internacionais contidos na Convenção de Berna sobre Direitos Autorais de 1886 e colidir frontalmente com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e com a Lei de Direitos Autorais de 1998.
Decidir nesse sentido, em outras palavras é abandonar todos as conquistas que os autores de obras intelectuais tiveram ao longo dos dois últimos séculos, quando não se encontravam à disposição do cidadão comum mecanismos legais de proteção à sua criação que pudessem garantir a devida contraprestação pelo trabalho desenvolvendo, voltando à barbarie jurídica.
O Brasil, juntamente com diversos outros países em todo o mundo, adotou o sistema do copyright. No idioma anglo-saxão, os direitos de autor receberam o nome de “direitos de cópia” porque estes são exatamente o pilar de sustentação de todos os outros direitos de exploração econômica da obra.
O que se viu na decisão proferida em processo que este autor promoveu contra empresa usurpadora de seus direitos foi algo teratológico, do qual, neste ponto específico, nada deve ser aproveitado para a posteridade dos estudos de direitos autorais, a não ser para a prevenção de atitudes que caminhem no mesmo sentido.
Considerações finais e reflexos econômicos
Sob certo aspecto, a sentença proferida pelo magistrado pernambucano denota a percepção da importância da figura do autor em relação à sua propriedade intelectual, sem, contudo, corretamente quantificar seu valor.
No que concerne às considerações sobre os direitos patrimoniais, o entendimento jurisprudencial brasileiro não deve rumar no caminho que deu o juiz pernambucano ao caso que decidiu. A eficaz proteção aos direitos autorais no ambiente digital depende de três fatores: tecnologia, Direito e cultura. Uma sentença que despreze a transparência normativa estimula a cultura de desrespeito à ordem estabelecida, tornando inócua qualquer tentativa de proteção por meios tecnológicos complementares.
A reiterada inobservância de preceitos básicos de proteção à propriedade intelectual pelo Estado, da forma como se constatou, pode ocasionar em sério risco de sofrermos retaliações internacionais, que poderiam acarretar em abalos catastróficos na nossa indústria de propriedade intelectual, que, aos poucos, tenta aparecer para o cenário mundial.
Além de causar explícita lesão aos direitos de autor, isso poderia implicar na criação de barreiras alfandegárias que impediriam a transferência viável de royaties ao Brasil, além de sérias desvantagens nas negociações em blocos econômicos, num mercado de propriedade intelectual que movimenta bilhões de dólares todos os anos.
No estágio em que nos encontramos neste princípio de 2004, rumo a liderar o bloco da América Latina em suas negociações para planejamento da Alca, não podemos ser vistos como desrespeitadores de tratados internacionais que protegem a propriedade intelectual, principalmente no que se refere aos entendimentos firmados pela OMPI e pela OMC, quando não houver algum aspecto de suprema importância social que justifique. É uma questão não apenas de fiel atenção à Justiça, mas de sobrevivência política no mercado econômico.
Há possibilidades de flexibilização dos direitos de autor (copyleft), como as trazidas pelas licenças públicas gerais, em que se permite livre uso, cópia e distribuição de obras, sob expressa autorização de seu titular.
Essa capacidade do autor de dispor de alguns direitos e tornar sua criação algo de livre distribuição é importantíssima e imprescindível a um desenvolvimento sustentável de democratização da informação, do conhecimento e da tecnologia para países como o Brasil.
É uma alternativa legal que possibilita o livre uso de informações, estudos e até softwares, mas que é unicamente uma questão cultural, a ser adotada ou não pelo titular da obra. Afinal, “a informação deve ser livre como o ar”, já prolatou o juiz norte-americano, contanto que respeitados os limites da legalidade.
Referências
Berkman Center for Internet & Society at Harvard Law School – http://cyber.law.harvard.edu
COLARES, Rodrigo Guimarães. A troca de arquivos na Internet em um Brasil pós-Napster, in Revista Eletrônica Consultor Jurídico. Disponível em http://conjur.uol.com.br/textos/21725/
LEMOS, Ronaldo. Como o ar – quem é dono da informação na Internet? in KAMINSKI, Omar (Coord.). Internet Legal: o Direito na Tecnologia da Informação. Curitiba: Juruá, 2003. p. 229-230.
World Intellectual Property Organization (WIPO) – http://www.wipo.org
BRASIL
Recife, 05 de janeiro de 2004
Nota de rodapé
1- As opiniões aqui esposadas não refletem necessariamente o posicionamento adotado pelo escritório de advocacia ou pelo instituto dos quais o autor é integrante.
Rodrigo Guimarães Colares é diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática, integrante da unidade de Direito Empresarial e da Tecnologia da Informação de Martorelli Advogados.