Direito do preso e prerrogativas da advocacia

Por Rodrigo de Oliveira Ribeiro

Para o pleno exercício da ampla defesa em processo penal se faz imprescindível ao defendente reunir-se com seu advogado para que este possa lhe transmitir todas as informações necessárias sobre o caso, de forma a se deduzir a melhor solução jurídica para o seu problema. Tantas quanto bastem, devem ser as reuniões. Conforme nos ensina a doutrina, “é fundamental ouvir o constituinte tantas vezes quantas forem necessárias para revisar impressões e fortalecer convicções.”[1]

Protegendo os direitos do preso, a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) relaciona entre os direitos do custodiado, em seu artigo 41, inciso IX (e vale frisar que o rol meramente exemplificativo do dispositivo não esgota, em absoluto, os direitos da pessoa humana, eis que a interpretação há de ser ampla em tema de direitos do preso. Em tais casos, permanece como direito tudo aquilo que não constitui restrição legal)[2], o direito a “entrevista pessoal e reservada com o advogado”.

Sendo estrangeiro o custodiado, ou não conhecedor da língua portuguesa, seu advogado poderá — respeitadas as exigências de cautela e de segurança inerentes a qualquer complexo penitenciário — fazer-se acompanhar de intérprete de sua confiança, independentemente de ser juramentado, nas entrevistas reservadas que mantiver com o seu cliente naquele estabelecimento prisional.[1]

Constata-se, com base em tais premissas, que o direito do preso se entrevistar com seu advogado possui contornos de verdadeira garantia. E assim foi definida pela Convenção Americana de Direitos Humanos — Pacto de San José da Costa Rica — em seu artigo 8º, 6º inciso, ao situar entre as “garantias judiciais” o “direito ao acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor.”

A imprescindibilidade da entrevista com a defesa técnica ocorre também porque reforça não só a própria defesa, mas a capacidade de autodefesa do defendente. Nunca é demais, quando abordamos o tema, relembrar o que ressaltava Augusto Thompson em seu clássico Quem são os criminosos?: “quanto mais indefeso for o paciente, mais estimulado ficará o investigador para a aplicação de suplícios.”[2] A autodefesa é reconhecida como parte do direito de defesa e protegida por lei. “O interno tem liberdade de se comunicar com tribunais, advogados e funcionários encarregados do controle de estabelecimentos carcerários”.[3]

Se, por um lado, ao preso assiste o direito de se entrevistar com sua defesa técnica, por se cuidar de imprescindível ato para que possa lutar, dentro das “regras do jogo” de um regime democrático de Direito, por sua liberdade, não há como deixar de se perceber, por outro lado, que inerente ao exercício regular da advocacia e da defesa nasce o direito, a prerrogativa profissional, de entrevistar-se com seu cliente, mesmo que preso, por configurar ato sem o qual fica prejudicado gravemente o exercício da advocacia e a eficiência da defesa ― que jamais, sob pena de retorno às piores fases pelas quais a humanidade já se deparou, poderá ser meramente simbólica. Não é por menos que o ordenamento pátrio contempla as duas frentes.

Dessarte, tutelando os direitos do advogado, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu artigo 7º, inciso III, reserva a garantia do réu comunicar-se, de forma pessoal e reservada, com seu advogado.

O direito à entrevista pessoal e reservada possui relevância tal que o advogado pode exercê-la independentemente de procuração. Por vezes o advogado é contratado pela família do preso e seu primeiro contato ocorrerá na unidade prisional em que estiver seu cliente, o qual, a depender do resultado da entrevista, poderá, ou não, contratar o advogado. Nessa situação —e em diversas outras— se afigura uma exigência impossível de ser atendida, e que representaria um obstáculo ilegal e ilegítimo ao exercício regular da defesa.

Mesmo sem procuração, ainda que esteja o cliente preso, detido ou recolhido em estabelecimento civil ou militar, e ainda mesmo que esteja considerado incomunicável. É o que prevê o inciso III do artigo 7º do EOAB, in verbis:

Art. 7º – São direitos do advogado:

(…)

III – comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis.

Com efeito, ao advogado não só é garantido se comunicar com seu cliente, como o ratifica Paulo Lôbo, “sem qualquer interferência ou impedimento do estabelecimento prisional e dos agentes policiais.”[4] O descumprimento dessa prerrogativa, vale dizer, importa em crime de abuso de autoridade, consoante leitura do artigo 3º, alínea “j”, da Lei 4.898/1965, que define como abuso de autoridade qualquer atentado “aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional.”

Embora sejam aplicáveis analogicamente ao defensor público as garantias e prerrogativas previstas no Estatuto da Advocacia, houve por bem o legislador em conferir no rol das prerrogativas previstas ao advogado do povo, com a Lei Complementar 132/2009, a proteção à entrevista pessoal e reservada com o assistido, garantindo, ainda, que tal deve ocorrer independentemente de prévio agendamento. Veio em bom tempo a previsão, diante de situações que muito se repetem pelo país, a de negar-se o direito a comunicação com o cliente e o acesso à unidade prisional em razão de exigir-se anterior agendamento da visita.

Com a nova redação, o inciso VI do artigo 128 da Lei complementar 80, de 12 de janeiro de 1994, ficou assim cunhado:

Art. 128. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Estado, dentre outras que a lei local estabelecer:

(…)

VI – comunicar-se, pessoal e reservadamente, com seus assistidos, ainda quando estes se acharem presos ou detidos, mesmo incomunicáveis, tendo livre ingresso em estabelecimentos policiais, prisionais e de internação coletiva, independentemente de prévio agendamento;

A exigência de prévio agendamento não é tolerada nem mesmo ao preso submetido ao famigerado e inconstitucional Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Esse foi o entendimento unânime da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao anular os efeitos da Resolução 49 da Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo, que determinava o prévio agendamento da entrevista entre preso e seu defensor. O voto condutor, do relator, ministro Herman Benjamin, muito bem analisou o tema:

“Cuida-se, originariamente, de Mandado de Segurança impetrado pela recorrente contra ato do Secretário da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, apontando como ato coator a edição da Resolução SAP 49, norma que disciplina o direito de visita e de entrevista dos advogados com seus clientes presos no Regime Disciplinar Diferenciado.

A Seccional paulista da OAB alega que a exigência de prévio agendamento, prevista na norma citada, vulnera os princípios constitucionais da Ampla Defesa e da Assistência de Advogado ao Preso, além de malferir as normas que regem a atividade advocatícia e o regime prisional.

A irresignação da OAB/SP merece prosperar.

A Resolução 49 da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, em seus arts. 5º e 6º, prevê:

Art. 5º – As entrevistas com advogado deverão ser previamente agendadas, mediante requerimento, escrito ou oral, à Direção do estabelecimento, que designará imediatamente data e horário para o atendimento reservado, dentro de 10 dias subseqüentes.

§ 1º – Para a designação da data, a Direção observará a fundamentação do pedido, a conveniência do estabelecimento, especialmente a segurança da unidade, do advogado, dos funcionários e dos presos.

§ 2º – Comprovada documentalmente a urgência, a Direção deverá, de imediato, autorizar a entrevista.

Art. 6º – Ficam sujeitos às diretrizes desta Resolução todos os presos que cumprem pena em regime disciplinar diferenciado, ainda que em trânsito em outra unidade.

A citada norma restringe substancialmente direito conferido por Lei Ordinária aos advogados, conforme se depreende da leitura do art. 7º do Estatuto dos Advogados, Lei 8.906/1994:

Art. 7º – São direitos do advogado:

(…)

III – comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis;

(…)

VI – ingressar livremente:

(…)

b) nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios de justiça, serviços notariais e de registro, e, no caso de delegacias e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independentemente da presença de seus titulares; (grifei)

Nesse mesmo sentido o art. 41, IX e XII, da Lei de Execuções Penais, que dispõe sobre os direitos do preso:

Art. 41 – Constituem direitos do preso:

(…)

IX – entrevista pessoal e reservada com o advogado;

(…)

XII – igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;

Dessume-se claramente das normas tidas por malferidas que o ato normativo editado pelo ilustre Secretário de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo contraria frontalmente o direito líquido e certo dos causídicos e de seus clientes.

O prévio agendamento das visitas, mediante requerimento à Direção do estabelecimento prisional, é exigência que fere o direito do advogado de comunicar-se com cliente recolhido a estabelecimento civil, ainda que incomunicável, conforme preceitua o citado artigo 7º da Lei 8.906/1994, norma hierarquicamente superior ao ato impugnado.

Ademais, a mesma lei prevê o livre acesso do advogado às dependências de prisões, mesmo fora de expediente e independemente da presença de seus titulares, garantia que não poderia ter sido limitada pela Resolução SAP 49.

Igualmente lesionado o direito do condenado à entrevista pessoal e reservada com seu advogado, prerrogativa que independe do fato de o preso estar submetido ao Regime Disciplinar Diferenciado, pois, ainda assim, tem direito à igualdade de tratamento, nos termos do artigo 41, inciso XII, da Lei de Execuções Penais.

Em caso idêntico, ocorrido no Estado do Mato Grosso, onde o Secretário da Administração Penitenciária daquele ente da federação editou Portaria restringindo o direito dos advogados e dos presos quanto à visitação, esta Corte firmou o seguinte entendimento:

ADMINISTRATIVO – DIREITO DO PRESO – ENTREVISTA COM ADVOGADO – ESTATUTO DA OAB – LEI DE EXECUÇÕES PENAIS – RESTRIÇÃO DE DIREITOS POR ATO ADMINISTRATIVO – IMPOSSIBILIDADE.

1. É ilegal o teor do art. 5º da Portaria 15/2003/GAB/SEJUSP, do Estado de Mato Grosso, que estabelece que a entrevista entre o detento e o advogado deve ser feita com prévio agendamento, mediante requerimento fundamentado dirigido à direção do presídio, podendo ser atendido no prazo de até 10 (dez) dias, observando-se a conveniência da direção.

2. A lei assegura o direito do preso a entrevista pessoal e reservada com o seu advogado (art. 41, IX, da Lei 7.210/84), bem como o direito do advogado de comunicar-se com os seus clientes presos, detidos ou recolhidos em estabelecimento civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis (art. 7º, III, da Lei 8.906/94).

3. Qualquer tipo de restrição a esses direitos somente pode ser estabelecida por lei.

4. Recurso especial improvido.
(REsp 673.851/MT, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/11/2005, DJ 21/11/2005 p. 187, grifei)

Em seu parecer, o representante do Parquet sustenta que, “confrontando-se a letra da Resolução guerreada com as normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e da Lei de Execuções Penais sobre o tema, exsurge claramente a ilegalidade daquele ato administrativo” (fl. 488), razão pela qual opina pelo provimento do presente apelo nobre.

Conclui-se, da análise comparativa entre o ato coator ensejador do mandamus – a edição da Resolução SAP 49 – e as Leis 8.906/1994 e 7.210/1984, pela ilegalidade daquela norma, razão pela qual o acórdão deve ser reformado, com a concessão da pleiteada segurança.

Ressalva-se, contudo, a possibilidade da Administração Penitenciária – de forma motivada, individualizada e circunstancial – disciplinar a visita do Advogado por razões excepcionais, como por exemplo a garantia da segurança do próprio causídico ou dos outros presos.

Ante o exposto, dou provimento ao Recurso Especial.

É como voto.”[5]

A Constituição do Estado de São Paulo cuidou de abordar o tema, ao garantir a privacidade da entrevista entre advogado e preso, em seu artigo 105:

Artigo 105 – O Poder Executivo manterá, no sistema prisional e nos distritos policiais, instalações destinadas ao contato privado do advogado com o cliente preso.

Como se percebe, o advogado somente pode ser impedido de comunicar-se com seu cliente nos casos em que isso puder colocar em risco a segurança sua ou, principalmente, a dos demais presos, como na constância de um motim. Isso significa que tal restrição é excepcionalíssima.

Observando o caráter bifronte da prerrogativa, a doutrina aduz que:

“trata-se de um direito que tem seu fundamento no âmbito da Constituição Federal, que garante aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes (…).

A proteção contra qualquer lesão de direito individual do preso e a ampla defesa no processo penal não estariam asseguradas se não se permitisse a livre entrevista deste com seu advogado, mesmo na hipótese de se encontrar incomunicável. As comunicações do preso com seu advogado têm especial importância no meio penitenciário, dada a importância que tem para este essa relação profissional, tanto no caso de estar respondendo a uma ação penal, como na hipótese de execução penal. Assim, devem ser concedidas as maiores facilidades para essa comunicação pessoal que, por ser reservada, exige que se lhe destine lugar apropriado e digno no estabelecimento penitenciário, garantindo o sigilo que deve presidir essas relações do cliente com seu procurador judicial. Não é indispensável que o advogado, para manter entrevista com o preso, já seja seu procurador constituído ou designado, pois o preso poderá decidir-se durante a comunicação pessoal por constituí-lo.”[6]

A matéria encontra nascedouro constitucional não somente no princípio da ampla defesa, assegurado no artigo 5º, inciso LV, mas também da garantia insculpida no inciso LXIII do mesmo dispositivo, que assegura que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.”

Do segredo profissional
A questão encontra-se intimamente relacionada com o tema do segredo profissional na advocacia. O direito ao sigilo profissional, mais que uma prerrogativa do advogado, é um direito do cliente, sendo correta a observação da doutrina ao aduzir que o fundamento da proteção do segredo profissional — tanto em sede de direito privado, como na do direito penal, ou na do direito administrativo — reside nos Direitos Humanos,

o segredo profissional encontra as suas raízes mais profundas no princípio fundamental da inviolabilidade da pessoa humana, da sua dignidade e da intimidade da sua vida privada, em todas as manifestações que são próprias destes direitos, designadamente as privadas, morais, artísticas, técnicas, econômicas, jurídicas, sentimentais, intelectuais, físicas e psíquicas. Logo, “le secret professionnel reléve, même sans texte, de l’interêt géneral de l’humanité”.[7]

Por tais razões é que o sigilo profissional na advocacia possui caráter estatutário. O Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, de 1995, em seu capítulo III, consigna em seu artigo 25 que o “sigilo profissional é inerente à profissão.”

No direito norte-americano, denomina-se privilege como sendo uma vantagem especial e exclusiva, ou um direito, como um benefício legal, um poder ou imunidade. O mais antigo privilege é o attorney-client privilege, cuja finalidade é proteger a tutela do segredo e a confiança entre o advogado e seu cliente.

Nesta linha, o Código Deontológico do Conseil Consultatif des Barreaux Européens (Conselho das Ordens dos Advogados da Comunidade Européia) prevê como sendo o sigilo profissional o direito e o dever primeiro e fundamental do advogado. Em seus artigos 2.3.1., 2.3.2. e 2.3.3., respectivamente, prevê-se que

“É da essência da missão do Advogado que ele seja depositário de segredos do seu cliente e destinatário de informações confidenciais. Sem a garantia de confidencialidade não pode haver confiança. O segredo profissional é, assim, reconhecido como o direito e o dever primeiro e fundamental do Advogado.”;

“O advogado deve, pois, respeitar a confidencialidade de toda a informação que lhe for fornecida pelo seu cliente, ou que receba acerca deste ou de terceiros, no âmbito da prestação de serviços ao seu cliente”;

“A obrigação de segredo profissional não está limitada no tempo.”

A doutrina portuguesa[8] registra que a natureza da obrigação de segredo profissional está intimamente ligada à natureza da própria profissão e tem uma tradição histórica marcante. O tema vem referido desde o Decreto 12.334 de 18 de setembro do ano de 926 que determinava, em seu artigo 50, ao advogado, “guardar segredo o mais absoluto, não lhe sendo lícito testemunhar contra aquele que lhe confiou a defesa da liberdade, honra e fazenda.”

Conforme enaltecido em boas tintas pela abalizada doutrina, “tão importante é o direito de o preso ter acesso a outras pessoas e, sobretudo, ao advogado, que, mesmo sob o Estado de Defesa, é vedada a sua incomunicabilidade (CF, art. 136, IV). (…) é o advogado quem, em primeiro lugar, terá a oportunidade de constatar a higidez física e moral e zelar por ela, reclamando quando o preso for desrespeitado no que concerne a direitos fundamentais.”[9]

A arquitetura dos parlatórios
Como é sabido, os parlatórios — ou locutórios, como também são chamados —, são os locais onde ocorrem as comunicações entre advogado e seu cliente, quando este encontra-se custodiado. Possuem arquitetura diversa a depender da unidade da federação em que se encontram, em que pese estarmos sob o pálio da mesma Carta Política.

Não se ignoram os efeitos objetivos que a arquitetura produz no comportamento humano. Foucault, que interpreta a arquitetura como suporte à construção de sua genealogia do conhecimento, analisa muito bem esse fenômeno quando expõe o panóptico benthaniano: “O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens.”[10]

Ainda que não tratemos de panópticos, mas de parlatórios (embora os monitorados por câmeras assim pareçam), é certo que a sua arquitetura influi na forma pela qual o preso e seu patrono exercerão o direito a entrevista pessoal e reservada.

Observe-se o caso ocorrido em 2008, em Santa Catarina, onde se imputou a um advogado de ter “passado drogas a um cliente.” Tal fato provocou um protesto por parte de significativo segmento da advocacia local, perante à Ordem dos Advogados daquele estado, para que fossem reformados os parlatórios da Penitenciária de São Pedro de Alcântara, de modo a serem instaladas câmeras para monitoramento das entrevistas. Além disso, pleiteavam cabines individuais para o atendimento. Agravando ainda a situação, pararam de atender os presos até que os parlatórios fossem reestruturados.[11]

A hipótese revela como pode se verificar na realidade prisional a tese foucaultiana sobre o funcionamento da prisão, com suas estratégias, “seus discursos não formulados, suas astúcias que finalmente não são de ninguém, mas que são no entanto vividas, assegurando o funcionamento e a permanência da instituição.”[12]

A inexistência de uma estrutura condizente com as necessidades inerentes à reserva e pessoalidade constitucionalmente previstas para essas entrevistas provoca tais situações e reações, caracterizadoras de evidente prejuízo às defesas e aos cidadãos presos, a ponto de provocar o pleito irrazoável e contrário aos direitos fundamentais do preso, essenciais ao exercício da advocacia, para que as entrevistas fossem monitoradas. Neste ponto, posicionamo-nos no sentido de que isso fere o caráter reservado do diálogo.

Palmilhando a mesma trilha, o entendimento que norteou, em 2006, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária a editar resolução e recomendar, em seu artigo 1º,

“em obediência às garantias e princípios constitucionais, que a inviolabilidade da privacidade nas entrevistas do preso com seu advogado seja assegurada em todas as unidades prisionais.”

E, em seu parágrafo único, determina que

“Para efetivação desta recomendação, o parlatório ou ambiente equivalente onde se der a entrevista, não poderá ser monitorado por meio eletrônico de qualquer natureza.”[13]

É corrente que a melhor forma de se controlar eventual transferência de objeto para o preso consiste em ser o mesmo revistado, pelo agente penitenciário, antes da entrevista com o advogado e, concluída a entrevista pessoal e reservada, revistá-lo novamente. Em princípio, não há como esconder absolutamente nada. Qualquer arma, droga ou celular são encontrados.

Todavia, ocorre por vezes para a administração de unidades prisionais que aplicar tal procedimento implica em colocar nas mãos de alguns agentes penitenciários todo o controle do que entra ou pode entrar por esta via. Para evitar isso, opta-se, assim, por vezes — por muitas vezes, infelizmente — por uma solução estrutural, por uma arquitetura dos parlatórios que veda por completo o contato com o advogado com o preso, e o isole através de um interfone e uma placa de vidro.

Nos valemos mais uma vez de Foucault, para quem esse aparelho arquitetural é “uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce.”[14]

Assim, não há porque se preocupar com o que o advogado pode trazer (até porque é vedado revistá-lo, admitindo-se o uso de detectores de metal, pelo sistema de segurança semelhante ao existente nos aeroportos) tampouco com o que o preso poderá conter — não precisando confiar na incorruptibilidade dos agentes, dada a considerada intransponibilidade da estrutura — a estrutura concreta de tijolos, metal e areia é, antes de mais nada, incorruptível.

Da diversidade dos locutórios e as normas atinentes
No ordenamento jurídico brasileiro há a carência de norma definidora dos parâmetros objetivos que devem ser utilizados na construção dos parlatórios.

Em razão da ausência de norma legal, temos uma considerável diversidade de instalações por toda a federação – muitas em dissonância com as regras gerais que regulamentam a matéria, garantidoras da confidencialidade da entrevista.

Há estados em que locutórios são monitorados por câmeras, há os equipados com interfones (em alguns locais, a parte que cabe ao preso é equipada com aparelho de alto-falante embutido na parede, fazendo com que tudo o que se fale e se escute seja devassado), há os contíguos, chamados parlatórios coletivos, os insalubres…

A arquitetura, a aeração, a higiene e a engenharia de cada parlatório influem no exercício da ampla defesa e atingem o due process of law na mesma medida em que influem na possibilidade e efetividade de o preso, em especial o sob custódia cautelar, entrevistar-se pessoal e reservadamente com o seu advogado.

Locutórios contíguos ou coletivos permitem que a conversa seja devassada pelos que estejam nas janelas vizinhas (por vezes um corréu preventivamente preso e seu advogado, com defesas conflitantes), atingindo assim o caráter reservado da comunicação.

A utilização de interfones também afronta ao caráter pessoal da entrevista, não se conferindo a segurança para a conversa confidencial, em especial os cujos alto-falantes estejam embutidos na parede e toda a conversa seja amplificada pelos ares. No início de 2008 foi revelado que, no Reino Unido, centenas de advogados vinham sendo grampeados em suas conversas com seus clientes nos presídios.[15]

O local há de se encontrar limpo e com instalações condignas. A iluminação há de ser adequada para que se permita a leitura, eis que não raro cópias do processo e documentos a ele relacionados precisam ser lidos pelo encarcerado e debatidos com seu patrono. Há de se ter onde o patrono sentar-se para conversar com seu cliente, sendo descabido obrigar que tenha sua conversa de pé por um interfone, como se vê algures.

No entanto, há de se observar que o Departamento Penitenciário Nacional não estabelece maiores critérios atinentes à engenharia além da metragem mínima dos locutórios.

Em sua publicação relacionada, o DEPEN busca estabelecer “Diretrizes Básicas para construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais,”[16] prevêem-se os parlatórios, mas apenas sua limitação espacial (15m2, para seis unidades), inexistindo qualquer orientação sobre como, por exemplo, vedar os locutórios coletivos violadores do caráter reservado das entrevistas, tão comuns em prisões por todo o país, assim como inexistem diretrizes métricas para que se evitem locutórios contíguos, assim como inexistem parâmetros de isolamento acústico, apesar das inovações tecnológicas atualmente existentes.

Construção jurisprudencial diante da Constituição
Foi em 2007, por ocasião do julgamento de questão incidental na extradição 1.085/IT, que o Supremo Tribunal Federal se manifestou, pela voz de seu decano, ministro Celso de Mello, de forma objetiva a analisar a matéria, produzindo matéria-prima jurisprudencial para a criação de balizas, em decisão que assim firmou:

Ao apreciar pedido formulado pelo Senhor Advogado do ora extraditando, que invocou a prerrogativa profissional que lhe assegura o art. 7º, III, da Lei nº 8.906/94 (fls. 21), vim a deferir tal postulação, autorizando-o, nos termos do Estatuto da Advocacia, “a comunicar-se e a avistar-se, reservadamente, com o seu cliente, (…), no local em que custodiado, ”(…) sem as limitações naturais impostas pela própria estrutura física do locutório da carceragem da Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal no Distrito Federal, de modo a que, sem qualquer barreira ou obstáculo, possam, advogado e cliente, juntos, manusear cópia dos autos do pedido de extradição, a fim que a defesa possa instruir-se a propósito dos fatos atribuídos ao extraditando, ocorridos fora do Território Nacional”

(…)

Impõe-se, ao Poder Público, o respeito efetivo a essas garantias constitucionais e legais (que são indisponíveis), bem assim às prerrogativas profissionais que assistem, nos termos da lei, aos Advogados, não se revelando legítima, sob tal perspectiva, a invocação, pelo Estado, de quaisquer dificuldades de ordem material que possam comprometer, afetando-a gravemente, a eficácia dos direitos assegurados pelo ordenamento positivo nacional.

As notórias dificuldades (e limitações) de ordem material que afligem o Poder Público, notadamente no âmbito prisional, não podem ser opostas ao exercício dos direitos e garantias individuais consagrados pelo estatuto fundamental, sob pena de inaceitável transgressão – que jamais poderá ser tolerada por esta Suprema Corte – ao que proclama a própria Constituição da República, especialmente em tema do direito de defesa.

(…)

Na realidade, as prerrogativas profissionais dos Advogados representam emanações da própria Constituição da República, pois, embora explicitadas no Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), foram concebidas com o elevado propósito de viabilizar a defesa da integridade das liberdades públicas, tais como formuladas e proclamadas em nosso ordenamento constitucional. As prerrogativas profissionais de que se acham

investidos os Advogados, muito mais do que faculdades jurídicas que lhes são inerentes, traduzem, na concreção de seu alcance, meios essenciais destinados a ensejar a proteção e o amparo dos direitos e garantias que o sistema de direito constitucional reconhece às pessoas em geral (sejam elas brasileiras ou estrangeiras), notadamente quando submetidas à atividade persecutória e ao poder de coerção do Estado. É por tal razão que as prerrogativas profissionais não devem ser confundidas nem identificadas com meros privilégios de índole corporativa ou de caráter estamental, pois destinam-se, enquanto instrumentos vocacionados a preservar a atuação independente dos Advogados, a conferir efetividade às franquias constitucionais invocadas em defesa daqueles cujos interesses lhes são confiados.

(…)

Impõe-se destacar, neste ponto, ante a extrema pertinência de que se revestem, os valiosos comentários que Alberto Zacharias Toron e Alexandra Szafir fazem a propósito da comunicação pessoal e reservada do advogado com o seu cliente (Prerrogativas Profissionais do Advogado, p. 145/149, 2006, OAB Editora): “Tão importante é o direito de o preso ter acesso a outras pessoas e, sobretudo, ao advogado, que, mesmo sob o Estado de Defesa, é vedada a sua incomunicabilidade (CF, artigo 136, IV). De fato, é o advogado quem, em primeiro lugar, terá a oportunidade de constatar a higidez física e moral e zelar por ela, reclamando quando o preso for desrespeitado no que concerne a direitos fundamentais. (…)

A imposição ao advogado de que sua conversa com o seu assistido se dê por meio de um interfone atenta contra o caráter pessoal da conversa (…). Mesmo porque, por outro lado, a utilização dos interfones não oferece ao advogado a segurança necessária quanto ao sigilo da sua conversa com o preso. Se o acesso amplo e franco do cliente detido ao advogado é, como disse o ministro Xavier de Albuquerque, ”consubstancial à defesa ampla garantida na Constituição”, seu cerceamento mediante a imposição da utilização do interfone viola não apenas a Lei 9.806/94, mas a própria Constituição no que tem de mais caro quando relacionado ao sistema penal: a ampla defesa do acusado.

A liberdade da advocacia e o segredo profissional acabam sendo não apenas neutralizados, mas mesquinhamente pisoteados. A utilização de interfones como veículo de comunicação entre os advogados e seus clientes é intolerável diante do Estatuto do Advogado e dos direitos e garantias que a própria Constituição enumera. Por outro lado, tão grave quanto a imposição de interfones para a comunicação entre clientes e advogados, são os parlatórios coletivos em Presídios onde uns ouvem a conversa dos outros, que se dão simultaneamente num espaço sem qualquer privacidade. (…). Convém relembrar a antiga lição de que o maior conhecedor dos fatos é o cliente. Daí porque a conversa que o advogado estabelece com ele deve ser a mais aberta, franca e detalhada possível. Barreiras físicas praticamente impedem um contato produtivo. Aliás, em muitos casos, o advogado e o preso são obrigados a ficar de pé horas a fio na conversa. Tudo isso viola a amplitude do direito de defesa, já que o advogado fica privado da utilização dos meios inerentes ao seu pleno exercício. Dúvida, porém, não pode haver de que os parlatórios coletivos violam escancaradamente o direito que o advogado tem de conversar reservadamente com seu cliente. O advérbio sublinhado não quer dizer outra coisa senão privadamente, isoladamente, sem ninguém ouvindo. Quando tal condição não se estabelece, viola-se a prerrogativa assegurada ao advogado que pode ser remediada com a impetração de mandado de segurança ou, entendendo-se agredido o direito à ampla defesa, com o manejo de um ”habeas corpus” (…). Causa perplexidade, pesa dizê-lo, que, em pleno período democrático, práticas autoritárias, denunciadas há mais de cinqüenta anos, continuem vigorando entre nós, só que agora ”legitimadas” por uma consciência que se afirma na eficácia repressiva ou em nome da segurança, como se estes valores pudessem se sobrepor, ”tout court”, a direitos e garantias individuais e a prerrogativas profissionais. Enquanto não se criar uma consciência comprometida com segurança dentro de regras que funcionam como um sistema de garantias, e não a qualquer custo, pagaremos um alto preço pelo desrespeito a valores maiores que são as regras matrizes de uma sociedade regida por uma Constituição.” (grifei) Vê-se, portanto, para além de qualquer dúvida, que a certeza da integridade dos direitos e garantias que o sistema jurídico reconhece, constitucionalmente, a qualquer pessoa, independentemente de sua origem nacional ou de sua condição social, repousa no efetivo respeito que se atribua às prerrogativas profissionais asseguradas, aos Advogados, pela legislação da República, especialmente pelo que dispõe, em prescrição concretizadora da Constituição (art. 133), o Estatuto da Advocacia. Em suma: qualquer conduta dos agentes e órgãos do Estado que afronte direitos e garantias individuais, como o direito de defesa, cerceando e desrespeitando as prerrogativas profissionais do Advogado, representa um inaceitável ato de ofensa à própria Constituição e, como tal, não será admitido nem jamais tolerado pelo Supremo Tribunal Federal. (Grifamos).

(STF. Extradição 1.085/IT, DJ 1/8/2007, julgamento em 26/6/2007).

A posição emanada pelo Supremo Tribunal, ao realizar a leitura constitucional das condições dos parlatórios, serve como pauta para uma idéia de padronização, em conformidade com o espírito e limitações impostas em nossa Carta Política, dos parlatórios das unidades prisionais de todos os estados da federação, os quais, sob a égide da mesma constituição, pelo princípio da isonomia, têm de receber o mesmo tratamento, eis que todos possuem os mesmos direitos e garantias, independentemente do estado da federação em que estejam.

A limitação imposta pela constituição federal é assim analisada pelo constitucionalista José Afonso da Silva:

“Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem os dos Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas daquela lei fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela estabelecidos.”[17]

Pelo princípio da supremacia da Constituição Federal, é preciso que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. Na autorizada lição do citado jurista,

“Essa conformidade com os ditames constitucionais, agora, não se satisfaz apenas com a atuação positiva de acordo com a constituição. Exige mais, pois omitir a aplicação de normas constitucionais, quando a Constituição assim a determina, também constitui conduta inconstitucional.”[18]

O modelo constitucional, da supremacia da Constituição, inspirado pela experiência americana, envolve a constitucionalização dos direitos fundamentais, cuja proteção cabe ao Judiciário.[19]

Cabível à hipótese a interpretação pela máxima efetividade, evitando-se a hermenêutica tradicional com o

reconhecimento da normatividade dos princípios e valores constitucionais. Conforme lição de Celso Ribeiros Bastos, “as normas constitucionais devem ser tomadas como normas atuais e não como preceitos de uma Constituição futura, destituída de eficácia imediata.”[20]

A prática de monitorar a conversa entre custodiados e sua defesa técnica, além de ser inconstitucional, abre perigosos precedentes e representa grave violação dos direitos humanos, dos direitos do preso, e dos direitos dos advogados. A única exceção ocorre no caso em que o próprio advogado é investigado. Não sendo esta a hipótese, não há qualquer justificativa que permita a flexibilização da sagrada garantia à entrevista pessoal e reservada.

Enquanto inexistir norma jurídica específica que traga aos diferentes entes federados um padrão regular, para todo o território nacional, para a realização das entrevistas entre advogado e seu cliente preso, o método de interpretação da constituição que deve inspirar o aplicador da lei deve ser aquele que atribui às normas constitucionais o sentido que lhes empreste maior eficácia. A conjugação das garantias constitucionais (CRFB, arts. 5º, LV, LXIII e 136, IV) e das normas infra-constitucionais (Lei 7.210/1984, EOAB, LC 80/1994) com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, desde já autoriza sejam iniciadas profundas reformas em nossas unidades prisionais de modo a adequá-las às garantias existentes, de forma a se possibilitar, de forma isonômica, em todo o país, o direito a entrevista pessoal e reservada, direito humano fundamental, prerrogativa primordial e inerente ao exercício da missão que é a advocacia.

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