Por Afonso de Paula Pinheiro Rocha
“Na maior parte dos ofícios mecânicos, o êxito é quase certo; mas é muito incerto nas profissões liberais. Fazei o vosso filho aprendiz de sapateiro, e praticamente não tereis dúvidas de que ele aprenderá a fazer um par de sapatos; mas mandai-o estudar leis e haverá pelo menos vinte probabilidades para uma de ele não conseguir a proficiência necessária para poder ganhar a vida nesta atividade”.
(Adam Smith, Riqueza das Nações, 1776)
Introdução:
Parece-me que este é um tema ao qual gostaria de nem ao menos ter tido a idéia de abordar, mas ainda assim é um tema que deve ser discutido. Que estas poucas linhas sirvam de motivo para debate e reflexão a cerca dessa questão que talvez passe desapercebida frente aos olhos tão ocupados de tantos universitários.
Antes de entrar no tema, convém fazer algumas perguntas iniciais: Qual é o propósito de cada estudante ao entrar numa faculdade de Direito? Essa questão muitas vezes posta por professores nos primeiros dias de aula e tida por muitos como até ingênua esconde um grande problema, mais e mais as respostas que se tem obtido são relativas ao mercado de trabalho, a busca de recompensa financeira e as possibilidades de sucesso profissional. Aquelas respostas revolucionárias e altruísticas têm se tornado mais escassas, mais envergonhadas e mais e mais desprezadas.
Segue outra pergunta: por que o Direito tido como veículo de transformação social vem atualmente carecendo de sonhadores, revolucionários e lutadores? Acredito que todo o mundo jurídico está em crise bem como toda nossa sociedade, e o motivo maior é a apatia que se instalou absoluta no seio da nossa comunidade. Apatia tal que conduziu a sociedade a uma espécie de conformismo, onde se torna mais cômodo lidar com o mundo e aprender a jogar da maneira como ele se põe do que lutar para muda-lo. O pior ainda é que muitas vezes perdemos a própria crença de que podemos mudar o mundo.
Frente ao bombardeio diário de notícias como corrupção, desmandos, aumento de criminalidade, insuficiência das prestações do Estado – saúde, educação, moradia – acabamos por nos acostumar com fatos que nos deveriam ultrajar. Sob pena de não conseguirmos sobreviver a tal sociedade, somos forçados a nos adaptar, e para suportar o peso do dia a dia acabamos por nos convencermos que as coisas são do jeito que são por sua própria natureza e que aquele sonho de melhores condições deve se manter como é, um sonho. Até mesmo as valentes tentativas de mudança social; muitas vezes fracassadas, tornam ainda mais difícil a crença numa mudança de postura da sociedade.
Nós nos tornamos cativos das mais diversas formas, seja pela mídia, que fomenta um mundo de ilusões e manipula as informações que nos chegam. Seja pelos mais variados meios de escapismo e alienação que o consumismo de nossa sociedade nos oferece, seja pelo individualismo tão em voga atualmente, o fato é que cada vez mais nos distanciamos do questionar os problemas que temos e quando paramos de refletir forçosamente paramos de achar soluções.
Desumanização das Ciências Humanas:
Outro fato interessante é notar que tanto no Direito como nas ciências humanas, o próprio desenvolvimento dessas ciências é ligado a mudanças, revoluções, conquistas sociais. Era de se esperar que o contato com essa realidade factual de possibilidade de mudança fosse servir de combustível para que o carro da história fosse ainda mais longe, houvesse mais conquistas e uma cada vez maior consciência social do papel do indivíduo frente ao todo.
Segue, que inevitavelmente me faço essa pergunta: O que aconteceu então com as ciências humanas, e particularmente o Direito?
A busca dessa resposta remete-nos a Adam Smith, que nos aponta a certeza que a tecnicidade nos confere, e talvez por nossa natureza humana sempre tão ávida por certezas e absolutos, nos deixamos levar pela tecnicidade. Segue que por mais que a humanidade tenha evoluído tecnicamente nosso espírito não acompanhou o passo. Enquanto espécie, somos ainda crianças, apegadas a medos, preconceitos, superstições e “birras infantis” que muitas vezes levam a guerras de nações, genocídios e miséria. Eis talvez a razão do pungente comentário de Einstein: “Época triste a nossa… mais fácil quebrar um átomo do que o preconceito!” Mais triste ainda é que essa época parece se perpetuar.
O prestigio das ciências exatas, lógicas, avalorativas é grande. Consubstanciado com o consumismo atual, que cria nos indivíduos a “necessidade” dos itens produzidos pela indústria, torna as atividades filosóficas e as ciências reflexivas uma perda de tempo, e mais ainda num mundo capitalista perda de dinheiro.
Gostaria de apontar que mais e mais o contato humano vem sendo banido da sociedade atual. Rapidamente surgem vários exemplos de como a necessidade por praticidade e eficiência vem nos afastando uns dos outros. Proliferam os atendimentos self-service, mais e mais tratamos com máquinas ao invés de seres humanos. Ainda para complementar essa desilusão, grandes invenções e descobertas que poderiam ser usadas para alavancar o desenvolvimento do espírito humano são deturpadas. Segue como exemplo a Internet, que poderia expor o indivíduo a um grande volume nunca dantes concebido de conhecimento humano, é usada por muitos como simples meio de diversão, fonte de joguinhos e banalidades para passatempo.
Talvez por estarmos rodeados de máquinas frias nosso calor humano arrefece. Dessa forma trazemos para as ciências sociais essa frieza. No Direito temos mais e mais essa objetividade nociva, os alunos se prendem cada vez mais aos códigos, as cadeiras de formação humanística são paulatinamente extintas dos currículos e os universitários ficam com uma carência cultural grande, o que vai refletir-se no futuro. Não teremos mais grandes bacharéis em direito como outrora, perderemos os grandes mestres e estaremos num mundo com apenas técnicos jurídicos, vivendo ao arbítrio do legislador e o mais grave, perderemos em muito os ideais de Justiça, eqüidade, eticidade e moral, que infelizmente já se encontram cada vez menos sendo discutidos nos cursos de direito.
Apatia na Universidade:
Eis que a universidade vem a ser vítima dessa conjuntura. Ao entrar numa universidade, esperamos uma disposição da instituição nos expor a um universo de conhecimentos. Deveriam os alunos de certo modo apaixonar-se pela profissão e pelo estudo do oficio. Os corredores da universidade deveriam ser repletos de conversas e ânimos inflamados discutindo sobre as questões do direito e da justiça. É triste perceber que é de maior interesse dos alunos a programação dos eventos do fim de semana do que os assuntos que vão ser de uma vivência diária por toda a vida profissional. Outro ponto de tristeza, a universidade perdeu a glória frente aos alunos, não se procura ouvir nas salas o eco de grandes lições ministradas, não são exaltados os grandes serviços prestados a comunidade. As fotos nas placas de formatura se tornam apenas um mar de rostos pelo qual passamos diariamente e esquecemos que em cada foto há uma história de um aluno que como nós vivenciou a realidade da universidade.
Era de se esperar que como estudantes de uma universidade pública, também adotássemos uma postura pública, onde nos fosse sempre presente à idéia de que fazemos parte do todo social e temos para com esse todo social que nos mantém na universidade uma grande responsabilidade. Não temos apenas a responsabilidade de sermos bons alunos, temos a responsabilidade de nos tornar melhores pessoas. Deveríamos retribuir para o todo social não como que impelidos por uma dívida, mas sim por que é o certo a fazer. No entanto agimos muitas vezes como alunos particulares, preocupados tão somente com nossas notas, nosso histórico, nossos créditos, segue que nos tornamos parasitas de nossa própria universidade, esperando sempre e tão somente receber, nunca nos dispondo a fazer e sempre a esperar que outro o faça por nós.
Pode parecer um pouco fora de propósito por tantas linhas falar de como deveria ser a faculdade ou como deve ser o aluno, enquanto talvez melhor faríamos se nos concentrássemos no como estão as coisas e no que fazer para muda-las. Eis que aí se ressalta uma magnífica peculiaridade do direito, o mais recente aluno já sabe que o Direito é um “dever-ser”, “ter que ser para com o outro”.
É esse o fato que talvez nos passe desapercebido, devemos ter sempre em vista o que devemos ser, ainda que nunca sejamos ou nunca venhamos a ser, mas é necessário que sempre devamos ser. Aquele ditado milenar de que o importante é a viagem, não a chegada cabe bem aqui. Não procede desistir somente por que se é difícil ou se sabe que é impossível obter determinada meta, compete sempre “dever ser” tentar; e não cabe ao indivíduo humano mais que isso, a cada dia tentar ser melhor, mais justo e mais humano.
Oscar Wilde em brilhante escrito aponta: “A miséria e a pobreza são de tal modo degradantes e exercem um efeito tão paralizante sobre a natureza humana que nenhuma classe consegue realmente ter consciência do seu próprio sofrimento”.
Percebamos não só a miséria e pobreza material, mas também a intelectual. Não digo que um povo para ser rico intelectualmente tenha que ser erudito, mas deve ser auto-consciente, saber de suas limitações e, mais importante, nunca descrer de seu potencial. Desponta então o papel de repasse do conhecimento por parte da universidade, em particular, na Faculdade de Direito onde existem os centros de acessória jurídica, que prestam relevante papel não só para a comunidade como também para os próprios alunos treinando-os não só nas ciências jurídicas, mas também despertando neles essa sensibilidade social.
E tudo são ensaios, a universidade é se não o último ensaio antes de abrirem-se às cortinas da vida profissional e tornar-se necessário atuar sem cortes no palco da vida adulta. Todos os aspectos da vida acadêmica deveriam ser explorados ao máximo pelos alunos. Sejam os projetos de extensão, os de pesquisa, as vivências nos CA s e DCE s que servem de ensaios para as realidades políticas que muitos dos alunos vão experimentar.
Da relação professor aluno:
Segue daí a razão de outro engano que temos muitas vezes. Pensamos que estamos a uma distância abismal dos magistrados, promotores, procuradores, etc. Muitas vezes os temos por professores e não nos ocorre que em poucos anos os ocupantes de tais cargos seremos nós mesmos e nossos colegas, ou seja, desde agora convém quebrar o ícone do professor detentor absoluto do conhecimento e do aluno simples receptáculo do saber que o professor se digna a transmitir.
O vínculo aluno-professor deveria ser o mais estreito possível. Convém parabenizar o esforço que muitos professores fazem para, mesmo que superficialmente, desenvolver um relacionamento particular com cada aluno, conhecer cada um por nome. Quanto mais próximo aluno e professor, mais intenso são o intercâmbio de idéias e a possibilidade de surgir novos conhecimentos.
Acredito ser necessário implementar uma política dentro da universidade de modo a reavivar a figura do professor-mestre, que estimula o aluno, que o desafia a buscar novos questionamentos, novas e originais respostas. Não devemos nos relacionar com a matéria através do professor vendo-o como simples instrumento, deveríamos nos relacionar à matéria com o professor, fazendo dele um agente conjunto do processo do conhecimento.
Por fim, cabe lembrar que toda essa situação de apatia e descaso aqui apontada em última analise foi criada pelo homem, segue que também é passível de solução pelo homem. É, no entanto, necessário o despertar para a realidade do problema e desenvolver a motivação necessária para quebrar a apatia e o comodismo. De certo modo é preciso sair desse mundo de faz de conta que foi criado no mundo do ensino: enquanto alguns fazem de conta que ensinam, outros fazem de conta de aprendem.
O Estado, faz de conta que fiscaliza (com seus provões) e as instituições (em geral) fazem de conta que são fiscalizadas e que contam com uma biblioteca atualizada e estrutura adequada para atender os alunos. Quem assim procede vive uma ficção (enganosa). O aluno, depois de diplomado, percebe que não “ensaiou” o suficiente na universidade e seguem-se muitas vezes grandes fiascos no palco da vida.
Acredito que a melhor maneira de enfrentarmos essa crise no ensino, e tomar por nossa a responsabilidade de realmente cobrar do governo a atenção que o ensino requer e frente a possíveis desculpas do governo sejam de ordem econômica ou institucional, apresentar as respostas, criar a viabilidade dos projetos para implementar todos os programas e mudanças que a universidade pública requer.
Particularmente para a faculdade de Direito acredito que devamos afastar o tecnicismo e retomar a formação humanística que um operador do direito necessita. Deveria-se estimar as cadeiras de instrução filosófica, para dar uma base e estrutura forte onde possam se assentar um vasto conhecimento cultural, que por sua vez deveria ser estimulado pela própria universidade e pelos alunos, como, por exemplo, mostras culturais e artísticas.
Conjuntamente com essa nova formação humanística, aproximar o aluno da realidade concreta, a busca de uma nova práxis em que o universitário vai muito mais alem do que “ouviu falar de tal instituto, de tal ação, de tal teoria” sem nunca ter posto a uso o seu conhecimento.
Conclusão:
Enfim, que nunca o aluno nem a universidade cedam a apatia e deixem-se tomar por uma mediocridade existencial, cada um nunca sendo mais do que é, deixando de sempre dever ser: o aluno, não somente um número de matrícula, mas um indivíduo ativo na vida estudantil, seja dentro ou fora da sala de aula; e a universidade, sendo o que seu nome realmente sugere um universo vivo de produção de conhecimento e soluções para melhorar a vida de toda a sociedade.
Acredito que é possível essa mudança que se dará tanto dentro da vida acadêmica e poderá espalhar-se por toda a sociedade, e criaremos uma realidade onde cada aluno atenderá suas potencialidades e para nós estudantes de direito, não seja preciso sorte para que atinjamos a proficiência necessária para não somente ganhar a vida mas para com nossas vidas deixarmos marcas – como diria Horácio “Monumentum aere perenius” – mais perenes que o bronze na sociedade.