Por Jorge Ulisses Jacoby Fernandes
Com alguma expressão na mídia nacional, foi divulgado estudo do jornal O Globo no qual se aponta que “48 dos 240 ministros e conselheiros dos tribunais de contas brasileiros, sejam os estaduais ou o da União, sofreram ou enfrentam no momento algum tipo de investigação”. Ou seja, que “um em cada cinco conselheiros[1] dos Tribunais de Contas responde a inquéritos e processos” [2] no âmbito do Poder Judiciário. O fato serviria ao propósito de discutir os critérios de nomeação para a ocupação desses cargos e, por fim, até mesmo o valor da instituição como forma de controle.
Facti interpretatio plerumque etiam prudntissimos fallat, ou, em vernáculo, a interpretação do fato, muitas vezes, engana os mais prudentes. A parêmia milenar serve bem à reflexão do tema.
O fato de responder a processo
Aos leigos, pode parecer estranha a afirmação de que estar respondendo a processo não tem significação jurídica. De fato, com frequência, a mídia oficiosa informa que a “sentença do Ministério Público provou a culpa” ou que “já responde a tantos processos”, não só confundindo a peça acusatória com a decisão, como pretendendo propor um linchamento público, pelo fato de numerosos processos estarem sendo instaurados.
Uma das garantias do Estado Democrático de Direito é, justamente, o dever de responder a um processo, subjugar-se a um julgamento. Se eventual diferença de foro pode existir, no processo, na condição de réu, qualquer autoridade tem os mesmos ônus do que qualquer cidadão. Nenhum cidadão é imune à atuação do Poder Judiciário, nem ao ônus de responder a uma acusação, por maior descrédito que mereça o acusador.
Os fatos revelados e os fatos não revelados
Referido estudo revela que 48 ministros e conselheiros dos tribunais de contas brasileiros respondem a processos. Como visto, em si o fato serve a diversas reflexões, entre as quais as que foram oferecidas e já referidas no preâmbulo.
É necessário esclarecer alguns outros fatos: em breve consulta no site público do Superior Tribunal de Justiça[3] foi possível verificar que em 50 processos julgados envolvendo os ocupantes desses cargos, 26 foram arquivados em prol dos réus, e 3 foram apenas parcialmente recebidos. Ou seja, 58% dos processos em trâmite apenas no STJ correspondiam a denúncias, queixas, notícias-crime ou inquéritos com acusações falsas ou insuficientes, desprovidas de quaisquer provas concretas, por vezes fundamentando-se apenas em vagas reportagens jornalísticas ou especulações políticas.
Para complementar a estatística, vale citar trecho do artigo Pega, mata e come, de autoria da jornalista Suzana Singer, ombudsman publicado no jornal Folha de S. Paulo, que demonstra a imprecisão das acusações amparadas unicamente em editoriais jornalísticos:
“É preciso cuidado com a cultura do escândalo. Acusação baseada em uma só fonte, sem documentos, é o início do trabalho do repórter, não o seu fim – mesmo no noticiário político, onde, infelizmente, se atira a esmo e se acertam mais corpos do que se esperava. ”[4]
Com certeza, esse fato chama atenção e permite, sob o aspecto lógico, considerar o fato de haver tantas acusações improcedentes. O princípio da presunção da inocência não deveria ser tão maltratado em um regime democrático.
As possíveis causas
Dois aspectos, com diferentes localizações temporais, podem ser atribuídos como causas às denúncias injustas: um antecedente à ocupação do cargo, outro consequente do exercício da função.
O relevantíssimo cargo de Conselheiro, como o equivalente federal de Ministro, é ocupado após uma seleção com disputa de vagas. Todos os cargos são, dessa forma, preenchidos; não apenas os que são reservados à escolha do legislativo, como, inclusive, as vagas destinadas ao Ministério Público e auditores especializados, também denominados Conselheiros substitutos. Da disputa, revelam-se, lamentavelmente, denuncismos em via processual.
Outra causa, há quase um século, mereceu a advertência de João Barbalho: “Mas a função, de si mesmo austera, corretiva e meticulosa do Tribunal de Contas é de natureza a gerar contra êle malquerenças, antipatias e desforços”.[5] Efetivamente, o desempenho da função de conselheiro, como a de ministro, traz incompreensões de todas as ordens: às vezes, a noção de que o controle atrapalha a execução, que não há causa justa nas atuações, que há conotação política nas decisões, dentre outras.
É, aliás, próprio da natureza humana pretender exculpar-se dos próprios erros e incompetências, atribuindo culpas e responsabilidades a outrem.
Garantias constitucionais
Assim como o ordenamento jurídico atribui direitos ao cidadão, o regime democrático tem o dever de garantir também àqueles que julgam, para que possam exercer suas funções com isenção. A Constituição Federal em vigor, para evitar repetições, equiparou os que julgam contas e responsáveis por recursos públicos aos membros da magistratura, assim como fez, em parte, com os integrantes do Ministério Público[6].
A lição não é nova: em Portugal, desde a criação do Tribunal de Contas, em 1849, é atribuída a “perpetuidade” no cargo. Reconhece-se, portanto, há séculos, que o desempenho dessa função não só é árido, como sujeito a pressões de todas as espécies; o que aparenta um privilégio para o julgador, portanto, é, em todos os sentidos, uma garantia para a própria sociedade.
Quantas vezes o cidadão, no enfrentamento de poderosos, tem que depositar sua última esperança no Judiciário e nas cortes de contas? Quantas vezes, inclusive, é o próprio Estado, o governo, o Leviatã, que ignora direitos?
É, aliás, nessa perspectiva que a sociedade deve apressar-se em reconhecer o valor dos Tribunais de Contas, pois, pelas competências constitucionais que exerce, muitas vezes converte-se no último bastão da correção dos atos. Enquanto o Judiciário limita-se ao estrito exame da legalidade, a perspectiva do controle externo açambarca a legitimidade e a economicidade.
Exemplos pequenos, colhidos ao correr da pena, como obrigar a que taxas de inscrição em concurso não sejam de valores abusivos[7], e que, em caso de anulação, sejam devolvidas[8], que as tarifas devem ser fixadas de forma módica[9], que uma privatização não pode ser efetivada sem uma demonstração econômica de vantagem para as gerações presentes e futuras[10], revelam que pode nascer de poderosos contrariados as referidas malquerenças.
É inconcebível, sob o aspecto lógico e elementar, sob a perspectiva jurídica, que se pretenda equiparar o desempenho dessas relevantes funções ao estatuto ordinário dos servidores públicos. Muito menos é razoável pretender dispensar tratamento com viés político.
Afastamento cautelar das funções
O estatuto ordinário dos servidores públicos prevê a possibilidade de afastamento cautelar do servidor público, do desempenho de suas funções, por prazo certo e limitado,[11] quando instaurado processo administrativo disciplinar.
Essa previsão legal somente pode ser utilizada quando a autoridade instauradora, ou a requerimento da comissão processante, houver justo receio que, continuando no desempenho de suas funções, possa o servidor interferir nas apurações. O mais comum, inclusive, é, em tais situações, apenas mudar o servidor de função ou de lotação. Nesse caso, a norma permite que, antes mesmo do indiciamento, ocorra o afastamento.
Esse procedimento, contudo, não pode ser aplicado aos magistrados e Conselheiros porque a função que exercem é tipicamente expressão de poder do Estado. De vários modos, as normas obrigam o desempenho da função jurisdicional e repelem qualquer tentativa de obviá-la.
O desempenho da função de julgar é um dever do ocupante do cargo, sendo vedado que deixe de
sentenciar; é, por outro lado, uma garantia para o cidadão, decorrente do princípio do devido processo legal e do juiz natural. O Código de Processo Civil, por exemplo, não admite que a parte provoque, após o início do processo, o impedimento de um magistrado contratando um parente deste como advogado[12].
Há um interesse jurídico maior em preservar a jurisdição isenta. Se, para a mídia, basta qualquer espetáculo para alterar os fatos e a versão é sempre mais importante que os fatos, em um estado democrático de direito, as garantias e direito fundamentais são basilares para a evolução da sociedade. Se não fosse pela aplicabilidade de um conjunto de preceitos, qualquer pessoa poderia impedir um julgamento com a veiculação, pela mídia, por exemplo, de uma simples e infundada denúncia.
O afastamento conforme o direito
Não se pode, porém, considerar que inexista a hipótese de afastamento da jurisdição por um magistrado ou conselheiro. Aqui cabe uma nota importante: como a questão posta é um reflexo dos direitos fundamentais, cláusulas pétreas da Constituição, somente a Lei pode definir as situações em que se permite flexibilizar a garantia do devido processo legal e o princípio do juiz natural.
Por força da Constituição Federal, aplica-se ao tema as mesmas regras da magistratura.[13] A propósito, as normas preveem dois tipos de afastamento: um da causa específica e outro da função.
O afastamento da causa
Afastar o magistrado da causa é possível nas hipóteses previamente definidas em Lei, sendo comum, mesmo para os Conselheiros, invocar-se as regras do Código de Processo Civil que impedem o desempenho da função do juiz[14], como ocorre, por exemplo, no caso em que o magistrado é parte interessada no processo. Também se aplicam os casos de suspeição[15], em que pode haver aparente comprometimento da isenção do julgador da causa.
Mesmo em tais situações, a lei foi cautelosa permitindo que a argüição ou denúncia seja feita, sobrestando-se o julgamento do processo, e ouvindo-se o julgador a respeito. Este poderá reconhecer motivos para não julgar, ou discordar, reafirmando sua isenção, hipótese em que o denunciante deverá oferecer provas. Não há, portanto, afastamento sumário do exercício da jurisdição.
O afastamento da função
A segunda possibilidade, de muito maior alcance, diz respeito ao afastamento do julgador de todas as funções, enquanto aguarda o julgamento. [16]
Do mesmo modo, pautou-se a norma pela parcimônia: somente após o recebimento da denúncia é que cabe o afastamento, jamais pela simples veiculação de uma infâmia. Aqui, recebimento da denúncia é uma expressão com sentido técnico-jurídico, significando que houve o ingresso de uma peça jurídica formal, denúncia ou queixa, e um exame sumário do magistrado sobre o atendimento dos requisitos e indícios suficientes de prova para a tramitação de um processo.[17]
Mesmo sendo recebida a denúncia, a norma exige que a natureza ou gravidade da infração penal justifique a medida grave de afastamento. No caso, a natureza se refere à correlação entre as funções e o tipo penal; a gravidade da denúncia diz respeito ao fato ser grave. Um homicídio, por exemplo, não apresenta correlação direta com a função, mas pode, em suas circunstâncias, revelar-se grave; um homicídio, em dúvida de uma legítima defesa, e um latrocínio revelam, por antagonismo, a questão da gravidade suficiente para o afastamento, pois, enquanto o primeiro, certamente não, o segundo, se recebida a denúncia, provoca a repulsa jurídica, mesmo em caráter perfunctório.
Assim, por exemplo, já decidiu o Supremo Tribunal Federal que cabe o afastamento do magistrado quando, continuando no desempenho da função, obstrui investigação ou o desempenho do cargo é essencial para a ocorrência do delito, como a venda de sentença.[18]
A propósito, cabe ainda verificar qual é o órgão competente para deliberar sobre o afastamento, vez que somente para o recebimento de denúncia e queixa penal foi prevista a competência. Até hoje, o Judiciário somente se manifestou diante de afastamento de Conselheiro feito pelo próprio Judiciário. Não há registro de precedente envolvendo o afastamento decidido pela própria Corte de Contas, embora, por vezes, se tenha notícias desse fato.
Como dito, por tratar-se de tema afeto à restrição de direitos, somente a lei, em sentido formal e material, pode, de forma expressa, definir o fato gerador e a competência para a decisão. No caso da magistratura, a lei foi expressa quanto à transladação dessa competência como decorrência da equiparação com os Tribunais do Judiciário. Deve ser considerada a inviabilidade de restringir direitos pela analogia.
À guisa de conclusão, os Tribunais de Contas, como todas as instituições, devem merecer constantes aperfeiçoamentos institucionais e estruturais, e a sociedade deve amadurecer na linha evolutiva. Afinal, o controle da Administração Pública como função é uma extensão dos direitos fundamentais do cidadão. E as garantias fornecidas pela Constituição aos membros dos Tribunais de Contas são poderes instrumentais mínimos e necessários a qualquer julgador, para que exerça, com isenção – seguro da ineficácia das indébitas interferências – sua relevante função.
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[1] Até a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, os Conselheiros dos Tribunais de Contas eram também denominados de Ministros.
[2] OTAVIO, Chico. Um em cada cinco conselheiros dos Tribunais de Contas responde a inquéritos e processos. Disponível em:
[3] Dados que estão disponíveis no portal www.jacoby.pro.br/???
[4] Ombudsman, Suzana Singer. Pega, mata e come. Matéria publicada no jornal Folha de São Paulo. Na parte intitulada Poder, pág. A10. Domingo, 30 de outubro de 2011.
[5]João Barbalho, em Comentários à Constituição Federal Brasileira, p. 361. Edição 1922.
[6] No livro Tribunais de Contas do Brasil, também de autoria de Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, 2ª edição, p. 716 e segs. demonstra-se que algumas dessas garantias têm limitação estrutural, como a da inamovibilidade.
[7] JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Tribunais de Contas do Brasil. 2. ed. .rev amp. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2005. Pág. 266.
[8] Ob. cit. supra, pág. 268.
[9] Ob. cit. supra, pág. 267.
[10] Ob. cit. supra, pág. 505.
[11] Art. 147 da Lei nº 8.112/1990.
[12] Art. 14, inc. IV e parágrafo único.
[13] Art. 73, § 3º, da Constituição Federal da República.
[14] Art. 134 do Código de Processo Civil – CPC.
[15] Art. 135 do CPC.
[16] Dispõe a Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979: “[…] Art. 29 – Quando, pela natureza ou gravidade da infração penal, se torne aconselhável o recebimento de denúncia ou de queixa contra magistrado, o Tribunal, ou seu órgão especial, poderá, em decisão tomada pelo voto de dois terços de seus membros, determinar o afastamento do cargo do magistrado denunciado”.
[17] Art. 396, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.719. de 20 dejunho de 2008.
[18] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS nº 28306. Relatora: Ministro Ricardo Lewandowski. Brasília, 2 de março de 2011. Diário da Justiça Eletrônico nº 057, 25 mar. 2011. Disponível em:
Jorge Ulisses Jacoby Fernandes é mestre em Direito Público, advogado, consultor, professor de Direito Administrativo e autor de várias obras na área.