Displicência contratual e direitos autorais no País

Questão de extrema relevância e indiscutível atualidade é a que respeita à seara do Direito de Autor. A proteção dos interesses e direitos — materiais assim como morais — dos autores de obras intelectuais corporificadas através de qualquer meio, ou fixadas sobre qualquer suporte, é o cerne desse específico ramo do Direito Civil, que tem na Lei nº 9.610/98 (que substituiu a antiga Lei nº 5.988/73), o seu principal texto normativo.

A importância da boa contratação é tema premente em todos os campos do Direito Civil. A confecção de instrumentos contratuais adequados e detalhistas, capazes de normatizar as situações fáticas que constituem a base dos mais diversos negócios jurídicos, estabelecendo os direitos e deveres das partes contratantes e, eventualmente, fixando as penalidades pelo descumprimento dessas mesmas regras de eleição, deve ser o ponto de partida do estabelecimento de quaisquer relações negociais saudáveis e promissoras. No entanto, sabemos que, muitas vezes, a elaboração desses instrumentos garantidores das relações jurídicas inter partes é completamente ignorada ou descuidadamente levada a cabo, gerando lacunas difíceis de suprir e cuja solução, via de regra, vai depender do Poder Judiciário e de tudo quanto aí esteja implicado.

A displicência contratual não é um fenômeno isolado, cuja ocorrência se verifique apenas de quando em longe, mas fato corriqueiro em nossa prática negocial moderna. São inúmeros os casos de contratos lacônicos, que não logram positivar, efetivamente, regras suficientes para reger a miríade fática que decorre dos mais diversos negócios jurídicos da atualidade. Tem sido assim na vasta área do Direito Civil, da qual não escapa o Direito de Autor.

Ramo do Direito ainda pouco conhecido do grande público, o Direito de Autor guarda especificidades que lhe asseguram posição destacada e peculiar, sobretudo no que concerne à matéria de seus contratos. São inúmeros os casos de autores desamparados de instrumentos contratuais capazes de assegurar-lhes a plena fruição de seus direitos materiais e morais. E releva notar que, a teor do artigo 4º da Lei nº 9.610/98, interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais, daí decorrendo a maior importância da boa contratação nessa área, de vez que fica desde logo afastada a hipótese de qualquer interpretação extensiva a preencher lacunas eventualmente presentes nos referidos instrumentos contratuais.

A Lei nº 9.610/98 deixa arbítrio bastante às partes contratantes, para que as mesmas possam determinar largamente o espectro de ação dentro do qual deverão pautar a execução normal de seus negócios. A par dessa ampla autonomia contratual, vem atrelada a grande necessidade de cuidado contratual, ou seja, da confecção de instrumentos normativos e reguladores efetivos e resguardadores dos direitos das partes. Quanto maior a autonomia concedida às partes contratantes, tanto mais relevante a posição do contrato como viabilizador de uma relação negocial funcional.

Vejamos o quanto de autonomia deixa a Lei 9.610/98 à vontade das partes, daí decorrendo a extrema importância dos contratos em sede de Direito de Autor. Note-se que, entretanto, todo e qualquer contrato versará somente acerca da disponibilização dos direitos patrimoniais de autor e, jamais, daqueles ditos morais, os quais são, a exato teor do artigo 27, inalienáveis e irrenunciáveis.

O artigo 28 da lei de direitos autorais dispõe que cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica, dependendo, outrossim, de autorização prévia e expressa do mesmo a utilização da obra, por quaisquer modalidades (artigo 29).

O supracitado dispositivo legal é claro ao exigir a existência de instrumento que positive a efetiva autorização para qualquer forma de utilização que se pretenda dar à obra. E, já que a exigência existe, tal autorização deve ser efetivada da maneira mais clara possível, de modo que todos os detalhes relativos à utilização da obra sejam devidamente contemplados em cláusulas contratuais adequadas. A confecção de um bom contrato evita desgaste posterior entre as partes envolvidas na execução, oferta ou distribuição da obra, assegurando a cada qual delas as esperadas observação e remuneração de seus interesses. Em realidade, o contrato torna-se um verdadeiro instrumento de pacificação social, ao eliminar, na maior medida possível, a ocorrência de atritos e o recurso ao Poder Judiciário para a solução de eventuais dúvidas ou mesmo litígios.

As diversas modalidades de utilização de obras literárias, artísticas ou científicas (ou de fonogramas) são independentes entre si, e a autorização concedida pelo autor, ou pelo produtor, respectivamente, não se estende a qualquer das demais, preceitua o artigo 31, exigindo, dessa forma, a expressa indicação de cada qual das modalidades de utilização pretendidas, seja em instrumento único dotado das respectivas cláusulas de especificação, seja em diferentes instrumentos específicos.

Os direitos de autor podem ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, pelo autor ou mesmo por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou outros meios em Direito admitidos (artigo 49), obedecidas as limitações que a própria lei elenca. A lei faculta, no momento da contratação, a eleição da forma contratual que mais se adapte ao negócio em formação, obedecidas as suas peculiaridades e os interesses dos contratantes.

A lei é específica em relação a determinados conteúdos contratuais, trazendo esse elenco nos incisos que acompanham o referido artigo 49. Assim é que o texto legal determina que a transmissão total compreende todos os direito de autor, exceto os de natureza moral (como já referimos) e aqueles expressamente excluídos por lei.

Somente é admitida a transmissão total e definitiva dos mesmos direitos, mediante estipulação contratual escrita (aqui, a lei efetivamente exige o contrato, não admitindo outra forma de operar-se a referida transmissão).

Na hipótese de não haver estipulação contratual escrita, o prazo máximo de cessão é entendido como sendo de cinco anos, após o que os mesmos direitos retornam ao seu titular originário, a despeito dos eventuais prejuízos que o cessionário venha a apurar!

A cessão é válida somente para o país em que é firmado o contrato, salvo se diferentemente dispuser o contrato a respeito; bem como se opera apenas para as modalidades de utilização já existentes à data do contrato. Aliás, inexistindo especificação (detalhamento) quanto à modalidade de utilização autorizada, o contrato é interpretado restritivamente (como o são os contratos em sede de Direito de Autor), entendendo-se como limitada a apenas uma, que seja aquela indispensável ao cumprimento da finalidade do contrato.

A cessão total ou parcial dos direitos de autor, que se faz sempre por escrito, presume-se onerosa, ou seja, sempre que haja interesse em declarar a gratuidade de uma determinada cessão, tal deve constar expressamente em cláusula própria, sob pena de ser presumido o caráter oneroso da transação efetuada, em prejuízo do cessionário.

O contrato de cessão poder ser averbado, de acordo com a natureza da obra, à margem do registro em órgão público correspondente ou, não estando a obra registrada, no Cartório de Títulos e Documentos. Note-se que a lei faculta a averbação ou o registro da cessão, sem exigi-lo de fato, sendo certo que a publicidade do contrato faz com que seus efeitos estendam-se erga omnes, gerando a sua oponibilidade a terceiros.

O instrumento de cessão (contrato) deve conter, obrigatoriamente, o seu objeto, bem como as condições relativas ao exercício do direito quanto a tempo, lugar e preço.

Qualquer disposição contratual que envolva a cessão dos direitos de autor sobre obras futuras (eventuais e ainda não criadas), limitar-se-á ao prazo máximo de cinco anos. Tal dispositivo visa à proteção do autor, para que o mesmo não se obrigue além de um prazo médio, o que poderia acarretar-lhe prejuízos sob a ótica do legislador. Assim é que, sempre que o mesmo prazo for estipulado acima do máximo legal (ou permaneça indeterminado), será reduzido a esse patamar, com a respectiva diminuição do preço estipulado.

A omissão de nome de autor em divulgação de obra, outrossim, não presume anonimato ou cessão de direitos.

Em relação às obras coletivas, a teor do parágrafo 3º do artigo 17, preconiza o texto legal que o contrato com o organizador especificará a contribuição do participante, o prazo para entrega ou realização, a remuneração e demais condições para sua execução (grifo nosso). Na expressão assinalada compreende-se conteúdo bastante para merecer reparo. A fixação de condições detalhadas para a execução de uma obra coletiva é a garantia própria de sua viabilidade, de vez que, in casu, é necessário o consórcio de esforços para a consecução do fim comum almejado (obra em si mesma considerada, formada pela fusão, em criação autônoma, das contribuições positivadas por diversos autores – artigo 5º, VIII, “h”). O estabelecimento de condições específicas (através de contrato realizado com o organizador) para a execução da obra, tais como cronogramas, limites e objetivos das participações individuais, entre outras, constituem o próprio princípio da criação da obra, sem o qual a mesma pode nem chegar a existir.

O artigo 23 da respectiva lei preceitua, por sua vez, que os co-autores da obra intelectual exercerão, de comum acordo, os seus direitos, salvo convenção em contrário (grifo nosso). Aqui, também, impõe-se destacar a importância do contrato, a preencher, normatizando, o que a própria legislação deixa ao arbítrio das partes, quando faculta a possibilidade de que os contratantes convencionem o exercício dos direitos de autor segundo a sua vontade.

É curial observar que, nas obras de autoria plúrima, a existência de instrumento escrito é fator essencial ao bom andamento da parte negocial relativa à criação e execução da obra. Não se pode olvidar que, a par da obra em si mesma considerada, tal como concepção do espírito materializada, existe toda uma realidade negocial a envolver interesses materiais, econômico-financeiros, que precisam e devem ser concretamente regulados entre as partes (diversos autores e outros correlatos, direta ou indiretamente), para que inexistam conflitos a prejudicar algum dos interessados. Se, nas obras de autoria individual, já existe toda uma problemática subjacente à colocação da obra no respectivo mercado e à efetiva satisfação dos direitos do autor, o que dizer daquelas em que comungam os interesses de vários indivíduos?

O titular de direitos autorais pode, no exercício do direito de reprodução, colocar à disposição do público a obra, na forma, local e tempo de sua preferência, a título oneroso ou gratuito (a teor do artigo 30). Através dessa faculdade, ao referido titular cumpre fixar esses quesitos, de forma clara e inequívoca, inclusive no que tange à onerosidade (ou não) da disponibilização da obra, questão de extrema relevância no mundo negocial moderno, de vez que existe toda uma situação a ser definida somente no que respeita a essa mesma onerosidade. Como obter tranqüilidade e segurança negociais, sem estipular formas, local e tempo de pagamento de direitos autorais?

O simples ato de adquirir o original de uma obra pode envolver séria questão negocial, qual seja, a de que pode haver estipulação entre as partes (autor ou titular de direitos patrimoniais e adquirente) no sentido da transferência de um ou mais direitos patrimoniais ao comprador, juntamente com a obra (artigo 37).

Quanto às formas de utilização das obras intelectuais e fonogramas, a Lei nº 9.610/98 estabelece parâmetros para a contratação dessas mesmas modalidades de utilização.

A partir do artigo 53, a lei trata do contrato de edição, que é aquele através do qual o editor obriga-se a reproduzir e divulgar a obra (literária, artística ou científica), ficando autorizado, com exclusividade, a publicá-la e explorá-la, pelo prazo e de acordo com as condições avençadas com o autor. A figura do contrato de edição é, quiçá, uma das mais importantes em sede de Direito de Autor, sendo certo que, quanto mais criteriosa a positivação de suas cláusulas contratuais, mais garante-se o sucesso comercial da própria edição, gerando bons frutos para ambas as partes contratantes. No Brasil hodierno, a edição é, sem dúvida alguma, um negócio assaz difundido, dado o imenso número de autores e editoras a dedicar-se à exploração comercial de obras de diferenciados gêneros (trata-se, sem dúvida e apesar da propalada crise, de um mercado em expansão!), o que ainda mais revela a necessidade de um bom contrato a subsidiar as relações entre as partes envolvidas, no intuito de serem assegurados os respectivos direitos, ainda mais face à realidade das grandes somas de dinheiro investidas para a concretização de qualquer edição.

O contrato de edição pode versar sobre obra futura, ainda não existente, quando o autor se obriga à confecção da mesma para que seja publicada e divulgada pelo escolhido editor (artigo 54). Se no contrato celebrado entre as partes, a iniciativa da proposta de confecção da obra partir do editor, tratar-se-á da obra sob encomenda.

Se inexistir cláusula contratual expressa a respeito do assunto, entender-se-á que o contrato versa sobre uma única edição (artigo 56), podendo, entretanto, as partes, convencionar de modo diverso. Em relação à quantidade de exemplares da obra que compõem uma edição, no silêncio do contrato, esse número será considerado como sendo o de três mil exemplares. Novamente, aqui, as partes podem e devem convencionar essa quantidade de maneira expressa, em adequada cláusula contratual.

Quanto à curial questão remuneratória do autor, esta deve vir mui bem explicitada no contrato celebrado entre as partes, de vez que, em caso de omissão, haverá arbitramento com base em usos e costumes (artigo 57).

Quando o pagamento ao autor estiver vinculado à venda da obra, o editor deve prestar contas mensais acerca da mesma vendagem, podendo as partes estabelecer prazo diverso em item contratual próprio (artigo 61). A obra deve ser editada dentro do prazo de dois anos, contados da data da celebração do contrato de edição, podendo ser fixado, igualmente, prazo diverso, de acordo com a vontade das partes (artigo 62).

Em relação à comunicação ao público, cumpre esclarecer que a mesma pode ser feita através de representação pública ou execução pública, de acordo com a natureza da obra a ser comunicada. É bem de se notar que qualquer forma de utilização de obras teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas depende de prévia e expressa autorização do autor ou titular dos direitos autorais (artigo 68), sendo certo que tal autorização deve vir positivada através do respectivo contrato celebrado com o empresário que se dedicará à comunicação da obra ao público.

Em relação à utilização de obras de artes plásticas, cumpre referir a possibilidade do autor alienar, juntamente com o objeto em que a obra se materializa (obra em si mesma considerada), além do direito de exposição, o próprio direito de reprodução da obra (artigo 77). A autorização para reprodução de obra de artes plásticas, através de qualquer processo, deve ser feita por escrito e, de toda forma, presume-se onerosa. (artigo 78).

Quanto à utilização de obras fotográficas, é certo que o autor pode convencionar a possibilidade de reproduções editadas ou alteradas, se assim for de seu interesse e conveniência (parágrafo 2º do artigo 79), respeitadas as limitações constantes do caput do mesmo artigo.

No que concerne à utilização de obras audiovisuais, cumpre mencionar que as autorizações concedidas para produções audiovisuais implicam, via de regra e salvo convenção em contrário, em consentimento para utilização econômica (artigo 81). A exclusividade da autorização depende de cláusula expressa e cessa dez anos após a celebração do contrato.

O contrato de produção audiovisual deve determinar, conforme o artigo 82, a remuneração devida pelo produtor aos co-autores (são considerados co-autores da obra audiovisual o autor do assunto ou argumento literário, musical ou lítero-musical e o diretor, exatamente a teor do artigo 16), intérpretes e executantes, assim como tempo, lugar e forma de pagamento. Deve determinar, ainda, o prazo de conclusão da obra e a responsabilidade do produtor para com os co-autores, intérpretes e executantes, em caso de co-produção. Note-se que, em caso de co-produção, o exato detalhamento das responsabilidades das partes envolvidas no processo é de curial importância para o bom andamento da utilização da obra e de seus aspectos prático-negociais.

Caso a remuneração dos co-autores dependa dos rendimentos da utilização econômica, o produtor deverá prestar contas semestralmente, podendo as partes convencionar de maneira diversa a esse respeito no contrato (artigo 84). Outra possibilidade de convenção entre as partes, nesse caso, é a que se refere à faculdade dos co-autores de utilizarem a parte que constitui sua contribuição pessoal, em gênero diverso (artigo 85).

Em relação à utilização de bases de dados, o titular dos direitos patrimoniais pode, exclusivamente e a seu critério, autorizar ou proibir tudo quanto se relacione à mesma utilização (artigo 87); assim como os artistas intérpretes ou executantes devem convencionar suas determinações a respeito da utilização de suas interpretações ou execuções (artigo 90). Igual direito assiste ao produtor de fonogramas e às empresas de radiodifusão, no que concerne à utilização dos respectivos fonogramas e emissões.

Como tivemos a oportunidade de observar, toda e qualquer utilização de obra intelectual sujeita-se às respectivas autorizações, sendo certo que, na atualidade, o universo dos direitos de autor envolve uma miríade de negócios jurídicos coligados a importantes interesses comerciais. Em decorrência dessa fenomenologia bastante ampla, a confecção de instrumentos contratuais adequados e criteriosos é fator de efetiva proteção dos direitos dos autores e dos entes envolvidos na comercialização das respectivas obras, gerando segurança jurídica suficiente para a fluidez da utilização econômica das criações do espírito humano.

Marcia Sguizzardi Bittar é advogada em São Paulo, bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo e articulista na área jurídico-empresarial

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