por José Levi Mello do Amaral Júnior
A Emenda Constitucional 32, de 2001, introduziu na Constituição o decreto autônomo, isto é, um ato normativo primário (porque encontra fundamento de validade diretamente no texto constitucional) confiado ao Presidente da República.
O campo material do decreto autônomo é restrito.
Pode dispor sobre organização e atribuições dos ministérios e órgãos da administração pública, desde que não resulte aumento de despesa ou influxo restritivo sobre direito de particulares (artigo 84, VI, “a”, combinado com o artigo 5º, II, ambos da Constituição).
Não pode criar ou extinguir ministérios e órgãos da administração pública, bem assim criar, transformar e extinguir cargos, empregos e funções públicas (ressalvada a possibilidade de extingui-los quando vagos, a teor do artigo 84, VI, “b”, da Constituição).
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que o decreto autônomo aplica-se, de imediato, aos demais entes federados independentemente de adaptação das respectivas constituições ou leis orgânicas (ADI nº 2.806-5/RS, Relator Ministro Ilmar Galvão, julgada em 23 de abril de 2003).
Questão relevante é determinar o significado e o alcance da fórmula “ministérios e órgãos da administração pública” empregada pela Constituição (artigo 48, XI, artigo 61, parágrafo 1º, II, “e”, e artigo 88, todos da Constituição) e que extrema os âmbitos temáticos da lei e do decreto autônomo.
Com efeito, a criação e a extinção de ministérios e órgãos da administração pública requerem lei. Logo, a contrario sensu, unidades administrativas outras podem ser disciplinadas por decreto autônomo.
Mas que “órgãos” situam-se no âmbito temático da lei?
Ora, com certeza, os “órgãos” referidos não são aqueles internos aos ministérios. Isso porque não há que presumir a ocorrência de pleonasmos na Constituição.
Na expressão “ministérios”, constante da fórmula, devem ser compreendidos — como já inclusos — os órgãos internos aos ministérios.
A expressão “órgãos” da fórmula é relativa aos órgãos não vinculados a ministérios, isto é, refere-se, por exemplo, aos órgãos diretamente subordinados à Presidência da República, como a Casa Civil da Presidência da República e o Advogado-Geral da União (vide, a propósito, o artigo 1º da Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003).
Assim, é de rigor técnico — e imperiosa — a utilização de decreto autônomo para dispor sobre a estruturação e as atribuições dos órgãos internos aos ministérios, sob pena de inconstitucionalidade. Tais órgãos são de segundo nível, são “órgãos de órgãos” (os mencionados na fórmula são de primeiro nível), ou, em outras palavras, são meras unidades administrativas, tipicamente situadas no âmbito temático do decreto autônomo.
Em suma: o decreto autônomo pode criar, extinguir, modificar e fusionar as unidades administrativas internas aos ministérios. Claro: desde que não haja aumento de despesa e desde que nelas sejam utilizados cargos, empregos e funções públicas preexistentes.
Daí a correção do Decreto (autônomo) 4.113, de 5 de fevereiro de 2002, que “Transfere da estrutura do Ministério da Fazenda para a da Casa Civil da Presidência da República a Secretaria Federal de Controle Interno e a Comissão de Coordenação de Controle Interno, e dá outras providências.”, bem assim do Decreto (autônomo) 4.177, de 28 de março de 2002, que “Transfere para a Corregedoria-Geral da União as competências e as unidades administrativas da Casa Civil da Presidência da República e do Ministério da Justiça que especifica e dá outras providências.”.
Vale referir que a expressão “órgãos” da fórmula deve ser entendida de maneira ampla, de modo a também abranger as entidades. Nesta compreensão das coisas é que foi concebido o Decreto (autônomo) 3.995, de 31 de outubro de 2001, que “Altera e acresce dispositivos à Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários, nas matérias reservadas a decreto.”
Enfim, o decreto autônomo é espécie normativa com âmbito temático próprio e privativo (“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:”). Deve ser utilizado, sim, mas em seus exatos limites, até porque a sua eventual substituição por espécie normativa outra implicaria inconstitucionalidade (vide, a propósito, a já referida ADI nº 2.806-5/RS). Por outro lado, é claro, o decreto dutônomo não pode ser utilizado como se fosse uma medida provisória que não vai à conversão em lei. De toda sorte, é necessário a ele reconhecer –- e garantir –- o espaço que a própria Constituição lhe confiou e reservou.
Para outras questões relacionadas ao decreto autônomo, vide AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. decreto autônomo: questões polêmicas in Direito regulatório: temas polêmicos (organizadora: Maria Sylvia Zanella Di Pietro), 2ª edição, Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 529 a 540.
Revista Consultor Jurídico, 23 de Março de 2005