Leon Frejda Szklarowsky
Considerações históricas
A questão proposta não é cerebrina, nem meramente acadêmica, pois tem implicações muito importantes, no campo das finanças públicas e nas relações com as unidades federativas.
A posição e a natureza jurídica da Capital do Império e, posteriormente, da República, tem variado muito, desde o alvorecer do Brasil independente.
A Constituição imperial de 25 de março de 1824, introduzida pela Carta de Lei desta mesma data, no artigo 72, fazia menção à Capital do Império e o Ato Adicional – Lei 16, de 12 de agosto de 1834, no artigo 1º, registrava que a autoridade da Assembléia Legislativa da Província, onde estivesse a Corte, não compreenderia a Corte nem o seu Município.
João Barbalho, comentando a Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil ( sic), advertia a necessidade do Governo Federal ter sua sede em território neutro, que não pertencesse a nenhum dos Estados, para estar em sua própria casa. O artigo 2º da primeira Constituição republicana rezava que cada uma das antigas províncias formaria um Estado e o antigo Município neutro constituiria o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da União, enquanto não se desse a execução da ordem prevista no artigo 3º, isto é, a mudança da Capital Federal, para o Planalto Central. O parágrafo único fornecia um indicativo que não podia ser ignorado, ao determinar que, com a mudança, o Distrito Federal constituiria um Estado. (1) O Congresso Nacional tinha competência privativa para legislar sobre a organização municipal do Distrito Federal, sendo administrado pelas autoridades municipais, cabendo-lhe as despesas de caráter local.
Rui Barbosa considerava-o um semi-estado ou quase-estado, visto que não tinha auto-organização nem participava, como os Estados, da qualidade de membro (2). Ensina Michel Temer que o Distrito Federal, na Constituição de 1891, sucedeu ao Município neutro. (3)
Em 1934, a Constituição colocou o Distrito Federal entre os Estados e os Territórios, constituindo assim os Estados Unidos do Brasil. Fazia parte da união indissolúvel e perpétua dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
Já em 1937, a Constituição Federal, conquanto o manteve como parte indissolúvel da união dos Estados e dos Territórios, paradoxalmente, determinou que a União o administrasse, enquanto sede do Governo da República, por meio de um prefeito nomeado pelo Presidente da República, com a aprovação do Conselho Federal. A Lei Constitucional número 9, de 28 de fevereiro de 1945, ordenou que o Distrito federal enquanto sede do Governo da República seria organizado pela União.
A Lei Máxima democrática de 1946, sucessora da Carta centralizadora de 37, alçou o Distrito Federal – Capital da União – à mesma posição dos Estados, como partícipe da União, ofertando-lhe autonomia relativa, ao permitir ao DF manter a Câmara de Vereadores, elegendo os legisladores, mas seu prefeito era nomeado, pelo Presidente da República, com a aprovação do Senado Federal, e demissível ad nutum pelo Chefe do Executivo Federal. Elegia, porém, deputados e senadores. Com a Emenda Constitucional nº 2, de 3 de julho de 1956, o Distrito Federal passou a ser administrado por um prefeito eleito, pelo sufrágio direto, da mesma forma como o eram os vereadores. A capital situava-se no Rio de Janeiro, vindo a mudança, para o planalto, ocorrer em 1961, com o Presidente Juscelino Kubitschek. Pela E C nº 3, de 8 de junho de 1961, porém, o Distrito Federal passaria novamente a ser administrado por um prefeito nomeado pelo Presidente da República, mediante aprovação do Senado da República, mas a Câmara seria eleita pelo povo, com as funções atribuídas pela lei federal. Esse diploma previu a eleição de representantes para o Senado Federal, Câmara dos Deputados e Câmara do Distrito Federal. Narra Manoel Gonçalves Ferreira Filho que o Distrito Federal ficou sem representantes, por não haver o Congresso Nacional definido aquela eleição (4).
A Constituição de 1967 retrocede violentamente e, embora conceda ao Distrito Federal o status de partícipe, juntamente com os Estados e os Territórios, da República Federativa do Brasil, novo nome da República brasileira, deixando para trás a denominação anterior de Estados Unidos do Brasil, recusa-lhe a autonomia e assenta que a lei disporá sobre sua organização administrativa e judiciaria, cabendo ao Senado as funções legislativas sobre matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração. Novamente, o Presidente da República detém a competência para nomear o Prefeito, depois da anuência do Senado. Não obstante, é-lhe atribuída competência para arrecadar os impostos atribuídos aos Estados e aos Municípios, da mesma forma que aos Estados não divididos em Municípios.
A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, mantém a mesma linha da Constituição de 1967, entretanto, essa Emenda é mais generosa que a Carta emendada e concede ao Distrito Federal o status de Estado sui generis, pois o Presidente da República nomeará um governador e não mais um prefeito.
Constituição vigente
José Afonso da Silva ensina que o Distrito Federal, atualmente, não é Estado nem Município, porém, de certa forma, é mais que Estado, mas diminui-lhe o tamanho político – institucional, porque algumas funções pertencem à União, como o Poder Judiciário, a Defensoria Pública, a Polícia e o Ministério Público. Todavia, reconhece-o como unidade federada, com autonomia parcialmente tutelada, abjurando a condição de autarquia, segundo sua concepção anterior. (5)
A Constituição vigente produz uma significativa revolução na natureza jurídica e política do Distrito Federal. A República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e também do Distrito Federal. Eis a novidade alvissareira: não só o Distrito Federal, mas também os Municípios constituem parte da união. Compõe-na. É a nota indicativa do artigo 1º.
Não se trata de declaração meramente formal, visto que o artigo 18 lhe confere autonomia político-administrativa, como o faz com relação à União, aos Estados e aos Municípios, no mesmo pé de igualdade. Os Territórios, contudo, não passam de autarquia, porque integrantes da União. Embora não mais existam, poderão vir a ser criados.
Natureza jurídica (6)
Sem dúvida, o Distrito Federal, na nova feição constitucional, é uma unidade da Federação, conquanto sofra algumas restrições que lhe não fere absolutamente as características de Estado e de Município, desenhadas pela Carta. É um Estado e também um Município. Daí a natureza singular. É a sede da Capital Federal. Brasília é a Capital do Brasil.
O Texto Constitucional oferece ao Distrito Federal as competências legislativas reservadas aos Municípios e aos Estados, elegendo o governador, o vice-governador e os deputados distritais e tem representação no Congresso Nacional, assim que a Câmara dos Deputados se compõe de representantes do povo eleitos pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal, enquanto o Senado Federal é integrado por representantes dos Estados e do Distrito Federal. (7) O Senado Federal é a câmara representativa dos Estados federados, daí porque a Constituição atual, como o faziam as Constituições de 1969, 1967, 1946 e 1891, comanda que o Senado se comporá de representantes dos Estados e do Distrito Federal.
A autonomia está expressamente prevista no artigo 32, quando assegura que se regerá pela Lei Orgânica votada e aprovada pela Câmara Legislativa, de conformidade com os princípios da Constituição. Vale dizer: estão aí desenhadas as capacidades de auto-organização, autogoverno, auto-administração e autolegislação. A Lei Orgânica do Distrito Federal dita que este, no pleno exercício de sua autonomia política, administrativa e financeira, reger-se-á por esse diploma e Brasília é a Capital da República Federativa do Brasil, a sede do Governo do Distrito Federal.
O Distrito Federal acumula as competências legislativas estadual e municipal. Exerce atividades atribuídas ao Estado e ao Município, ou seja, aquelas reservadas a este pelo artigo 30 e àquele, previstas no artigo 25, da CF.
O Poder Legislativo é exercido pela Câmara Legislativa, o Executivo, pelo Governador eleito e o Judiciário, pelos Tribunais e Juízes. Aqui, a anomalia ou o cochilo do constituinte, pois o artigo 22, inciso XVII, conferiu à União competência privativa para legislar sobre organização judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios, bem como organização administrativa destes. Sem qualquer justificativa plausível, cometeu um retrocesso imperdoável, com relação a esse Poder, o mesmo ocorrendo com os juizados especiais e a justiça de paz. Isto, porém, não macula a autonomia nem desmancha sua dupla posição ou identidade de Estado e Município.
A Constituição atribui competência à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para instituir os tributos previstos no artigo 145 (impostos, taxas e contribuições de melhoria, decorrentes de obra pública) e ao Distrito Federal também os impostos municipais. Este participa da repartição das receitas tributárias.
O artigo 169, alterado pela E C 19/98, alerta que a despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar.
A Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar 101/ 2000 , no artigo 1º, § 3º, alínea b, inciso II, define que a Estados se entende considerado o Distrito Federal.
É de se assinalar que a Lei de Responsabilidade Fiscal, ao assemelhar o Distrito Federal ao Estado, simplesmente repetiu a Constituição, sem lhe retirar também as características de Município, no que concerne aos serviços municipais e competências que acumula. Não o fez e não poderia fazê-lo.
Se assim é nada mais lógico que interpretar a lei, de forma inteligente, como quer Carlos Maximiliano, com apoio decisivo de Celso, Savigny, Salvat, Windscheid, Sutherland, Bozi, Berriat Saint – Prix, Fabreguettes e Bernardo Carneiro (8), não podendo a exegese conduzir ao absurdo nem chegar a conclusão impossível, preferindo-se o sentido que se concilie com o resultado mais razoável e que melhor corresponda às necessidade da prática e seja mais humano e benigno, suave.
Conclusão
Na verdade, em se interpretando corretamente a Constituição, colocando o Distrito Federal na sua exata condição de Estado e de Município, não há o seu rebaixamento da posição de Estado para Município, como se tem propalado, nem se está ferindo o princípio fundamental da moralidade pública, um dos mais importantes e significativos princípios que norteia a Administração Pública de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. É sem dúvida o mais notável de todos. Nem se lhe está emprestando privilégio indevidamente, já que este lhe advém da Carta Maior, quando lhe concede a dupla cidadania ou identidade.
A quaestio toda deve ser enfocada não pelo ângulo da injustiça ou da angústia ou da pessoalidade das situações criadas, senão tendo em vista o aspecto da constitucionalidade e da moralidade.
É um eqüívoco muito grande e sofisma imperdoável pretender que essa interpretação produz o rebaixamento do Distrito Federal, se este ostenta a qualidade dupla e, portanto, exerce a competência de ambas as entidades políticas e, mais, exerce as atividades de um e de outro ente, inclusive aquelas que dizem respeito ao peculiar interesse local. Assim, verifica-se que há um plus impossível de passar despercebido. Não legisla apenas sobre matéria estadual nem exerce somente atividades próprias do Estado, mas legisla também sobre matéria municipal e exerce atividades inerentes ao Município.
Com o maior respeito aos que divergem dessa opinião, ressalto que lei complementar ou ordinária não tem o condão de modificar a Constituição e rasurar a natureza dúplice que lhe foi delineada, por esta. Será um contra-senso interpretar-se de maneira diversa. Ofertaria a Lei Máxima maiores atribuições sem lhe dar os meios respectivos? Não há como aceitar esta tese, por mais que se tente extrair da lei esse entendimento. Seria o mesmo que solicitar a alguém que compre dois produtos com recursos destinados a um só deles. Isto evidentemente contraria os princípios da lógica e do bom senso e até da matemática.
O legislador ordinário ou complementar não pode ultrapassar a lindes traçadas pelo constituinte nem desvirtuar a natureza que a Constituição lhe fixa.
Destarte, a Lei de Diretrizes Orçamentárias do Distrito Federal – Lei 2573, de 27 de julho de 2000, está em prefeita consonância com a Constituição, quando enuncia, no § 2º do artigo 36, caber ao Poder Legislativo a parcela de seis por cento do limite de sessenta por cento da receita corrente líquida para a despesa total com pessoal do Distrito Federal, previsto na LC 102 cit. (9)
Notas:
1. Cf. Constituição Federal Brazileira, Commentarios, Rio de Janeiro, Typographia da Companhia Litho – Typografia, em Sapopemba, 1902, pp. 15 usque 17 e 135 e 277. Cf. também Curso de Direito Constitucional, de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Edição Saraiva, São Paulo, 1967.p. 77.
2. Cf. Comentários, volume V, p. 39.
3. Cf. Elementos de Direito Constitucional, Revista dos Tribunais, 1982, pp. 103 e segs.
4. Cf. op. cit., p. 78.
5. Cf. Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora Revista dos Tribunais, 1990.
6. Sobre o assunto, confiram-se nosso Terracap – Empresa Pública local e não federal, in Revista de Direito Público, Revista dos Tribunais, 1982,volume 61, pp. 93 e segs.; artigo do Ministro Luiz Rafael Mayer, in Revista de Direito Administrativo, 125/15; artigo de Paulo Sepúlveda Pertence, in Revista Doutrina e Jurisprudência do Tribunal do Distrito Federal, volume 2, 1º semestre, 1967; Direito Administrativo Brasileiro, Hely Lopes Meirelles, Malheiros Editores, 17ª edição, 1992; Acórdão da 2ª Turma do STF. RE 61642 DF in Revista de Direito Público cit., 5/228
7. Cf. arts. 44 a 47 da CF.
8. Cf. Hermenêutica e Aplicação do Direito, Freitas Bastos, 6ª edição, 1957, pp. 209/211.
9. Este parágrafo fora vetado pelo Governador, não obstante, o Legislativo rejeitou o veto.
Leon Frejda Szklarowsky é Subprocurador – Geral da Fazenda Nacional aposentado, advogado e juiz de paz e arbitral da American Arbitration Association, de Nova York, Conselheiro e juiz arbitral da Câmara de Arbitragem da Associação Comercial do Distrito Federal. Membro do IBAD, IAB, IASP e IADF. Entre suas obras, destacam-se: Execução Fiscal, Responsabilidade Tributária e Medidas Provisórias, ensaios, artigos e pareceres sobre contratos e licitações, temas de direito administrativo, constitucional, tributário , civil, comercial e econômico.