Palestra proferida no I Congresso de Direito de Família do Mercosul, dia 04/6/2004, em Porto Alegre – RS.
Quando se fala em obrigações decorrentes de relações familiares, há um fato em que se deve atentar. Trata-se de relações jurídicas que dispõem de contornos especiais, pois têm origem em elos de afeto. Tanto é assim, que se albergam em um ramo específico da ciência jurídica: o Direito de Família, ou Direito das Famílias, pelo conceito plural que hoje têm as estruturas familiares. Nesta seara, direitos e deveres encontram-se mesclados com sentimentos, mágoas e desencantos. Conforme Rodrigo da Cunha Pereira, são os restos do amor que batem às portas do Judiciário.
Não há quem não saiba da dificuldade de abandonar uma relação afetiva. O fim das relações afetivas sempre vem encharcado de rancor. Todos se sentem frustrados pelo fim do sonho do amor sem fim. Ambos insistem em se imputar reciprocamente culpas. Não querem apenas a separação, desejam a condenação do culpado pela dor que estão sofrendo.
A partilha dos bens transforma-se em verdadeira trincheira, em que se procura compensar relacionamentos desfeitos com bens. Muitas vezes, bens sem qualquer expressão econômica ou sentimental. Geralmente o que ocorre é mera divisão de ressentimentos.
A obrigação de pagar alimentos igualmente possui características peculiares. Diferentemente dos devedores habituais, cujos débitos se constituem pelo descumprimento de obrigação assumida livremente, o encargo alimentar surge por imposição legal, desvinculada da vontade. Dissolvida a união, mas remanescendo o dever de subsistência em favor do outro, ou de filhos que ficam na guarda do outro, o ressentimento se perpetua. O elo obrigacional pereniza-se no tempo, e mensalmente o alimentante lembra que, ao invés de devedor de alimentos, é credor de afeto, de atenção. Culpa quem lhe subtrai a convivência com os objetos de seu amor – os filhos –, e deixar de pagar a pensão é uma forma de se vingar.
A resistência do devedor, na grande maioria das vezes, não decorre de dificuldades econômicas. Suas dificuldades são muito mais de natureza psíquica, por ter que pagar quando se sente credor. Assim, não é só a essencialidade da obrigação, que visa a garantir a sobrevivência do alimentando, que faz com que a cobrança do encargo disponha de procedimento diferenciado.
Nem a ameaça de prisão atemoriza. Todos já ouviram a assertiva: vou para a cadeia, mas não pago!
Deixar de pagar, no entanto, não tem levado ninguém à prisão. Dever alimentos se transformou em um grande negócio.
Talvez a forma mais eficaz de o alimentante não correr o risco de ser preso é ser bonzinho. Ao invés de esperar que o credor entre com a ação de alimentos, melhor é o devedor propor um acordo e firmar um documento, assumindo a obrigação de pagar. Claro que o advogado cuidadoso vai tomar algumas providências: (1) vai fazer com que a obrigação seja assumida por escritura pública (2) ou por outro documento público assinado pelo devedor. (3) Talvez lavre um documento particular firmado pelo devedor e duas testemunhas. (4) Por excesso de zelo, pode fazer com que o instrumento de transação seja referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública ou pelos procuradores de ambas as partes.
Depois disso, pronto, é só não pagar os alimentos, porque com certeza não irá para a cadeia!
Ainda que o indigitado documento assumindo a obrigação alimentar constitua título executivo extrajudicial (inciso II do art. 585 do CPC), vem a jurisprudência entendendo que este não é título hábil para desencadear ação de alimentos pelo rito da coação pessoal.[1]
Claro que justificativas não faltam!
O art. 733 do CPC, que prevê a execução sob pena de prisão, fala em sentença e em decisão. Daí o equivocado entendimento de que, se o documento reconhecendo a obrigação não foi chancelado pelo juiz, não pode ensejar o uso dessa via executória.
Olvidam os que assim pensam que não só os títulos judiciais dão ensejo ao processo de execução, mas também os títulos extrajudiciais podem ser cobrados por essa via.
Parece que ninguém percebeu que a Lei nº 8.953/94, ao dar nova redação ao inciso II do art. 585 do CPC, dilatou o número dos títulos executivos extrajudiciais para além dos títulos de crédito. Atribuiu ao Ministério Público, à Defensoria Pública e aos advogados o munus público de chancelar manifestações de vontade e, assim, constituir títulos executivos extrajudiciais. Inadvertidamente omitiu-se a Lei de alterar também os dispositivos legais que tratam da execução de alimentos, o que, às claras, não afasta quaisquer das formas de cobrança do débito alimentar, independente do instrumento que constitui o encargo.
Assim, nada, absolutamente nada justifica não admitir a execução pelo rito da coação pessoal quando a obrigação está substanciada em título executivo extrajudicial. O procedimento executório diferenciado de dívidas alimentares decorre da natureza da obrigação, apenas isso. Além do mais, eventual alegação de vício do consentimento ou fundamento outro que comprometa a higidez do título executivo cabe ser alegado pelo devedor no tríduo em que lhe é oportunizado justificar o inadimplemento. Até porque há uma tendência de abrir verdadeira fase instrutória. Vem sendo oportunizada réplica do credor e inclusive é realizada audiência. Dessa forma, não se pode temer eventual cerceamento de defesa ante a ameaça de aprisionamento.
Cabe lembrar que o próprio art. 732 do CPC, ao deferir à execução de alimentos o rito da expropriação, fala somente em execução de sentença que condena ao pagamento de prestação alimentícia. A vingar a tendência que se vem consolidando nos Tribunais, por uma questão de coerência, títulos executivos extrajudiciais não poderiam ensejar sequer a execução por quantia certa contra devedor solvente. Afinal, os títulos extrajudiciais não têm origem em sentença condenatória. O não-senso é total. Chega-se assim às raias do absurdo: reconhecer que a obrigação alimentar constante de título executivo extrajudicial não pode ser cobrada por meio do processo de execução. Pelo jeito, restaria ao credor o uso da ação monitória, ou quem sabe da ação ordinária de cobrança, para constituir título executivo judicial e poder cobrar os alimentos.
Tem mais. O art. 732 do CPC concede modalidade executória à dívida alimentar reconhecida em sentença. Logo, os alimentos provisórios ou provisionais, fixados initio litis, não dariam ensejo a essa espécie de execução. Como a expressão sentença consta somente do art. 733 do CPC, parece que exclusivamente os alimentos fixados em decisão interlocutória permitiriam execução com ameaça de prisão.
Dito raciocínio peca por absoluta ausência de razoabilidade. Somente os alimentos definitivos estabelecidos em sentença, depois de exaurido o processo de cognição, é que dariam ensejo ao uso de qualquer das modalidades executórias: tanto citação e penhora (art. 732 do CPC), quanto citação com ameaça de prisão (art. 733 do CPC). De outro lado, os alimentos provisórios ou provisionais, fixados liminar ou incidentalmente, somente poderiam ser cobrados pelo rito da coação pessoal (art. 733 do CPC).
Não bastasse tudo isso, a novos percalços está sujeito o credor.
Quando os alimentos são fixados em percentual dos ganhos do devedor, a cessação do vínculo empregatício torna a obrigação ilíquida, não ensejando o uso do pleito executório. Essa, ainda e infelizmente, é a posição majoritária da Justiça. Assim, o credor precisa intentar nova demanda para a adoção do distinto critério de quantificação dos alimentos, o que certamente viria em seu prejuízo.[2]
Também já se consolidou o entendimento de que o credor só pode fazer uso da execução pelo art. 733 do CPC para cobrar as três últimas parcelas impagas, somadas às que se vencerem durante a tramitação da demanda.[3] A dívida pretérita, magicamente, muda de natureza, perde o caráter alimentar, e somente pode ser cobrada pelo rito da execução expropriatória.[4]
De qualquer forma, a teimosia do devedor em inadimplir lhe beneficia. Pela dívida impaga só pode ser preso uma única vez. Persistindo o inadimplemento, a execução converte-se ao rito do art. 732 do CPC.[5]
Talvez o mais decepcionante seja que, vencidos todos os obstáculos, e conseguindo o credor levar o devedor para a prisão, este cumprirá a pena em regime aberto. O alimentante somente dorme no presídio e lá permanece nos finais de semana. Ao menos no Rio Grande do Sul, em face de recomendação da Corregedoria-Geral da Justiça,[6] descabe a imposição do regime prisional fechado, em razão de o crédito alimentar constituir dívida civil.
Moral da história: entre a sobrevivência do filho e o direito de ir e vir do pai, dá-se maior valor à liberdade do que à vida! A mãe que se vire…
[1] APELAÇÃO. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. TÍTULO EXECUTIVO. ACORDO REFERENDADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. O acordo referendado pelo Ministério Público é título executivo extrajudicial (art. 585, II, do CPC). Não é capaz de embasar execução de alimentos sob o rito de prisão, mas se presta para aparelhar execução sob o rito de expropriação de bens. Deram provimento. (Apelação Cível nº 70007532021, Oitava Câmara Cível, TJRGS, Rel. Des. Rui Portanova, em 18/12/2003).
[2] A Justiça gaúcha, no entanto, reconhece como devido o valor da última parcela paga, havendo a possibilidade do uso do processo de execução. Neste sentido: “EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. OBRIGAÇÃO ALIMENTAR. Fixado o valor dos alimentos em percentual dos ganhos do alimentante, a cessação do vínculo empregatício não o desonera da obrigação nem torna ilíquido o valor da pensão, que se cristaliza no montante do último pagamento feito. Embargos rejeitados” (Embargos Infringentes nº 70005475355, Quinto Grupo de Câmaras Cíveis, TJRGS, Relª. Desª. Maria Berenice Dias, em 14/3/2003).
[3] EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. PEDIDO DE PRISÃO CIVIL. ABRANGÊNCIA DAS PARCELAS. Podem ser executadas sob a forma procedimental do art. 733 do CPC as últimas três parcelas vencidas imediatamente antes da propositura da ação e também todas as que se vencerem no curso do processo. Recurso desprovido. (Agravo de Instrumento nº 70007196066, Sétima Câmara Cível, TJRGS, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, em 19/11/2003).
PRISÃO CIVIL. DEVEDOR DE ALIMENTOS. EXECUÇÃO NA FORMA DO ARTIGO 733 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. A execução de alimentos prevista pelo artigo 733 do Código de Processo Civil restringe-se às três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e às que vencerem no seu curso, conforme precedentes desta Corte. Ordem parcialmente concedida, apenas para adequação do fundamento da prisão à jurisprudência do STJ, mantida a constrição imposta na origem. (HC nº 30528/SP, 4ª Turma do STJ, Rel. Min. César Asfor Rocha, DJ 19/4/2004, em 18/11/2003).
[4] AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIMENTOS. EXECUÇÃO. A execução coercitiva, que é uma forma extrema de cobrança, pressupõe a atualidade em razão de seu caráter alimentar. Por isso, apenas os três meses anteriores ao pedido e as parcelas que se vencerem no curso da ação é que sujeitam o devedor à prisão, não sendo possível estender a toda dívida. Agravo de Instrumento desprovido. (Agravo de Instrumento nº 70005202643, Sétima Câmara Cível, TJRGS, Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, em 12/03/2003).
[5] ALIMENTOS. EXECUÇÃO. RENOVAÇÃO DO PEDIDO DE PRISÃO DO DEVEDOR. Não pode ser renovado o pedido de prisão do devedor de alimentos com base nas parcelas em atraso que deram causa ao primeiro decreto prisional já cumprido. Agravo provido, em parte. (Agravo de Instrumento nº 70004466918, Sétima Câmara Cível, TJRGS, Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, em 21/08/2002).
[6] Ofício Circular nº 059 – CGJ-RS, de 6.8.1999. Considerando a absoluta inconveniência de cumprimento de PRISÃO CIVIL em estabelecimento destinado a apenados por fatos criminosos, recomendo a Vossa Excelência que, não sendo caso de prisão domiciliar, determine, sempre que possível, seu cumprimento sob regime aberto em casas de albergado.
* Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família