O conservadorismo da sociedade, fortemente influenciada pela Igreja, sacralizava o casamento e o tinha por indissolúvel. As fortes resistências quando da institucionalização do divórcio impuseram abrandamentos, e algumas concessões foram feitas para a aprovação da Lei do Divórcio. Em um primeiro momento, era possível o divórcio somente aos casais que já se encontravam separados de fato há mais de cinco anos antes da promulgação da emenda constitucional que introduziu a solvabilidade do vínculo matrimonial.
Mas, a partir do momento em que a sociedade se convenceu de que o divórcio não destruiu a sociedade nem acabou com o casamento, o vanguardismo de algumas decisões judiciais acabou levando à reformulação da lei, que veio a autorizar o divórcio consensual a partir de dois anos da ruptura da vida em comum e independente da data da separação.
Essa mesma precaução foi o que levou à singela transformação do desquite na separação judicial, figura híbrida que rompe mas não dissolve o casamento, o que inclusive afasta a possibilidade de se atender ao aparente interesse do Estado de que os conviventes casem.
As alterações produzidas pela jurisprudência, no entanto, não cessaram. A prova do implemento do prazo de separação de fato paulatinamente vem sendo relativizada. Passou a ser considerado suficiente trazerem as partes simples declarações de terceiros, para autorizar sua concessão, dispensando-se o que antes se tinha por indispensável: a ouvida das testemunhas em juízo.
Não precisou muito para se flagrar que passou o Judiciário a ser palco de uma encenação. Pretendendo os cônjuges pôr fim ao casamento, deixaram de buscar a separação. A necessidade de dois procedimentos, com a volta a juízo após um ano para a sua conversão em divórcio, gera, além de mais custos, desgastes desnecessários. Assim, independente do tempo de cessação da vida em comum, o par, munido de declarações de dois amigos que afirmam singelamente que o casal está separado há mais de dois anos, passou a requerer divórcio.
Como já vem sendo dispensada a ouvida em audiência dos firmatários das indigitadas declarações, sequer se justifica a necessidade de serem apresentados tais “documentos”, cuja credibilidade é relativa, pois questionável a veracidade do afirmado. Ao depois, a própria audiência de ratificação acabou se tornando um ato meramente formal, muitas vezes limitando-se as partes a firmarem um termo impresso em cartório.
Mas é de se atentar em outro aspecto. Cada vez mais se está questionando a legitimidade de o Estado imiscuir-se na vida do cidadão, até pelo alargamento de seus direitos e garantias assegurados constitucionalmente.
Será que o Poder Judiciário pode negar chancela à vontade das partes que manifestam de forma livre a intenção de romper o vínculo do matrimônio? Que interesse maior se estaria a proteger? Dizerem as partes que estão separadas não basta? Por que emprestar maior credibilidade à manifestação escrita de duas pessoas para aceitar assertiva dos cônjuges como verdadeira? Mais. Para que tentará o juiz reconciliar as partes que já não mais vivem juntas e não querem ficar casadas? Elas procuraram um advogado, intentaram uma ação buscando simplesmente o referendo judicial – que seria até dispensável – para desfazer um vínculo que foi formado espontaneamente e perante um serventuário da justiça.
Todas essas constatações evidenciam a total inversão que o exaustivo regramento legal impõe à dissolução do casamento. Para formar uma família, base da sociedade e merecedora da proteção do Estado (art. 226 da CF), entidade responsável para garantir, com absoluta prioridade, todos os direitos assegurados à criança e ao adolescente (art. 227 da CF), basta mero procedimento de habilitação. Dizer “sim” perante o chamado “juiz de paz” – que sequer servidor público é – soleniza o casamento, que é registrado por um oficial cartorário. No entanto, para desfazer esse vínculo, mister o uso do aparato do Poder Judiciário, o implemento de prazos, identificação de culpas e aplicação de sanções. Por que tal diferença de tratamento? Essa resistência afronta o direito à liberdade e à intimidade, além de configurar desrespeito à dignidade dos cônjuges cujo casamento já findou. De todo injustificável a insistência do Estado em mantê-los casados.
A exigência, ainda que com assento constitucional, de comprovar o decurso do prazo de dois anos não subsiste ao confronto com os princípios maiores insculpidos na própria Constituição Federal, que, ao assumir o compromisso de respeitar a dignidade do ser humano, necessita garantir o direito à liberdade. Não se pode olvidar que o direito à convivência familiar goza de especial proteção estatal, e inclusive há o compromisso de conversão da união estável em casamento, o que não pode ocorrer se os conviventes não estiverem divorciados.
Como as pessoas separadas judicialmente não podem casar, passam a viver em união estável, o que impede que cumpra o Estado o compromisso – diga-se, absolutamente inócuo – de facilitar sua conversão em casamento (art. 226, § 3°, da CF).
Assim, independente de alteração da Constituição Federal, dispensável a realização de audiência de ratificação e a ouvida de testemunhas para a concessão do divórcio direto buscado de forma consensual, bastando a afirmativa do par de que estão separados e não mais pretendem manter o casamento. Mais uma vez cabe à jurisprudência adequar as regras jurídicas à realidade atual, norte seguro para o legislador revisar as leis e amoldá-las aos reclamos de uma justiça mais célere e efetiva.
* Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família