É de relevo deixar registrado que nada obstante a aparente estranheza do título do presente artigo, ele fará sentido no decorrer do texto que ora se propõe a ser escrito, no qual será possível aproximar Ciências tão distintas, quais sejam, o Direito e a Odontologia.
Com o fito de abreviar o suspense, consigne-se, desde logo, que estas breves considerações estão relacionadas, sobretudo, com o item 3.5 do título X do edital do concurso para admissão ao emprego de Guarda Municipal da Empresa Municipal de Vigilância S.A, da cidade do Rio de Janeiro, de 29 de agosto de 2007, que assim está redigido: “Será considerado inapto o candidato que possuir menos de 20 (vinte) dentes, sendo 10 (dez) em cada arcada.”
É de notória sabença que a Constituição da República de 1988 traz previsão expressa em seu art. 37, II, de que investidura em cargo ou emprego público dependerá de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei.
Destarte, em face do dispositivo constitucional categórico, a Administração Pública, de regra, está obrigada a realizar concurso público antes da contratação de seus servidores.
O fundamento para a referida obrigatoriedade consiste na seleção dos melhores candidatos ao provimento dos cargos e funções públicas, bem como no tratamento isonômico entre os pretendentes, eis que permite uma disputa em igualdade de condições. Atende-se, assim, aos princípios da igualdade e da competição. Não se olvide, ademais, do princípio da moralidade administrativa, consubstanciado na vedação de favorecimentos e perseguições pessoais.
Nesse contexto, surge a necessidade da elaboração de um conjunto de regras que irão regular o ingresso no serviço público, vindo à baila o edital, que é o instrumento jurídico disciplinador do certame, sendo denominado na jurisprudência como a “lei” do concurso.
Ainda na mesma toada, parte da doutrina divide os requisitos de acesso em objetivos e subjetivos, aqueles relacionados diretamente às funções do cargo e estes à pessoa do candidato. Nos dois aspectos, devem ser observados um vínculo direto com as funções a serem exercidas, restando terminantemente proibidas disposições discriminatórias, em especial, aquelas que possam alancear, ainda que de maneira tênue, o princípio da igualdade, viga mestra do concurso público e de todo o nosso ordenamento jurídico.
Todavia, não raro, é possível encontrar disposições editalícias eivadas de arbitrariedade, extrapolando a Administração a discricionariedade que lhe é conferida para a elaboração dos editais, culminando numa avalanche de ações no Judiciário.
Aqui, neste ponto, vale registrar a importância do princípio da razoabilidade na aferição de cláusulas editalícias, sempre tendo como norte e limite o principio da dignidade da pessoa humana, tábua axiológica adotada pelo constituinte de 1988, entalhada no art. 3º, III, da Magna Carta, epicentro da ordem jurídica pátria.
A razoabilidade atua com o escopo de conter o arbítrio e moderar o exercício do poder, permitindo ao Judiciário a análise do mérito administrativo, ultrapassando o simples controle da legalidade formal.
Os editais não podem conter, frise-se mais uma vez, disposições discriminatórias, desarrazoadas, inadequadas, desnecessárias e desproporcionais às atribuições a serem desempenhadas pelo candidato que se pretende selecionar – futuro agente público.
Vale ressaltar que não se está a defender a intervenção constante e indiscriminada do Poder Judiciário na análise do mérito do ato administrativo nos editais de concurso público. Até porque, de regra, em face do princípio da separação dos poderes, este exame não lhe é permitido. Ao revés, deverá atuar o Judiciário com prudência e bom senso, produzindo decisões transparentes e motivadas na busca da igualdade material, evitando conferir tratamento privilegiado àqueles que ingressaram em juízo.
Isto posto, estabelecidos os contornos da discussão, passemos à análise de cunho odontológico. Vamos aos 20 dentes: 10 em cada arcada.
Consideremos o universo dentário composto por 32 (trinta e dois) dentes. Desde já, saliente-se que os terceiros molares estão em crescente processo de agenesia. Com a mudança dos hábitos alimentares através dos tempos, principalmente com o cozimento dos alimentos, os dentes “do juízo” estão deixando de existir. Quando muito, restam impactados e impossibilitados de romper o periodonto. Assim, imperioso reduzir a contagem inicial para 28 (vinte e oito) dentes.
Ademais, importante aduzir que grande parte da população tem ausência dos 1ºs molares permanentes, primeiros a serem atingidos pelas cáries, porquanto não possuem antecessores decíduos, vindo à tona em meio a dentição mista, quando os “dentes de leite” ainda estão na arcada, fazendo surgir nas pessoas a crença que também serão substituídos, o que, na verdade, não ocorre. Reduzido, mais uma vez, o quantitativo inicial. Agora restando cerca de 24 dentes.
Dados de 2003, do IBGE, em pesquisa realizada por Amostra de Domicílios – PNAD em convênio com o Ministério da Saúde, concernente ao acesso e utilização de serviços de saúde na cidade do Rio de Janeiro, concluíram que para uma população de 15 milhões de pessoas, 1,7 milhão nunca fizeram uma consulta ao dentista.
Pergunta-se, em face do cenário traçado e da sabida carência dos serviços públicos de saúde oferecidos a toda a população brasileira, seria razoável exigir-se de um candidato ao emprego de guarda municipal a presença de 20 dentes, sendo 10 em cada arcada?
Talvez a distribuição por arcada tenha como alicerce o aumento das chances da presença de um belo sorriso, sinal de cordialidade e simpatia, pronto a ser estampado no exercício da função pública. Indaga-se: e se os dentes ausentes forem os incisivos? Apenas um deles? Assim considerado, tal motivação estaria arruinada, eis que a “vitrine do sorriso”, o “cartão de visitas”, estaria comprometida.
E o Roach? A famigerada prótese parcial removível com armação metálica; ou, também, a popularmente conhecida “perereca”, quando feita de acrílico, entrariam no cômputo dos 20 dentes? E a dentadura, resolveria o problema? Seriam contabilizadas as próteses sobre os implantes dentários?
As questões acima ventiladas são suficientes para colocar em risco a relevância e, sobretudo, a razoabilidade da cláusula estabelecida no multicitado edital. Em casos outros, também é possível deparar-se com disposições editalícias de razoabilidade duvidosa.
Felizmente, é imprescindível deixar bem claro que esses casos são exceções, incapazes de tisnar o louvável instituto do concurso público, cuja índole constitucional lhe confere a merecida autoridade, apresentando-se, sem a menor sombra de dúvida, como o instrumento mais idôneo e imparcial para seleção e admissão de servidores públicos.
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Ewerton Marcus de Oliveira Góis
advogado da União, cirurgião-dentista