Críticas à Lei 9.714/98 sob a perspectiva social de uma execução penal
Luiz Antônio Bogo Chies
Em um mundo de paradoxos as metáforas adquirem significados enganosos.
Nos antagonismos calculados da vigente estrutura societária o feitiço, ao voltar-se contra o feiticeiro, muitas vezes o faz não para sua destruição, mas sim para viabilizar o retorno realimentado de sua força.
Nesse cenário o Direito positivado, que em sua própria natureza possui vínculos de cumplicidade com a estrutura social na qual se insere, assume relevante função revitalizadora de paradigmas conservadores, muitos já a beira de seu reconhecimento de morbidez enquanto respostas socialmente válidas e eficientes.
Com efeito, mascaram-se realidades para ofertar meros paliativos como promessas de cura; textos legais são produzidos de forma oportunista e, apresentados como eficazes remédios para os males sociais, concretizam-se como ineficientes placebos, quando não produtores de graves efeitos colaterais, não obstante muitas vezes em seus conteúdos programáticos e fundamentos apresentem significativos avanços em relação as realidades sobre as quais se projetam ou que pretendem suplantar.
De boas intenções sabe-se estar cheio o inferno, e talvez também os nossos Sistemas Penais latino-americanos, muito embora com pertinência Zaffaroni já os tenha revelado em sua deslegitimação “quando busca as penas perdidas”(1).
Há, pois, que se ter cautela frente à invenção e a inovação legal. Não só sua coerência interna em relação ao sistema jurídico no qual se insere merece reflexão crítica, mas também, e sobretudo, merecem atenção os efeitos sociais que tendem a se produzir na realidade muitas vezes mascarada pela lei, como ainda a repercussão daqueles enquanto reforço e reprodução de conceitos e noções muitas vezes equivocados ou enganosas em relação a própria sociedade em que se pretendem legitimar.
Tal nos parece ser a atenção que também merece a Lei 9.714/98, que em seu contundente conteúdo renovou a necessidade de um olhar crítico do mundo jurídico, em especial penal, e da própria sociedade, às penas restritivas de direito, principalmente enquanto alternativas à pena privativa de liberdade.
Por óbvio muitos são os aspectos suscitados ao debate pelos termos da Lei 9.714/98, em especial para aqueles que se dedicam à análise da coerência dos conceitos da ciência penal e destes com as modalidades punitivas positivadas, bem como para os que enfocam a perspectiva de compatibilidade do conteúdo concreto e concretizável de uma lei com o restante sistema de ordenamento jurídico no qual se insere.
Em igual sentido rico tem sido o material oferecido por nossos legisladores, em especial no campo penal, que nos têm brindado com pérolas do paradoxo, entre as quais exemplificativamente a Lei dos Crimes Hediondos (nº 8.072/90), a Lei dos Juizados Especiais (nº 9.099/95), só para que se registrem as socialmente mais conhecidas.
Deixaremos, entretanto, de momento tais análises para aqueles com melhor pertinência já as têm produzido. Nosso objetivo é lançar um olhar noutra direção; mais precisamente naquela que se constitui a partir da intersecção da promessa legal presente no texto em exame com a expectativa social depositada e decorrente de um imaginário acerca do sistema penal e com a realidade social concreta, esta referenciada a partir do modelo societário vigente e de sua correspondente estrutura política de governo.
Ainda que corramos o risco de uma análise meramente panorâmica, dispensaremos algumas reflexões de conceituação e delimitação dos elementos que compõem nosso foco por considerarmos, nos limites e abrangência deste texto, suficientemente compreensíveis.
Com efeito, acreditamos aceitável se considerar, não obstante o permanente desmascarar das mazelas do vigente sistema penal – em especial em sua face punitiva prisional – (do qual temos a pretensão de sermos aliados), que as atuais respostas penalógicas ofertadas pelo Direito positivado encontram ao menos um grau mínimo de reconhecimento social porque tendem, em seu enganoso engenho e emaranhado, responder a uma pouco crítica ânsia de segurança social, compartilhada pelos membros das diversas camadas da sociedade, ainda que aquela ânsia, em sua essência não claramente percebida por estes, reste por se constituir em um reforço reprodutivo dos princípios e instituições fundamentais de uma sociedade embasada na desigualdade concreta de seus membros.
Sob este pálio nebuloso, reforçado por um sedutor discurso humanizante, e fundado em emergentes valores liberais, viabilizou-se a expectativa de legitimação da pena privativa de liberdade. A resposta penalógica abstratamente igualitária que será concretamente distribuída com desigualdade seletiva.
Entretanto, não obstante a crítica, consolidou-se a pena privativa de liberdade, consolidaram-se os valores sociais da sociedade moderna industrial capitalista e com estes o desejo e a expectativa social da segurança dos mesmos, além de, como decorrência, a fiel crença na resposta punitiva prisional a partir de uma ingênua e acrítica esperança na realização das promessas humanizantes e das finalidades ressocializadoras utilitariamente a ela agregadas.
Falharam a pena privativa de liberdade e o sistema prisional em sua relação com a sociedade moderna? Cremos que não! sequer seu sucesso ressocializador seria legítimo. Mas entendemos não ser essa sua principal finalidade. (2)
Seu sucesso foi obtido pela máscara que produziu; pela capacidade de ofertar segurança à sensação e expectativa de benefício amplo e irrestrito dos membros do corpo social em termos de acesso concreto à igualdade, à liberdade e à propriedade – cujas noções abstratas e formais serviram de base de fundação da chamada sociedade moderna – , não obstante a inerente indisposição de seu sistema econômico-político e sociojurídico gestor em promover de forma real e socialmente abrangente tais acessos, reservando-os a seleto grupo.
Nesse sentido, que admitimos para fins de argumentação, somente teria falhado o sistema em sua incapacidade de reverter o esgotamento da resposta prisional; em não evitar o corroer da máscara pela insustentabilidade do discurso legitimador, responsável pela crise que enfrenta, no sentido em que Zaffaroni se refere à crise.(3)
O que poderia ter revertido da “falha” do sistema gestor da máscara punitiva prisional? Cremos que nada! E sequer gostaríamos de fomentar esperanças ao mesmo, mas lançaremos uma hipótese para os fins da reflexão que nos propomos.
Nesse sentido entendemos que talvez o investimento Estatal na estrutura do sistema penitenciário, ou seja, de forma qualitativa e quantitativa em recursos materiais e humanos, pudesse ter-se constituído em um elemento retardador da intensidade da situação de crise.
Entretanto, ainda que atenuada sua agonia, ainda assim apenas se retardaria a se tornar moribundo.
Sustentamos nossa hipótese na observação de que sistemas penitenciários inseridos em sociedades nas quais o Estado não se furtou em prover a estrutura prisional de recursos materiais e humanos em níveis superiores de quantidade e qualidade, não obstante padeçam dos mesmos antagonismos genéticos do nosso sistema, enfrentam menores ataques sociais deslegitimadores. Ou seja, têm conseguido por mais tempo sustentar a máscara atrás da qual escondem sua verdadeira face.
Mas, no que tais reflexões se relacionam com nossa Lei nº 9.714/98, sob o enfoque proposto?
Entendemos que esta lei, ao redimensionar a possibilidade de utilização das penas restritivas de direitos, em especial em sua perspectiva de revitalizar a pena de prestação de serviços à comunidade, representa um importante passo para o avanço crítico e comprometido das respostas sociais punitivas.
Sob um enfoque, em nossa compreensão a pena de prestação de serviços à comunidade é modalidade punitiva que viabiliza a preservação do critério de igualdade quando imposta a pessoas de grupos sociais distanciados em sua “fortuna”, preservação incompatível com modalidades punitivas como a multa, por exemplo.
Sob outro aspecto é pena que não retira o apenado do meio social no qual está inserido, do que resulta primeiramente em se evitar a dessocialização e a conseqüente prisionalização do condenado pelo ambiente penitenciário, e, ademais, gera uma co-responsabbilização sociedade com o enfrentamento de uma situação, de um “problema”, que ela mesma gestou em seu meio.
Tais questões lançamos a título exemplificativo, vez que outros aspectos podem ser lançados em defesa das perspectivas abertas pelo sistema da Lei nº 9.714/98, ainda que reconheçamos a pertinência de muitas críticas contra a mesma dirigidas e que tenhamos, com relação às modalidades penais que a mesma gerou ou redimensionou uma predileção especial pela de prestação de serviços à comunidade.
Entretanto é neste ponto que o remédio pode ser converter em placebo; que a promessa de cura pode representar mero paliativo ou, pior, gerar seu mais grave e danoso efeito colateral.
Os méritos das chamadas penas alternativas são conhecidos e vêm sendo amplamente divulgados, em especial – frisemos – da pena de prestação de serviços à comunidade, que já havia merecido anterior revitalização pelo sistema da Lei nº 9.099/95.
Mas tais méritos pouco podem representar perante uma sociedade que, insegura em face das omissões de um Poder Público incapaz de reduzir os antagonismos sociais a níveis ao menos não tão intensos de conflitividade, insegura por suas próprias omissões e ainda pelos inerentes processos da dinâmica característica do modelo societário que resta por colaborar em sustentar, encontra-se mais do que amedrontada, e sim emocionalmente instável quanto à direcionalidade de seus desejos e ânsias.
Esta é a brecha para que o antídoto se converta em veneno. É o espaço desejado pelo legislador oportunista e pela política criminal manipulatória e descompromissada.
Compelidos por valores utilitários e individualistas que ainda possuem forte vigência, sobre os quais pouca crítica se produz ao nível da grande massa do corpo social, os membros deste se defrontam com a compreensão concreta de que seus desejos, suas ânsias e seus interesses sociais por certo não serão contemplados em sua totalidade pelo sistema societário moderno.
Nesse sentido, não obstante ser fato que a maioria dos membros do corpo social pouco reflexionem acerca da impossibilidade de que o sistema, por sua própria gênese e base axiológica de fundamento, venha a um dia ser capaz de contemplar a totalidade dos interesses sociais e das promessas ilusórias que lança, terá o “cidadão” que optar.
Tal opção não tende a se dar entre as hipóteses de ruptura ou não do sistema, mas sim, via de regra tem partido do pressuposto de sua manutenção. Tem sido, pois, uma opção entre as possibilidades parciais que a própria lógica e dinâmica do sistema oferta, ainda que este busque manter viva a crença de que a totalidade, ainda que distante, quase utópica, é possível por suas próprias vias e instituições.
O que isto tende a significar, sob o referencial da sociedade moderna, no plano penal/punitivo? No enfrentamento de nosso eterno binômio social “crime x pena”?
Em nosso entendimento isto tende a significar uma opção parcial entre os dois grandes interesses sociais depositados na idéia da penalização legítima: recuperar e punir. Interesses esses que, não obstante outras necessárias análises de maior profundidade que extrapolam os limites desta reflexão, entendemos serem sínteses das noções vinculadas à pena.
Logo, está o corpo social, ao avaliar a eficácia das modalidades punitivas positivadas, a mensurar resultados de recuperação e punição, ou seja, perspectivas incertas de reinserção social daquele que foi, ainda que de forma acrítica, rotulado de “perigo social” e até ser patológico, e perspectivas concretas de retribuição e exclusão social, ao menos temporária, do mesmo.
Ora, ainda que nossa análise corra o risco da superficialidade, parece-nos claro que frente à impossibilidade de ambos os resultados, têm a ânsia social, por seus próprios vícios já mencionados, clamado sua opção utilitária pela punição. Se não se pode recuperar, que ao menos se puna, se faça sofrer e pagar! Tem sido a triste máxima social verificada.
São dados apoiadores do acima mencionado as consultas de opinião pública acerca da pena de morte, bem como o apoio popular às leis que propõem maior rigor a determinadas modalidades penais típicas.
Com efeito, frente a uma legislação que propõe alternativas diferenciadas à mera retribuição prisional, como a decorrente das alterações da Lei nº 9.714/98, é compreensível que a incerteza e a insegurança social se manifestem. O “novo” sempre tende a gerar desestabilização.
Tal sentimento de incerteza ou mesmo de insegurança poderia ao menos ser minimizado, ou até mesmo suplantado, a partir de diversas iniciativas. Entretanto, sem dúvida se consolidará na medida correspondente à falta de investimento público e estatal na estrutura necessária ao bom desenvolvimento das realidades punitivas propostas e positivadas pela Lei nº 9.714/98.
E, convenhamos, a omissão e o descompromisso público estatal têm sido as regras no que tange a questão penal/punitiva em nossa sociedade.
Frente a esse quadro em nada deverá nos espantar que ressurja, de suas ainda “não cinzas”, a prisão como resposta penalógica viável. E, sem igual espanto, também podemos vislumbrar a revitalização “triunfante” do “mal necessário” sendo coroada de legitimação acrítica, se é que assim se pode falar, por parte de nossa “massa social”, compelida em suas “necessárias” opções.
É o risco do feitiço que, ao se pretender virar contra o feiticeiro, em verdade em relação a este se omite, até mesmo por não ser da sua dinâmica e natureza atingir sua própria fonte. É a lógica da anti-vacina, que ao usar o veneno como antídoto não o dota de elementos e estruturas capazes de produzir efeitos benéficos, matando o corpo sobre o qual recai por suas primeiras propriedades.
É o paradoxo!
(1) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: deslegitimacion y dogmatica juridico-penal. Ediar, Buenos Aires.
(2) Trabalhamos esta questão com mais atenção em Prisão e Estado: a função ideológica da privação da liberdade
(3) ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op.cit. p.19-20