Autor: César Caúla (*)
Em discurso proferido em 10 de agosto do ano passado, durante solenidade de assinatura de acordos de cooperação entre a AGU e as Procuradorias-Gerais dos estados e do Distrito Federal, o presidente Michel Temer, de certo modo, surpreendeu a todos com as considerações que teceu acerca da tendência brasileira de concentração de recursos em favor da União. Mencionando cada um dos documentos constitucionais de nossa história republicana, o chefe do Executivo nacional anotou que “em 5 de outubro de 88 renasce a democracia com uma federação ainda pálida, que ao longo do tempo foi esmaecendo cada vez mais, até praticamente destruí-la”. E para não haver dúvida da profundidade e da ênfase da crítica sistemática que empreendeu, o presidente verberou que “a nossa Federação é uma Federação capenga; ela não é verdadeira, ela é artificial”. Uma das faces da fragilização do modelo federativo encontra-se na concentração exagerada de recursos em poder da União, em detrimento de estados e municípios, o que resulta em distorções políticas e administrativas bastante graves. Tratando especificamente do mecanismo mais utilizado para fazer a concentração de recursos, disse ainda o presidente: “A União foi trazendo para si a grande massa dos tributos, tanto que a própria chamada Contribuição de Movimentação Financeira, a CPMF, no primeiro instante foi o imposto, imposto provisório de movimentação financeira e como imposto era partilhável pelos fundos de participação dos estados e dos municípios. Quando a União se deu conta disso, ela mudou a denominação ao fundamento de que mudando a denominação mudaria a natureza jurídica. Coisa curiosa isso. Quando você mudar a denominação, não muda a natureza jurídica. E assim passou a ser contribuição para quê? Para não ser partilhada com estados e municípios. Então nós, nós temos essa vocação centralizar tudo em torno da União, seja no tópico da política, seja no tópico da administração”. Em outro momento de seu relevante pronunciamento, o presidente ainda exortou a todos que considerassem a importância de se valorizar a Constituição e de fazê-la perene, buscando encontrar na sua aplicação as soluções para os problemas nacionais, em vez de, a cada dificuldade, cogitar-se de sua alteração ou substituição. Mas a propósito de que se faz, aqui, referência a fato ocorrido já há oito meses? É que, a partir de um requerimento formulado pelo estado de Minas Gerais (Ofício GAB.GOV 208/18), em 3 de abril de 2018, ao qual recentemente aderiram outros 18 integrantes da federação (AC, AM, AP, BA, CE, DF, GO, MA, MS, PA, PE, PI, PR, RN, RO, RR, SE e TO), o presidente Temer recebeu uma interessante oportunidade de demonstrar que está mesmo disposto a transformar o discurso em realidade. Ou seja, no ponto específico, a tomar providências concretas para minorar as distorções de que enferma nossa federação, em conformidade com a compreensão histórica e jurídica que expôs publicamente. A Carta de 1988 claramente pretendeu estabelecer o que se costuma denominar de federalismo cooperativo, fixando, em seus artigos 23 e 24, uma série de competências comuns e concorrentes entre os entes federados, para cujo desenvolvimento seriam necessários mecanismos de arrecadação e distribuição dos recursos públicos. Em um modelo federativo ideal, a distribuição de missões precisa corresponder à repartição da renda necessária para essas atribuições. Quando não se verifica adequação entre competências e recursos financeiros, compromete-se a própria autonomia política, conforme acertadamente adverte Dallari: “A cada esfera de competências se atribui uma renda própria. Este é um ponto de grande importância e que só recentemente começou a ser cuidadosamente tratado. Como a experiência demonstrou, e é óbvio isso, dar-se competência é o mesmo que atribuir encargos. É indispensável, portanto, que se assegure a quem tem os encargos uma fonte de renda suficiente, pois do contrario a autonomia polícia torna-se apenas nominal, pois não pode agir, e agir com independência, que não dispõe de recursos próprios”. Para assegurar, então, alguma autonomia financeira dos entes políticos, os estados receberam autorização para instituir tributos próprios, que a Constituição elencou especificamente. Quanto à União, a Carta de 1988 autorizou que, ao lado dos tributos nominados, pudesse ela instituir o chamado imposto residual, determinando, porém, que 20% da sua arrecadação fosse compartilhada com os estados e o Distrito Federal, nos termos do artigo 157, inciso II, da CRFB/88. Pretendeu-se, com a regra citada por último, evitar que a instituição de impostos inominados servisse a uma concentração excessiva de recursos financeiros em prol da União, desequilibrando a estrutura federativa. A crise sistêmica que atinge fortemente os estados e os municípios brasileiros demonstra que essa imagem ideal não encontra reflexo na realidade dos fatos. Talvez menos por defeito do desenho elaborado pelo constituinte originário e mais por conta de mudanças fáticas e de alterações legais e constitucionais. De um lado, aumentaram-se as demandas sociais sobre estados e municípios. De outro, a União valeu-se de medidas que contribuíram para uma concentração de recursos ainda mais danosa, conforme reconhecido pelo presidente da República. Não se está aqui defendendo a ideia de que se deva (ou mesmo de que se possa) alcançar uma perfeita simetria no âmbito da federação, o que, aliás, provavelmente seria inadequado para uma federação como a brasileira, em que as disparidades econômicas e sociais são tão significativas que a Constituição determinou, entre os objetivos nacionais, a redução das desigualdades regionais. Deve-se, então, a todo tempo, buscar um equilíbrio dinâmico entre as forças presentes em uma organização federativa, assim explicadas por Lilian Miranda: “Ao longo do tempo, um grande número de Estados Federais foram adaptando o princípio federal surgido nos Estados Unidos às suas próprias realidades. E no que consiste este princípio federativo? Qual sua nota essencial? A resposta a esta pergunta encontra-se no equilíbrio das forças ou tendências que formam o pacto federativo de determinado país, quais sejam a tendência centralizadora, de formação de um Estado Nacional (centrípeta), e a Tendência Federal (centrífuga), que busca preservar o poder das localidades. Isso não significa que, para que se caracterize um Estado Federal, deva haver um equilíbrio perfeitamente simétrico entre as tendências centrípeta ou centrífuga. Ao contrário, uma das características mais marcantes do Federalismo é justamente a flexibilidade que permite sua adaptação às mais diversas realidades espaciais e temporais”. Acontece que a União, tal como reconhecido pelo presidente Temer naquele pronunciamento, optou por ser valer, à busca de recursos, da espécie tributária contribuição, que não é compartilhada com estados e municípios. Mas não só. Para além disso e confirmando, aliás, o desvio em que se constitui o exagero no manejo das contribuições, a Emenda Constitucional 27/2000 criou a denominada DRU, prorrogada sucessivamente até 31 de dezembro de 2023, que implicou a desvinculação de 30% da arrecadação da União relativa às contribuições sociais, às contribuições de intervenção no domínio econômico e às taxas. O sistema tributário nacional foi originalmente desenhado para garantir equilíbrio entre os entes da federação, e o constituinte originário, em respeito mesmo ao princípio federativo, determinou, como visto, que o produto da arrecadação de novo imposto eventualmente criado para abastecer o orçamento fiscal da União Federal pertenceria aos estados e ao Distrito Federal à razão de 20%. Para corrigir, então, ao menos parcialmente, a distorção aqui tratada, a parcela das contribuições sociais que deixou de ser vinculada à destinação que justificou as respectivas instituições (30%) deve, por sua natureza, ser repartida entre estados e Distrito Federal, atendendo-se à vontade constitucional. Tal como registrado no ofício encaminhado pelo Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal (Conpeg) para manifestar apoio à postulação mineira, “a circunstância de ocupar a Presidência da República um Procurador de Estado, Professor de Direito Constitucional e parlamentar constituinte representa oportunidade ímpar de se iniciar a correção de um desequilíbrio federativo que se vem verificando e aprofundando há décadas”. Resta aguardar. Autor: César Caúla é procurador-geral do estado de Pernambuco. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito do Recife e em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Autor: César Caúla é procurador-geral do estado de Pernambuco. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito do Recife e em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.