É hora de permitir a tímida democratização da Justiça

por José Renato Nalini

O prazo de 180 dias previsto na Emenda Constitucional 45/2004, a Reforma do Judiciário, pode ter dois marcos. Um a partir de sua edição, 8 de dezembro do ano findo, e outro a contar de sua promulgação, no último dia de 2004.

Seja como for, a pretendida reestruturação da Justiça brasileira teve início. A resistência do conservadorismo tentou emperrar as mudanças. Tanto que não ocorreu a profunda reforma desejável, mas um conjunto tímido de propostas. Mesmo estas significam bastante para um universo que se manteve distanciado da modernidade por mais de um século.

São Paulo, a unidade da Federação com os maiores problemas no funcionamento da Justiça, já pode sentir os reflexos da emenda. Houve unificação dos quatro tribunais num único colegiado de segunda instância. Sem as centenas de aposentadorias prometidas, sem grandes traumas.

Pode parecer estranho ao leigo que a resistência à unificação argumentasse com o megatribunal, com o ‘Maracanã’ de desembargadores e, mesmo assim, a proposta tenha sido a criação de mais 22 cargos de desembargador. Seria lícito esperar que, implantada a incorporação dos Tribunais de Alçada ao Tribunal de Justiça, o número de cargos pudesse até vir a ser reduzido. Mas o governo foi sensível e os deputados estaduais, também.

A Justiça comum de segunda instância em São Paulo conta hoje com 360 julgadores titulares. Fora um grande número de juízes substitutos em segunda instância. É promissor esperar que, com esse número, haja resgate do represamento e os 600 mil recursos que aguardavam distribuição venham a ser decididos. Sem prejuízo de se imprimir novo ritmo aos processos que continuam a chegar à segunda instância.

Só que o constituinte não previu apenas isso. Ele quis ver cumprida outra norma, já constante da Constituição paulista desde 1989, ignorada pelo Judiciário: a eleição de metade do Órgão Especial, o grupo de 25 encarregados de administrar a Justiça.

Houve diligência ao liberar os integrantes do Órgão Especial de suas funções jurisdicionais, tanto que criados mais 22 cargos de desembargador para preencher as vagas deixadas nas Câmaras. Mas se resiste à implantação da incipiente semidemocratização interna, sob os mais curiosos pretextos. Haveria súbita instabilidade jurisprudencial se metade viesse a ser eleita. Seria traumático para o funcionamento do Órgão.

É difícil realizar uma eleição conjunta, em que concorrem juízes de carreira e juízes do quinto constitucional. O que fazer com os que já integram o Órgão como representantes mais antigos e não fossem eleitos? Acena-se, portanto, com a implementação lenta e gradual do preceito do inciso XI do artigo 93 da Constituição emendada. A cada vaga surgida se alternariam a eleição e a assunção do mais antigo. Só que essa não é a vontade do constituinte. Nem o interesse da Justiça. Nem o atendimento ao interesse do povo.

Interessa ao povo cumprir a Constituição? Sim, e muito.

Uma eleição significa a participação efetiva de um colegiado considerável — 360 juízes experientes — na condução dos rumos do Judiciário. Por mais preparados que sejam os antigos, o sistema do preenchimento automático das vagas no colegiado cuja função precípua é administrar a Justiça comum estadual não permite o debate, a estipulação de metas, a elaboração de programas amplamente discutidos.

A Justiça só chegou a este estágio de descrédito e de disfuncionalidade porque a assunção dos cargos diretivos nunca se submeteu a uma verdadeira escolha. Sempre houve a sucessão dos mais antigos, que, por direito assegurado, não precisavam expor suas idéias e seus planos. E, por isso mesmo, nunca puderam ser cobrados. É hora de permitir essa discreta, limitada, tímida e incompleta democracia na Justiça, pois o ideal democrático é um dos fundamentos do Estado de Direito e não fará mal algum ao funcionamento do Judiciário. Não haverá riscos de politização da magistratura. O estamento judicial já é conservador por índole e formação.

Nem devem estar preocupados os integrantes do Órgão Especial que ultrapassarem a metade mais longeva. Basta abrir a oportunidade para o diálogo, o estabelecimento de metas a serem cumpridas, a elaboração de planos, a abertura às propostas dos demais colegas e não haverá dúvida alguma de que poderão conservar o seu lugar no Órgão Especial.

Ampliar as instâncias de participação, de envolvimento de todos os interessados no projeto de edificar a nova Justiça, de trazer maior transparência à administração do Judiciário corresponde aos propósitos da recéminiciada reforma e viabilizará o exaustivo percurso até a sua consolidação.?

Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo

José Renato Nalini é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de Ética Geral e Profissional, 4.ª ed., RT.

nalini@apamagis.com.br

Revista Consultor Jurídico

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