É inconstitucional excluir empresas estatais da Lei de Falências

por Renato Ventura Ribeiro

A recém promulgada e festejada lei de recuperação judicial e de falência (Lei 11.101, de 9.2.2005) traz flagrante inconstitucionalidade, em seu art. 2º, inc. I, ao excluir de sua aplicação a empresa pública e a sociedade de economia mista.

A Carta Magna é bem clara ao prever que a empresa pública e a sociedade de economia mista ficarão sujeitas “ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários” (CF, art. 173, § 1º, II).

Como a legislação de recuperação de empresas dispõe sobre direitos e obrigações comerciais, tanto a empresa pública quanto a sociedade de economia mista devem estar sujeitas a ela, segundo o mandamento constitucional, por ficarem sujeitas ao regime jurídico próprio das empresas privadas.

O mais grave é que o assunto não constitui novidade, principalmente no caso das sociedades de economia mista.

A redação original da lei das sociedades por ações (Lei 6.404/76, art. 242) excluía as sociedades de economia mista da aplicação das disposições da lei falimentar, com a seguinte justificativa, presente na Exposição de Motivos: “A razão do preceito — similar ao de outras legislações estrangeiras — é óbvia: o interesse público, que justifica a instituição, por lei, de uma companhia de economia mista, não permite admitir que sua administração possa ser transferida para credores, através do síndico, como ocorre na falência”.

Com a equiparação ao regime jurídico das empresas privadas, feita inicialmente pela Emenda 12/78 à Carta Magna anterior, e pela Constituição de 1988 (art. 173, § 1º, II), embora com pequenas modificações no texto, a exclusão do regime falimentar prevista no art. 242 da lei do anonimato passou a ter sua constitucionalidade questionada.

O escopo da norma constitucional “visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades públicas que exerçam ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades privadas que se dediquem a atividade econômica na mesma área ou em área semelhante” (cf. Pleno do STF, RE 172.816, RTJ 153/337 e RDA 195/197). Por isto, o dispositivo constitucional é aplicável às entidades públicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência (idem, ibidem).

Por mais de uma vez, o atual Ministro do STF Eros Grau expôs sua posição pela aplicação da lei falimentar às empresas públicas e sociedades de economia mista apenas que exercem atividade econômica e não quando prestam serviço público (cf. “Execução contra estatais prestadoras de serviço público”, RDP 79/103; “Lucratividade e função social nas empresas sob controle do Estado”, RDM 55/54-55; A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica, 2ª ed., São Paulo, RT, 1991, p. 142). No mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, 6ª ed., São Paulo, Malheiros, 1995, p. 97) e Diógenes Gasparini (Direito Administrativo, 8ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 379).

Na doutrina comercialista, entre outros, entendendo pela inconstitucionalidade do art. 242 da lei das sociedades por ações, Newton de Lucca (Regime jurídico da empresa estatal no Brasil, São Paulo, tese, 1986, pp. 140-167, em especial pp. 166-167) e José Edwaldo Tavares Borba (Sociedade de economia mista e privatização, Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 1997, p. 23).

Newton de Lucca entende pela aplicação da falência inclusive nos casos de empresas prestadoras de serviço, lembrando que em relação a elas, “com a decretação da falência ocorreria a chamada ‘reversão de bens’, cabendo ao Estado, por havê-los incorporado, garantir os credores até o valor dos bens revertidos” (idem, p. 166), para concluir que “Em qualquer das hipóteses … não se justifica a inaplicação do instituto da falência às sociedades de economia mista. Como se não bastassem as razões apresentadas e o conflito com o preceito constitucional assinalado, também as soluções no direito comparado parecem caminhar no mesmo sentido” (idem, p. 167).

Em razão destes e de outros questionamentos quanto à sua constitucionalidade, o artigo 242 foi revogado pela Lei 10.303/2001, conforme exposto na justificativa do PL 3.115/97, da qual se originou a referida lei.

Assim, o legislador parece bastante contraditório: primeiro revoga a isenção das sociedades de economia mista do procedimento falimentar por dúvidas quanto à sua constitucionalidade para, pouco mais de três anos depois, reincluí-la na legislação.

Ressalte-se ainda que a sujeição das empresas públicas e sociedades de economia mista à lei falimentar não é de todo mal. Pelo contrário. Com visão moderna, levando expressamente em consideração a função social da empresa (Lei 11.101/05, art. 47), traz a possibilidade de recuperação judicial ou extrajudicial, o que pode, em muito, auxiliar empresas públicas e sociedades de economia mista em dificuldades.

Até porque tais empresas não podem ser pretexto para desperdício de recursos públicos. Ainda mais quando, além das regras normais de conduta e responsabilidade dos administradores, foi introduzida a eficiência como princípio da administração pública pela Emenda à Constituição 19/98, que deu nova redação ao artigo 37 da Carta Magna.

Reconhecemos a função social da sociedade de economia mista, cujo escopo, por lei, não é meramente lucrativo, devendo-se atender ao interesse público que justificou sua criação (Lei 6.404/76, art. 238). Mas o texto constitucional é claro ao aplicar a isonomia ao regime das empresas privadas, pelo que se conclui que o citado artigo da nova lei falimentar viola a Lei Maior. Mesmo quem, em tese, não concorda com a sujeição das sociedades de economia mista à lei falimentar, deve reconhecer a inconstitucionalidade em razão do preceito da Carta Magna.

Em suma, a nova lei trouxe de volta uma velha inconstitucionalidade…

Revista Consultor Jurídico, 14 de Fevereiro de 2005

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