Autor: Daniel Meir Grajzer (*)
Em decisão complexa e, até hoje, contestada do ponto de vista formal e hermenêutico, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, em sede de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário nacional.
Diante das constantes violações aos direitos fundamentais dos presos, muitas vezes esquecidos pela mídia e por parte da população como sujeitos de direito, foi utilizado esse instituto inovador, inspirado em decisão semelhante da Corte Constitucional da Colômbia, para reconhecer as atrocidades e falta de amparo de políticas públicas estatais para prover uma existência minimamente digna à população carcerária nacional.
Dentre os elementos concedidos em sede de medida cautelar, destacamos o seguinte:
“e) à União – que libere o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos”.
O Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) foi criado pela Lei Complementar 79/94 com a finalidade de “proporcionar recursos e meios para financiar e apoiar as atividades e programas de modernização e aprimoramento do Sistema Penitenciário Brasileiro”.
Todas as medidas originariamente previstas pela norma acima citada visavam, sob um ponto de vista mais humanizado contra a completa calamidade do sistema prisional, diminuir os abusos e violações de direitos fundamentais a que constantemente se sujeitam os presos. Constam entre os benefícios que poderiam ser gerados a partir do Funpen: a formação educacional e cultural do preso e do internado, o programa de assistência aos dependentes de presos e internados, a implantação e manutenção de berçário, creche e apoio físico às gestantes, entre outras.
Ocorre que, em 19 de dezembro de 2016, publicou-se a Medida Provisória 755/16, operando mudanças substanciais no texto legal inicialmente proposto, deturpando os objetivos da norma jurídica de aprimorar e melhorar a situação carcerária atual. Embora pareçam sutis em um primeiro olhar, as alterações no texto da norma representam grave ameaça às aplicações dos recursos orçamentários para sua finalidade original.
Foram incluídos os seguintes itens para aplicação dos recursos do Funpen:
“XVII – políticas de redução da criminalidade; e
XVIII – financiamento e apoio a políticas e atividades preventivas, inclusive de inteligência policial, vocacionadas à redução da criminalidade e da população carcerária”.
A princípio, políticas de redução e prevenção de criminalidade parecem colaborar com os objetivos de melhoria da vida dos presos uma vez que soam como propostas que diminuiriam a população carcerária e otimizaria os gastos com essas instituições.
Entretanto, a ideia de redução de criminalidade aplicada é a de diminuição de infratores fora dos presídios, ou seja, os investimentos são feitos para aumentar a captura de contraventores. Assim, o Funpen passou a poder ser utilizado para a aquisição de automóveis policiais, por exemplo.
Com a decisão da ADPF 347, nossa corte suprema havia reconhecido o inferno a que são submetidos os presos do Brasil e buscou amenizar tal situação, autorizando a liberação do saldo acumulado do Funpen com o propósito de prover condições humanas de vida para essas pessoas conforme previsto na lei complementar que o originou.
Agora, por meio de medida provisória, alterou-se o conteúdo da norma para acrescentar o direcionamento de recursos que fogem de seu propósito original. Era esse o objetivo do Judiciário ao proferir sua decisão em medida cautelar? De que forma reduzir a criminalidade nas ruas melhora a vida daqueles que já se encontram no sistema prisional que, em casos já relatados pela mídia, sequer possuem água, itens de higiene pessoal e têm de compartilhar celas com o dobro de presos previstos para uma mínima convivência humana?
Financiar medidas preventivas e a inteligência policial, ou seja, melhor instrumentalizar a polícia, contribui de que forma para impedir que se repitam situações como as agora vistas em Manaus e Roraima?
O desvio de finalidade dos recursos ora gerados pela recente MP é uma afronta à Constituição Federal em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), à proibição da tortura e tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, III), à vedação a sanções cruéis (artigo 5º, XLVII, “e”) e ao respeito à integridade física e moral dos presos (artigo 5º, XLIX).
A MP não só afeta direitos fundamentais constitucionais dos presos como também fere diretamente o princípio da separação de poderes, tendo em vista que a decisão do Judiciário, que deveria ser respeitada pelo Executivo e pelo Legislativo, foi clara em relação à utilização dos recursos do Funpen para a “finalidade para a qual foi criado”. A nova MP distorceu essa finalidade, subvertendo a decisão do STF.
A norma jurídica do Poder Executivo trouxe novos elementos para alocação de recursos, estes não autorizados pela decisão da suprema corte, ou seja, buscou-se a desvirtuação do Funpen e sua finalidade de proteção daqueles que são, sem dúvida, os menos amparados pela proteção estatal.
O Partido Socialismo e Liberdade (Psol, autor da ADPF 437) já tomou medidas judiciais cabíveis para que o STF faça ser respeitada e cumprida sua decisão original, reconhecendo-se as inconstitucionalidades presentes na MP 755/16, conforme exposto neste artigo. A atenção que vem sendo dada ao sistema penitenciário nacional parece se basear na célebre frase do conselheiro Aires na obra machadiana Esaú e Jacó:
“— Não é a ocasião que faz o ladrão, dizia ele a alguém; o provérbio está errado. A forma exata deve ser esta: A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito”.
Que os ministros do STF tenham em mente o erro do provérbio e reconheçam aquele que de fato fez o “ladrão nascer feito”: nosso Estado, na sua irresponsabilidade com seus cidadãos.
Autor: Daniel Meir Grajzer é advogado do escritório Francavilla, Assis Fonseca e Soares Cabral Advogados.