Os quinhentos e poucos anos de caminhada do Brasil ao longo da linha do tempo tem sido descritos pela historiografia mais festejada como marcados por um desenvolvimento institucional atrasado e errático. Pois mesmo diante desse padrão nada exigente, o Poder Judiciário, da forma como é organizado atualmente, vem demonstrando, dia após dia, não ter cumprido várias das etapas desse desenvolvimento.
O grito de independência do Brasil foi ouvido em 1822. No Poder Judiciário Federal, todavia, até hoje não se conhece a independência financeira e orçamentária. A Justiça Federal compromete apenas pouco mais de 0,5% do orçamento geral da União e 0,1% do PIB; arrecada, somente com as execuções fiscais ali processadas,mais que seu próprio custo; e dá rigoroso cumprimento às normas de responsabilidade fiscal. Apesar disso, esse ramo da Justiça continua sujeito aos cortes orçamentários arbitrariamente ditados pelo Poder Executivo; não pode administrar as receitas decorrentes de suas próprias custas; e assume, no seu próprio orçamento, despesas de responsabilidade do Executivo, como a assistência judiciária e as perícias que a Defensoria Pública da União ainda não consegue cobrir.
A abolição da escravatura data, entre nós, de 1888. Os juízes federais brasileiros, todavia, até hoje realizam inúmeros trabalhos extraordinários sem a devida compensação, como plantões, horas extras, acumulação de tarefas de outras Varas, e o exercício de posições de chefia administrativa.
A Constituição de 1891 deixou bem assentada a independência dos Poderes, cunhada por Montesquieu mais de um século antes. No Judiciário Federal, porém, os juízes tem, até hoje, participação diminuta nas decisões fundamentais do ponto de vista orçamentário e gerencial. É dizer, quem sente de perto as necessidades do dia-a-dia não tem o poder de eleger prioridades, traçar metas, escolher o caminho a ser trilhado. Tudo é entregue às chamadas “áreas técnicas”, que são submetidas a magistrados, na prática, apenas do ponto de vista formal. Não fosse grave o suficiente a situação, o Ministério da Justiça estabelece a absurda proposta de criação de cargos específicos de administrador judicial, o que, se aprovado, alijará de vez os juízes da esfera de decisão em torno da administração da Justiça.
A Consolidação das Leis do Trabalho cristalizou, na década de 1940, os direitos básicos de todo trabalhador. Enquanto mais de 80% dos trabalhadores públicos e privados tem tido, em sua data-base, reajustes acima da inflação nos últimos anos, aos juízes tem sido reservado solene descumprimento da determinação constitucional de revisão anual de seus subsídios, resultando em corrosão inflacionária de seu poder de compra em importe já superior a 30%. Além disso, licenças e vantagens reconhecidas ao Ministério Público e outras carreiras jurídicas não são reproduzidas nas fileiras do Judiciário. Mesmo o subsídio, atraente para os iniciantes, vai perdendo rapidamente seu encanto, já que se mantém praticamente estanque ao longo de toda a carreira, na contramão dos princípios básicos de regência dos recursos humanos.
O princípio democrático e a cidadania, por terem sido seguidamente golpeados ao longo da história, hoje nos são muito caros. No Judiciário, porém, seus membros ainda tem pouca participação na escolha de seus dirigentes e não podem concorrer a cargos eletivos. Até mesmo o acesso dos próprios juízes ao Judiciário é restrito, já que qualquer ação que venham a ajuizar sobre sua situação funcional pode ser deslocada para o STF por força do disposto no artigo 102, I, “n”, da Constituição, para ali perder-se, desesperançado, entre as dezenas de milhares de processos que por lá tramitam.
O resultado desse sobreatraso histórico é cada vez mais sensível. A opção profissional pela magistratura tem declinado fortemente ao longo do tempo, como o próprio Conselho Nacional de Justiça já teve oportunidade de diagnosticar. Os melhores profissionais não desejam assumir uma responsabilidade maior sem um reconhecimento correspondente. Há alguns dias, no Tribunal de Justiça de São Paulo, ocorreu o fato inédito da nomeação de um promotor de primeira instância para o cargo de desembargador, pois, pela primeira vez nessa inusitada história, não havia procuradores (de segunda instância) interessados na função.
A conclusão dessa triste história é que é necessário impulsionar o desenvolvimento institucional do Poder Judiciário, notadamente na esfera federal, a fim de que ele se aproxime dos anseios da sociedade; aproveite ao máximo o potencial de seus juízes; e cumpra fielmente seu objetivo constitucional. Isso passa, necessariamente, pela proclamação de sua independência financeira, orçamentária e gerencial; pela abolição do trabalho escravo dos juízes; pelo saneamento da fragilidade do regime jurídico da carreira; e pela cristalização das práticas democráticas na rotina institucional.
Por Antônio Henrique Corrêa da Silva