Autor: Roberto Bona Junior (*)
Criada pela Suprema Corte Americana e muito utilizada em países como Espanha e Alemanha, a teoria da cegueira deliberada (willful blindness doctrine), também conhecida como a teoria das instruções do avestruz (ostrich instructions), começa a ganhar força no Brasil.
A teoria tem como objetivo punir por dolo àquele que voluntariamente se coloca em estado de desconhecimento, ignorando fatos suspeitos para optar por uma situação que lhe é mais vantajosa. Por isso a analogia com o avestruz, que sempre enterra a cabeça para não enxergar o que esta acontecendo diante de seus olhos.
Nessa seara, assim como o avestruz vê e finge que não viu, o agente também vê, desconfia, mas ignora a suspeita de que a conduta que está praticando é ilícita, com o objetivo de tirar proveito disso.
O agente sabe, ou pelo menos tem forte suspeita, de que está diante de um negócio ilícito e caminha em sentido contrário àquele que se espera, para auferir lucro, escolhendo deliberadamente por não suspeitar das transações que tenham indícios de crime.
A teoria surgiu para suprir a falha do Estado na produção de provas acerca do real conhecimento do réu em situações fáticas duvidosas. Apesar do acusado não ter conhecimento dos fatos, essa falta de conhecimento deve-se a prática de atos afirmativos de sua parte para evitar a descoberta de uma situação suspeita.[1]
Presume-se assim, o conhecimento do acusado em casos onde não há prova concreta de seu envolvimento, para que ele possa ser condenado.
No Brasil, a teoria começou a ser aplicada em dois casos emblemáticos. O primeiro foi o furto dos 175 milhões de reais do Banco Central de Fortaleza, em 2005. Após o crime, membros da quadrilha teriam se deslocado a uma concessionária e comprado 11 automóveis, totalizando aproximadamente um milhão de reais, pagos em espécie.
O juiz do caso aplicou a teoria tendo em vista que, pelas circunstâncias – alta quantia de dinheiro em espécie – os responsáveis pela concessionária teriam ignorado esse fato bastante incomum para não saber a origem do dinheiro. Foram então condenados com base no art. 1º, § 2º, inc. I da Lei de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98). Porém, foram absolvidos ao recorrerem ao tribunal, que entendeu não haver dolo direto na conduta.
O segundo foi a Ação Penal 470, popularmente conhecida como mensalão. O ministro Celso de Mello admitiu a possibilidade do dolo eventual em crimes de lavagem de capitais com suporte na teoria da cegueira deliberada.
Considerou que, por esse critério, “em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem prometida”, poder-se-ia caracterizar a conduta de alguns réus da ação penal 470 como delituosas nos termos da Lei de Lavagem de Capitais. Em outras palavras, houve, para Celso de Mello, pelo menos, dolo eventual em suas respectivas condutas, de modo a autorizar-se a punição pela figura delitiva prevista no art. 1º, caput, da Lei 9.613/98 (popularmente chamada de “lavagem de dinheiro”).[2]
Em 2012, houve significativa mudança na norma sobre crimes de lavagem de capitais (Lei 12.683/12), que trouxe outra redação para o tipo penal estabelecido no art. 1º, § 2º, inc. I. Vamos à análise da alteração:
Lei 9.613/98:
Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:
(…) § 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem:
I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo;
Lei 12.683/12:
Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal:
(…)§ 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem:
I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal;
Note-se que houve importante alteração legislativa no plano subjetivo, visto que foi suprimido o termo “saber da procedência”. A partir daí, o legislador passa a permitir a punição por dolo eventual.
Ou seja, aquele que suspeitar da origem ilícita na esfera a qual atua e evitar apurar os fatos propositalmente, para justificar a atividade econômica ou financeira, assumirá o risco de praticar o crime lavagem de capitais.[3]
Essa alteração da lei fez com que fosse permitida a aplicação da teoria da cegueira deliberada. E essa aplicação já vem ocorrendo na operação lava a jato. O juiz federal Sergio Moro utilizou a teoria para fundamentar a condenação de Ivan Vernon Gomes Torres Junior no crime de lavagem de dinheiro.[4]
A tendência é que mais condenações surjam. Para isso, é necessário um maior debate a respeito do tema, de suma relevância na neocriminalização do agente e na relativização dogmática.
É importante destacar que, para que haja correlação entre a teoria da cegueira deliberada e o dolo eventual, é necessária consciência voluntária de criar obstáculos que impeçam o conhecimento sobre a origem ilícita da atividade.[5] Deve se reconhecer o perigo de agir e assumir o risco de contribuir para tal atividade. A mera imprudência, negligência ou desídia na formação dos obstáculos não é aceitável, por se tratar de culpa consciente.
É imprescindível o dolo, a vontade de o agente se colocar em condição de ignorante para se beneficiar. E que a criação dos filtros de cegueira seja direcionada a evitar o conhecimento de ilícitos penais. Caso contrário, estaríamos falando de culpa e nosso ordenamento rechaça qualquer hipótese de responsabilidade penal objetiva.
Aí é que está o problema e a grande crítica à aplicação da teoria sem um amplo debate pela comunidade jurídica. A linha entre os conceitos de dolo eventual e culpa consciente é muito tênue. Além disso, existem várias correntes que definem o conceito de dolo eventual, e muitas delas são bastante divergentes entre si. Seria necessário definir qual das correntes se encaixaria melhor ao tema, para evitar o surgimento de abusos de autoridade, ilegalidades e decisões arbitrárias ou teratológicas.
Autor: Roberto Bona Junior é advogado criminalista, graduado pela PUC-PR e pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade Positivo. Membro da Comissão de Direito Criminal e da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PR.