Autor: Antonio Oneildo Ferreira (*)
A intolerância atingiu níveis preocupantes e inaceitáveis em nosso país. Alguns fenômenos observados na sociedade são estarrecedores numa perspectiva democrática e de defesa da cidadania. Basta lermos as manifestações nas redes sociais, dispersas pela internet, ou os comentários às reportagens dos periódicos políticos virtuais, para que nos defrontemos com toda sorte de discursos de ódio, preconceito e intolerância. É sabido que atravessamos uma pujante crise político-institucional — quiçá a mais séria na história republicana recente — em cujo centro estão a insatisfação com a não representatividade da classe política e dos partidos, sejam à direita ou à esquerda do espectro ideológico, os escândalos de corrupção que pululam a todo tempo na mídia, a carência de ética e de virtude cívica nas ações públicas, a colonização do sistema político por parte das grandes corporações econômicas e, no limite, o esgotamento dos potenciais de gerar soberania popular a partir das instituições representativas.
O país encontra-se polarizado entre “petralhas” e “coxinhas”, “reaças” e “comunistas”, “fascistas” e “democratas”. Por óbvio, a realidade social é consideravelmente mais complexa do que o tipo de maniqueísmo esquemático acima descrito. No entanto, tem-se intensificado um sentimento de disputa entre dois grupos, como se a realidade fosse dicotômica, de modo a dividir a população entre “Nós” e “Eles”, o “Eu” e o “Outro”, o “Bem” e o “Mal” — e, evidentemente, ninguém admitiria estar do lado “do Mal”.
Não que o Brasil não fosse antes dividido. Nossa sociedade é desde os primórdios estruturalmente desigual. Mesmo que o Estado tenha adotado uma Constituição democrática formal, experimentamos um apartheid social que se insinua nas nossas raízes históricas e culturais, diluído nas míticas narrativas heroicas da identidade nacional brasileira, da “democracia racial” fundada pelo “homem cordial”. Governos progressistas e avanços na inclusão social dirigidos às classes mais pobres nunca foram admitidos pelos segmentos socioeconômicos mais ricos, que se beneficiam dos privilégios dostatus quo, da exacerbada concentração de renda e da apologia das políticas neoliberais do Estado mínimo. Não se trata, pois, de uma mera indiferença com relação à iníqua concentração de renda e patrimônio, como também de uma conivência em benefício próprio. Se as teorias econômicas geram desigualdades insustentáveis na prática, são mantidas a todo custo porque cumprem uma função primordial: porque beneficiam alguém — alguém com condições para mantê-las operantes.
Meras diferenças de opinião se transmudam em violência. Se a sociedade já era racialmente dividida, apartada em classes sociais, a discórdia se espraia agora no campo das convicções políticas. Defender o governo ou a oposição, um partido ou outro, uma ideologia ou outra, afigura-se como motivo suficiente para uma cusparada, para uma agressão física ou verbal, para um xingamento, para a animosidade. Um observador externo — um antropólogo estrangeiro, por exemplo, que viesse até aqui realizar uma etnografia — teria razões suficientes para diagnosticar que o povo brasileiro, em se tratando de política, está agindo movido por paixões desenfreadas. E, na maioria das vezes, esse ódio se canaliza por discursos, nas redes sociais e nas conversas cotidianas, mascarados sob a aparência de uma visão tosca da liberdade de expressão. Nossa história constitucional, pelo contrário, ensina que a liberdade de expressão não comporta agressões à honra e à dignidade de terceiros.
Mais absurdo ainda é quando o extremismo toma conta do Congresso Nacional, espaço onde, supostamente, deveria estar adequadamente representada e resguardada a diversidade; arena onde deveria haver um produtivo confronto de opiniões segundo a liturgia democrática, baseada no respeito mútuo, na discordância saudável, no debate civilizado.
A partir do momento em que elegemos o Congresso mais conservador desde 1964, avanços nos direitos das minorias têm sido ameaçados pelas pautas reacionárias das bancadas cristãs, dos ruralistas, da “bancada da bala”, dos ricos empresários ultrarrepresentados. Chegamos ao ponto em que um deputado aspirante a presidente, democraticamente eleito, se vale da própria democracia para atacá-la, faz impunemente apologia à tortura e ao autoritarismo com o beneplácito de um numeroso segmento da população. Nada de novo: é quase axiomática a lei segundo a qual um movimento de conquistas de direitos gera uma contrapartida violenta por parte daqueles que perdem privilégios. Como assevera o professor da Universidade Federal do Maranhão, Agostinho Ramalho Marques Neto: “O sentimento, agora, já não é de indiferença (‘sou indiferente em relação a quem nem vejo’), mas de ódio (‘odeio a quem vejo como ameaça para mim’)”.[1]
Isso não é democracia. Democracia não se confunde apenas com a vontade da maioria, nem se traduz somente em confronto. A democracia possui uma dimensão substantiva, é um valor que orienta nossas práticas, nossas ações, nosso modo de vida. A disputa democrática é composta necessariamente pela proteção do dissenso. Mesmo que eu não concorde com sua opinião, devo defender até o fim seu direito de expressá-la (dentro dos limites do democraticamente aceitável). Democracia não se coaduna com intolerância.
Etimologicamente, democracia é o governo em que o povo exerce a soberania (do grego demokratia, sendo que demo significa povo e kratossignifica poder). Apesar de muito propagado pelo senso comum, o conceito que identifica o conteúdo da democracia com o procedimento majoritário é inadequado à experiência moderna: as democracias liberais econstitucionais se servem da noção de que há direitos individuais inalienáveis, contra os quais nem mesmo a maioria, no exercício de sua suposta prerrogativa da soberania, pode atentar.
As revoluções liberais inglesa, norte-americana e francesa trouxeram para o cerne da cultura moderna a intangibilidade dos direitos das minorias, os quais fundamentam a própria estrutura constitucional do direito. Categorias como os direitos fundamentais e a separação de poderes (um mecanismo de freios e contrapesos) já provinham da preocupação inglesa, reproduzida nos Escritos Federalistas dos fundadores dos Estados Unidos da América, acerca da eclosão de uma possível “tirania da maioria”, em face da qual as minorias que viessem a divergir das pautas majoritárias fossem sacrificadas. O respeito às minorias, representado pela proteção da liberdade de divergir do governo ou das decisões da maioria, e de manter-se vigilantemente em oposição, integra definitivamente o conceito de democracia.
Diferença e divergência, dois valores fulcrais do regime democrático, são pressupostos de uma sociedade justa, livre, fraterna e solidária. Devemos nos aproveitar dessas duas características do moderno pluralismo para construirmos formas legítimas e eficientes de existência coletiva. A diferença nem sempre implica divergência: o fato de as pessoas serem diferentes não impede que formem consensos entre si, apelando a interesses comuns, a princípios transcendentais ou a valores compartilhados mesmo na diferença.
Graças a essa potencial convergência, a democracia torna-se viável. Graças às possibilidades de diálogo, acordo, negociação e consenso, é dado optarmos pela diplomacia em repúdio à violência. Pela divergência, pontos de vista diferentes podem ser confrontados até se chegar à melhor solução para os problemas postos, àquela que parece a mais acertada de acordo com o produtivo diálogo estabelecido, marcado por teses e antíteses. Se violência é ausência de diálogo e política é essencialmente diálogo, logo, a violência é ausência de política. Parafraseando Carl von Clausewitz (1790-1831), política é a continuação da guerra por outros meios: pelos meios da civilidade, da diplomacia, da mediação dos conflitos, da deliberação entre pontos de vista contrários; em suma, pelos meios da não violência, mediante o diálogo a partir da divergência. Cabe refletirmos se o que temos feito recentemente no Brasil tem sido política ou guerra.
Diferença e divergência são promovidas e asseguradas pelo secular princípio da tolerância. Não se constrói uma democracia sólida e estável sem a prática reiterada da tolerância, que se expressa, politicamente, através da tolerância das diferenças e das divergências exprimidas pelo Outro, que acarreta a abstenção de hostilidades com relação a quem professa crenças, ideias e opiniões que censuramos.[2] A tolerância é elemento inerente à liberdade, é a virtude moderna da democracia pluralista.[3]
Entretanto, caso queiramos coexistir em uma sociedade onde impere efetivamente o valor da solidariedade, precisamos avançar em direção a um tipo de tolerância mais ousado do que a concepção liberal de tolerância enquanto mal necessário, da tolerância indiferentista para com o outro, do não importar-se com o sofrimento experimentado pelas vítimas da desigualdade social. A prática da mera abstenção com relação ao outro pode fechar o caminho de um diálogo necessário em tempos de diferença. Diferença pressupõe alteridade, uma atitude de pelo menos esforçar-se, munido de boa-fé, para se colocar no lugar do outro. Essa ideia não é nova em nossa cultura; o princípio kantiano do imperativo categórico, fundante da moral liberal, já apregoava o exercício de empatia mútua. O que define o homem imerso no mundo da cultura, do homem que supera os instintos da natureza, é nossa capacidade de moralidade, de aprender com o Outro e de agir para além da orientação autossuficiente, egoística, de superar uma razão meramente calculadora.[4] A assertiva hobbesiana de que o homem énaturalmente egoísta é contestável na medida em que somos capazes de aprender a levar em conta os interesses, sentimentos e opiniões dos Outros como razões para nosso próprio agir.
Razões não faltam para o cultivo da tolerância inspirada pelo ideal de alteridade. Impende respeitar o Outro não apenas porque isso lhe fará bem, mas também porque farei bem a mim mesmo. Por meio do convívio com o Outro, sou capaz de aprender com meus próprios erros e acertos; afinal, não existe conhecimento solipsista, não existe aprendizado que não seja compartilhado e dialogicamente construído. O Outro fortalece minha própria identidade, pois eu me defino a partir do contato com a diferença, formo minha identidade a partir de “como me veem”, e nem tanto de “como me vejo”. Nossa personalidade depende das relações de reconhecimento engendradas nas experiências concretas que temos com os “Outros-importantes”[5] (afirma a mais arrojada Psicologia Social), e todas e todos que me circundam são importantes nesse processo de incessante aperfeiçoamento.
Inobstante todo o caos político em que vivemos, é preciso aprendermos a aprender com nossos adversários; tomarmos a experiência da diferença e da divergência não como um propulsor do conflito, mas como uma possibilidade de aprender dialogando. Parece-me completamente equivocado que revisitemos a teoria política de Carl Schmitt (atualíssima nos tempos do nazi-fascismo, porém obviamente obsoleta em nossos tempos) senão para utilizá-la como exemplo dos erros que não queremos repetir. Schmitt acreditava que a política era uma questão de definir as fronteiras do “nós” e do “eles”, entre amigos e inimigos, de instituir os inimigos comuns. Para justificar esse artifício, faz-se necessário o recurso ao ideal de um povo homogêneo, dotado de uma vontade unificada e tonificada por algum tipo de nacionalismo totalitário (“agimos pelo bem comum da Nação”). O nacionalismo degenerativo, que corrói a diferença e apaga a divergência, é inaceitável na cultura democrática que conquistamos. Em Estados marcados pelo pluralismo, a verdadeira natureza da democracia éagonística: a política não deve ser um jogo entre inimigos antagônicos, mas uma relação entre adversários cujas ideias podem ser vigorosamente combatidas, mas jamais se questionando o direito de defendê-las.[6] No agonismo, o conflito é positivo porque gera novos impulsos construtivos, desde que seja cumprido o pressuposto de que os adversários têm legítima existência e devem ser tolerados.
De posse do propósito de contribuir para o debate democrático pacífico, plasmado na diferença, na divergência e na tolerância, a Ordem dos Advogados do Brasil, no afã de proteger o Estado democrático de direito da conflituosidade perniciosa, divulgou a Carta de Brasília, assinada em 12 de maio de 2016 pelo Colégio de Presidentes de Seccionais. Nesse instrumento, lê-se: “8 – Recomenda a criação de um programa nacional de discussão do tema Democracia versus Intolerância, condenando o discurso do ódio e enfatizando a importância do respeito à livre discussão de ideias, com sugestão aos Conselhos Seccionais de realização de audiências públicas e seminários, bem como ao Conselho Federal de promoção de seminário nacional sobre o assunto”.[7] Esperamos que semelhante iniciativa venha a fortalecer ainda mais os valores republicanos.
Creio que nós, enquanto povo, não almejamos regredir ao autoritarismo, à barbárie fascista, ao macarthismo generalizado, à lógica do “Não penso, logo, existo”. Somos capazes de aprendizado, de moderação e de virtude. Somos capazes de tolerar a diferença e de fomentar a divergência na diferença. Possuímos uma cultura política suficientemente madura para sairmos das crises pela via democrática, sempre atentos aos direitos fundamentais de nossos compatriotas e às regras traçadas por nossa Constituição — fundamento de nossa vida em comunidade. A cisão que vem sendo alimentada não pode prosperar em detrimento de nosso compromisso sagrado com os valores democráticos, com a justiça e com a paz social, verdadeiros alicerces da identidade nacional pela qual devemos lutar.
Autor: Antonio Oneildo Ferreira é advogado, diretor tesoureiro do Conselho Federal da OAB.