e-Processo: uma verdadeira revolução procedimental

George Marmelstein Lima

Juiz Federal Substituto
sítio: http://www.georgemlima.hpg.com.br

“O tempo presente contém o passado e o futuro”. TS. Elliot

Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. A Máxima Publicidade; 3. A Máxima Velocidade; 4. A Máxima Comodidade; 5. Facilidade de acesso às informações (democratização das informações jurídicas); 6. Diminuição do contato pessoal; 7. Automação das Rotinas e das Decisões Judiciais; 8. Digitalização dos autos; 9. Expansão do conceito espacial de Jurisdição; 10. Substituição do foco decisório de questões processuais para técnicos de informática; 11. Preocupação com a segurança e autenticidade dos dados processuais; 12. Aumento dos poderes cibernéticos dos juízes; 13. Reconhecimento da validade das provas digitais; 14. Surgimento de uma nova categoria de excluídos processuais: os desplugados; 15. Conclusão. Bibliografia

1. Considerações iniciais

“O processo tal como o conhecemos está acabando, vindo a seu lugar meio inédito, apto a novas realidades, que formará e criará parâmetros de um futuro em muito diferente do que se imaginava em nosso passado ou que se tem em mente em nosso presente”.

A princípio, pode-se dizer que as palavras acima, proferidas pelo Juiz Edison Aparecido Brandão, que foi o pioneiro em implantar o interrogatório por vídeo-conferência no Brasil, são meros devaneios de um entusiasta da tecnologia da informação. Muitos pensam assim e consideram que o processo, pelo menos por algum tempo, ainda permanecerá com as mesmas características que possui há mais de um século. Ledo engano. O novo direito processual que surge (verbo colocado propositadamente no presente, mas que também poderia ser colocado no passado ou no futuro que o sentido permaneceria o mesmo), com o uso da tecnologia da informação, é totalmente diferente do que imaginaram os grandes processualistas do século passado. Não há papel. Não há documentos físicos. Não há carimbos. Tudo é digital. Tudo é novo. Tudo é diferente.

Esse novo processo, que, na onda dos modismos cibernéticos, pode ser chamado de e-processo (processo eletrônico), tem as seguintes características: a) máxima publicidade; b) máxima velocidade; c) máxima comodidade; d) máxima informação (democratização das informações jurídicas); e) diminuição do contato pessoal; f) automação das rotinas e decisões judiciais; g) digitalização dos autos; h) expansão do conceito espacial de jurisdição; i) substituição do foco decisório de questões processuais para técnicos de informática; j) preocupação com a segurança e autenticidade dos dados processuais; k) crescimento dos poderes processuais-cibernéticos do juiz; l) reconhecimento da validade das provas digitais; k) surgimento de uma nova categoria de excluídos processuais: os desplugados.

Nem pensem que essas mudanças ocorrerão daqui a vinte ou cinqüenta anos. Elas já iniciaram e caminham a passos rápidos. Como se verá neste artigo, em que serão analisadas de maneira genérica algumas dessas conseqüências ocasionadas no processo pela tecnologia da informação. O processo “virtual”, com o perdão do jogo de palavras, já é uma realidade.

2. A Máxima Publicidade

Por imperativo constitucional (art. 93, IX), todos os atos processuais devem ser públicos, à exceção dos que estiverem protegidos pelo sigilo.

Com o desenvolvimento da tecnologia da informação, a publicidade processual atingirá patamares universais. Qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, por exemplo, poderá acompanhar uma determinada audiência judicial, desde que tenha acesso à internet.

Atualmente, já é ampla a divulgação do inteiro teor dos acórdãos dos tribunais brasileiros.

O acompanhamento processual on-line é disponível por praticamente todos os tribunais pátrios a qualquer interessado, o que já causou, inclusive, alguns inconvenientes no âmbito da Justiça do Trabalho, em que empresas estavam deixando de contratar empregados que tivessem um histórico de litigiosidade naquela Justiça.

As Seções do Pleno do Supremo Tribunal Federal já podem ser acompanhadas, em tempo real, por qualquer servidor daquele órgão, através da intranet. Certamente, esse serviço também será ampliado a qualquer internauta.

Algumas audiências de juízes de primeiro grau já são transmitidas através da internet, pelo popular e barato sistema de webcam, que consiste em uma câmera de vídeo conectada ao computador. Com esse sistema, qualquer pessoa em qualquer lugar do planeta que tenha acesso à internet pode assistir à audiência em tempo real.

A publicidade, enfim, será plena. Isso permitirá não apenas o acompanhamento do processo por qualquer interessado, mas uma maior fiscalização pública dos atos judiciais e administrativos praticados pelos membros do Poder Judiciário.

3. A Máxima Velocidade

Se atualmente a patológica morosidade processual é o calcanhar de Aquiles do Judiciário brasileiro, em breve, com o e-processo, essa doença estará curada, pelo menos em parte.

A comunicação dos atos processuais ocorrerá em tempo real. Tão logo uma decisão judicial seja proferida, na mesma hora ela será disponibilizada na internet, e as partes interessadas receberão um e-mail comunicando a existência da decisão.

Assim que a contestação for apresentada, o autor já será, no mesmo momento, informado e poderá, se for o caso, apresentar réplica.

Não haverá, em regra, citações, intimações e notificações no mundo “real”. Tudo será pela internet. O correio eletrônico (e-mail) é infinitamente mais eficiente para comunicação dos atos processuais do que o correio convencional.

A lei dos Juizados Especiais Federais (Lei 10.259/01) já permite que os Tribunais Regionais Federais organizem serviços de intimação das partes e de recepção de petições por meio eletrônico. Na prática, isso já vem ocorrendo em inúmeros Juizados Especiais Federais.

Vários tribunais já dispõem do sistema push de acompanhamento processual. Toda vez que há alguma movimentação de um dado processo, o advogado interessado que se cadastrar na página do referido tribunal recebe automaticamente um e-mail informando a movimentação ocorrida.

Por enquanto, esse sistema é apenas um serviço de utilidade ao advogado. Em breve, essa informação recebida pelo advogado valerá como intimação, conforme prevê o Projeto de Lei proposto pela AJUFE – Associação dos Juízes Federais. Esse Projeto de Lei (nº 5828/2001), que já foi aprovado na Câmara dos Deputados, prevê (a) que o uso de meio eletrônico na comunicação dos atos processuais será permitido, considerando como data da publicação a da disponibilização dos dados no sistema eletrônico para consulta externa (diário oficial virtual), (b) que a transmissão eletrônica de peças processuais independe da apresentação dos documentos físicos “originais”, (c) que intimação pessoal dos advogados poderá ser feita por correio eletrônico com aviso de recebimento eletrônico; (d) que as comunicações entre os órgãos judiciários será feita por meio eletrônico.

São inúmeros os tribunais e as comarcas do país que disponibilizam, na internet, uma espécie de “diário de justiça virtual”, em que os despachos, decisões, sentenças e acórdãos são publicados na grande rede.

O diário oficial impresso em papel ainda existe, mas sua morte já foi anunciada.

Em São Paulo, a imprensa oficial do Estado já lançou o diário oficial virtual (e-diáriooficial e e-justitia), cujas informações são digitalmente certificadas e valem como documentos originais.

A propósito das informações on-line prestadas pelos tribunais, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que elas são “oficiais e merecem confiança”. Tratava-se, na hipótese, de um caso em que o advogado perdeu um determinado prazo em razão de um erro contido no sistema de informação on-line oferecido pelo tribunal. Veja-se a ementa:

“Informações prestadas pela rede de computadores operada pelo Poder Judiciário são oficiais e merecem confiança. Bem por isso, eventual erro nelas cometido constitui “evento imprevisto, alheio à vontade da parte e que a impediu de praticar o ato.”. Reputa-se, assim, justa causa (CPC, Art. 183, § 1º), fazendo com que o juiz permita a prática do ato, no prazo que assinar. (Art. 183, § 2º)” (STJ, RESP 390561/PR, 1a Turma, rel. HUMBERTO GOMES DE BARROS, j. 18/6/2002).

Em breve, as decisões proferidas pelos órgãos judiciários passarão a ter validade no exato instante em que forem disponibilizadas na internet.

Obviamente, algumas modificações no CPC devem ser feitas, a fim de permitir essa dinamização dos procedimentos. Além das alterações visando à modernização do processo, é preciso rever algumas regras incompatíveis com a celeridade que se deseja alcançar. Não é, razoável, por exemplo, que, com todas as facilidades proporcionadas pelo computador, o prazo para a Fazenda Pública contestar uma ação seja de 60 dias.

4. A Máxima Comodidade

Uma das maiores vantagens proporcionadas pela internet é a comodidade decorrente dos serviços oferecidos on-line. De seu escritório (que pode ser sua própria casa), o advogado pode elaborar sua petição sem precisar ir a uma biblioteca, pagar as custas processuais sem precisar se dirigir ao banco, e apresentar sua petição sem necessitar ir ao foro.

O peticionamento eletrônico já é previsto, timidamente, na Lei 9.800/99, que autoriza o envio de peças processuais por fac-símile (fax) “ou outro similar”, em cujo conceito se inclui o correio eletrônico. O lado negativo dessa lei é o fato de ela exigir a apresentação da petição original no prazo de 5 (cinco) dias da data do término do prazo, o que praticamente anula a utilidade do envio da petição por e-mail.

Alguns Tribunais, atentos à evolução tecnológica, já dispensam a apresentação física da “petição original”, bastando a remessa da petição eletrônica. Exemplo disso é a iniciativa do Tribunal Regional Federal da 1ª Região chamada “e-Jufe”, onde o advogado se cadastra no Sistema de Transmissão Eletrônica de Atos Processuais da Justiça Federal da 1ª Região e se habilita a utilizar o sistema, podendo peticionar sem precisar apresentar os documentos originais. Na verdade, o documento original é o próprio documento digital; a cópia seria o documento impresso.

Quanto ao pagamento on-line das custas judiciais, inúmeras transações bancárias já podem ser feitas através do computador. É possível calcular as custas processuais, expedir o respectivo ‘DARF’ e efetuar o pagamento pela internet.

Em alguns Estados, já é possível acompanhar o andamento processual pelo telefone celular, através do sistema WAP (wireless aplication protocol), cuja utilidade ainda é um pouco limitada em razão do custo dos serviços de telefonia celular.

A Justiça Federal de São Paulo oferece, ainda, um serviço chamado Unidade de Resposta Audível (URP), em que o usuário pode ouvir, por telefone, após seguir as orientações gravadas, informações sobre o andamento de um dado processo ou solicitar a impressão por fax de toda movimentação processual. O sistema é totalmente automatizado.

Em São Paulo, o Tribunal de Justiça fez um convênio com o banco Nossa Caixa, permitindo que o acompanhamento dos processos daquele tribunal seja feito pelos terminais remotos do referido banco espalhados por toda a cidade.

Já existem softwares capazes de monitorar os bancos de dados processuais de vários tribunais em diversos Estados, passando automaticamente as informações sobre o andamento de um determinado processo aos advogados por e-mail, pager, fax ou vox-mail.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, mediante convênio com a empresa TIM, oferece um serviço de acompanhamento processual por celular, em que, toda vez que o processo é movimentado, o interessado recebe uma mensagem informando a movimentação no telefone celular, através do TIMnet Mail. Seria uma espécie de sistema push, mas, ao invés de a mensagem ser enviada por e-mail, é enviada ao aparelho celular.

5. Facilidade de acesso às informações (democratização das informações jurídicas)

Com a internet, o acesso às informações jurídicas foi enormemente facilitado. Sem muita dificuldade e perda de tempo, são encontrados precedentes jurisprudenciais, doutrina nacional e estrangeira (artigos, livros, monografias), modelos de petições e contratos, legislação sobre os mais diversos temas etc.

Gradativamente, vão surgindo bancos de dados superalimentados com informações jurídicas. Registre-se, em especial, o banco de jurisprudência do Conselho da Justiça Federal que disponibiliza inúmeras ementas de acórdãos dos Tribunais Regionais Federais e do Superior Tribunal de Justiça.

Com o crescimento exponencial de informações jurídicas de acesso facilitado, a tendência é aumentar a explosão de litigiosidade que já vem sendo verificada há algum tempo, sobretudo no âmbito da Justiça Federal. Tão logo uma tese jurídica seja levantada por um jurista, outros advogados cuidam em disseminar essa informação e, rapidamente, diversas pessoas que seriam beneficiadas com uma eventual decisão baseada nessa tese jurídica ingressam na Justiça.

Espera-se que essa democratização também atinja a linguagem jurídica. Não é razoável utilizar termos incompreensíveis para o leigo, quando existem palavras mais comuns com o mesmo significado técnico.

6. Diminuição do contato pessoal

Desde 1996, realizam-se, no Brasil, audiências por vídeo-conferência, especialmente no âmbito criminal, em que os réus presos são ouvidos e vistos pelo juiz do próprio presídio sem necessidade de deslocamento ao foro. O juiz fica na sala de audiência e interroga, através da tela do computador, o réu preso, que está a vários quilômetros de distância.

Os defensores do interrogatório à distância indicam que o sistema proporciona economia, velocidade e segurança.

Por sua vez, algumas entidades (OAB, Associação Juízes para a Democracia, AASP entre outras) o criticam, invocando o direito constitucional à ampla defesa. Defendem que o interrogatório é o único momento que o réu tem para falar diretamente com o juiz e que o contato “virtual” é frio e desumano, não permitindo uma correta verificação do “calor humano” presente no interrogatório tradicional.

Vale ressaltar que o STJ, antes que fossem levantadas vozes contra a vídeo-conferência no processo penal, validou o primeiro interrogatório à distância feito no Brasil. Confira-se a ementa do acórdão:

“Recurso de “habeas-corpus”. Processual penal. Interrogatório feito via sistema conferencia em “real time”. Inexistindo a demonstração de prejuízo, o ato reprochado não pode ser anulado, “ex vi” art. 563 do CPP. Recurso desprovido” (STJ, RHC 6272/SP, 5a Turma, rel. Min. Félix Fischer, j. 3/4/1997).

Sem querer ingressar na polêmica, o certo é que a utilização da vídeo-conferência é uma tendência inafastável em todo mundo, não apenas para o interrogatório de réus presos, mas também para “ouvida” de pessoas em lugares distantes, tanto no processo penal quanto no processo civil.

A Medida Provisória n. 28, de 4/2/2002, autorizou o uso de “equipamentos que permitam o interrogatório e a inquirição de presidiários pela autoridade judiciária, bem como a prática de outros atos processuais, de modo a dispensar o transporte dos presos para fora do local de cumprimento da pena”. Há, ainda, vários projetos de lei tramitando no Congresso Nacional no intuito de regularizar a vídeo-audiência. No Tribunal de Justiça da Paraíba, a vídeo-audiência é regularizado pela Portaria 2.210/02.

A vídeo-conferência também pode ser utilizada para ouvida de testemunhas que estejam impossibilitadas de comparecer à audiência ou que habitem em lugares distantes, inclusive fora do país. O contato pessoal do juiz com as testemunhas tende, portanto, a diminuir, através da comunicação virtual.

Há uma tendência, do mesmo modo, de diminuir o contato dos advogados com os servidores. O peticionamento eletrônico, o acompanhamento processual através da internet, a publicação on-line do inteiro teor das decisões e as intimações via e-mail são exemplos disso.

O contato pessoal com o juiz também será gradativamente substituído pelas comunicações virtuais. As próprias partes, que, tradicionalmente, se sentem intimidadas em falar pessoalmente com os juízes, ficarão mais à vontade para lhes enviar um e-mail. Falo isso por experiência própria, pois desde que divulguei meu e-mail em meu site (www.georgemlima.hpg.com.br) tenho recebido diariamente mensagens de inúmeras pessoas, inclusive profissionais de áreas não-jurídicas.

Ainda tratando da vídeo-conferência, deve-se mencionar a iniciativa do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que implantou um sistema para possibilitar a sustentação oral através da vídeo-conferência, afastando a necessidade da presença pessoal do advogado na sessão de julgamento daquele tribunal.

A comunicação interna entre os órgãos judiciários que, tradicionalmente, ocorre através de documentos físicos (ofícios, cartas precatórias, malotes) serão substituídos por documentos digitais, enviados pelo correio eletrônicos.

No Tribunal Regional Federal da 4a Região (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), a utilização do correio eletrônico para envio de cartas precatórias é regularizada pela própria Corregedoria, através do Provimento nº 1/2000, cujo artigo 1o dispõe que “nas Varas Federais da 4ª Região deverá ser utilizado, sempre que possível, o correio eletrônico para comunicação de atos processuais como ofícios em cartas precatórias, solicitação de informações, pedidos de esclarecimento sobre antecedentes penais de réus e outros que, a juízo do Juiz Federal, forem considerados oportunos”.

Através de convênio, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal adotaram um sistema chamado de “malote digital”, em que alguns dados são compartilhados, digitalmente, por ambos os tribunais, facilitando o cadastro de dados processuais.

Um projeto ousado, chamado Infojus – Rede Informática do Poder Judiciário, pretende interligar em rede todas as unidades e instâncias do Poder Judiciário no País, servindo de elo para um projeto ainda mais ousado, o Iudicis, que seria a rede internacional do Poder Judiciário.

7. Automação das Rotinas e das Decisões Judiciais

Os servidores “burocráticos” serão substituídos, com vantagens, por sistemas inteligentes, capazes de dar impulso processual e elaborar os expedientes necessários com uma rapidez inigualável. O mecanismo de intimações pelo sistema push é exemplo disso, pois não há necessidade de nenhum servidor para fazer funcionar o sistema, a não ser um especialista em informática que analisará eventuais problemas técnicos.

A tendência, portanto, é automatizar boa parte do impulso processual, sobretudo a comunicação dos atos processuais.

Além disso, algumas decisões serão proferidas com auxílio de programas dotados de inteligência artificial.

Já existem softwares capazes de elaborar decisões, mediante o preenchimento de campos previamente estabelecidos. Por exemplo, no âmbito da Justiça do Trabalho, há um programa que “filtra” a subida de recursos ao TST, permitindo a elaboração de despachos-padrão de admissibilidade de recursos.

Já existem entusiastas da tecnologia da informação defendendo que programas de computador, no futuro, substituirão os magistrados, julgando casos com muito mais isenção e conhecimento do que os imperfeitos juízes atuais. Um programa chamado Cyc, criado pelo norte-americano Douglas B. Lenart, com o financiamento de um consórcio de 56 empresas de alta tecnologia nos EUA, seria um potencial candidato a “juiz virtual”. Segundo seu criador, Lenart, “se Cyc aprender todo o corpo de leis de um país, mais a jurisprudência (casos jurídicos anteriores) e, finalmente, alguns conceitos de moral, decência, dignidade, humanidade e bom senso, nada impede que ele seja capaz de exercer a função de juiz muito melhor do que os humanos” (SABBATTI, Renato M. E. O Computador-Juiz).

8. Digitalização dos autos

Os autos físicos “em papel” serão gradativamente substituídos pelos autos digitais até chegar ao ponto de todos os autos serem digitais. Por enquanto, vive-se uma fase transitória. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, disponibiliza o inteiro teor de todas as petições iniciais das Ações Diretas de Inconstitucionalidade e Ações Declaratórias de Constitucionalidade, bem como o inteiro teor das respectivas decisões, em sua página na internet. Qualquer pessoa pode visualizar os referidos documentos sem precisar sair de casa.

Vários Tribunais disponibilizam o inteiro teor de seus acórdãos na Internet. Alguns juízes disponibilizam suas decisões e sentenças.

Os autos digitais já povoam as mentes de juristas:

“imaginem um processo como um mini ‘site’, cuja Home Page contém ‘links’. Esses ‘links’ levam à petição Inicial, à defesa. Mas também à imagem dos documentos, aos depoimentos em vídeo digital. Aos incidentes processuais e suas decisões interlocutórias. O ‘login’ no ‘site’ dá permissão de atuar de acordo com seu status nos autos. O autor pode peticionar como tal, o réu a mesma coisa, o serventuário pode dar cumprimento aos despachos. O Juiz pode despachar e julgar. Isso abre toda uma gama de possibilidades, especialmente se se pensar no processo como uma sucessão de eventos e incidentes dentro de um mesmo e unificado banco de dados. Se se pensar que todos os trâmites ficariam registrados em um ‘log’, uma espécie de resumo do processo. O controle de prazos, de expedição de alvarás e mandados teria uma imediatidade, um sentido de controle, segurança e certeza nunca vistos. Findo o processo, bastaria gravar todo esse ‘site’(processo) em um CD e se teria um arquivo eterno, permanente, em mídia de tamanho reduzido” (SILVA, Flávio Ernesto Rodrigues & BORGES, Leonardo Dias. A informática a serviço do processo).

9. Expansão do conceito espacial de Jurisdição

A internet é um ambiente sem fronteiras. Não possui limite territorial. Não possui espaço geograficamente delimitado. Por isso, o conceito processual de Jurisdição vai sofrer sérias modificações.

Atualmente, o Código de Processo Civil informa que os atos processuais realizam-se de ordinário na sede do juízo (art. 176). Com a internet, inúmeros atos processuais serão realizados neste ambiente “digital”, que não tem fronteira. Um juiz no Rio Grande do Sul poderá ouvir, pessoalmente, uma testemunha na Amazônia ou até mesmo em outro lugar do mundo.

As regras de competência territorial e internacional serão revistas. As relações jurídicas praticadas na internet não terão nacionalidade.

Muitos problemas surgirão com essa expansão do conceito espacial de jurisdição, sobretudo se permanecer a mentalidade tradicional de espaço físico.

10. Substituição do foco decisório de questões processuais para técnicos de informática

Já se disse que, em questão de informática, os engenheiros são melhores juízes do que os profissionais do direito. Não sei se chegará o dia em que os juízes deverão ter, além da formação jurídica, um conhecimento amplo e técnico em informática. O certo, porém, é que aumentará a importância dos técnicos de informática para solução de problemas processuais.

Por exemplo, se uma parte alegar que houve falha no envio de um e-mail, será um expert em informática quem irá informar ao juiz se houve ou não a alegada falha. Se a parte alegar que a página em que foi publicado um dado expediente estava fora do ar, será um técnico em informática quem confirmará ou não o fato ao juiz. Se a parte alegar que uma determinada petição foi adulterada durante a transmissão, somente diante de um conhecimento técnico o juiz poderá solucionar o problema.

Desse modo, as decisões sobre questões processuais serão resolvidas, em regra, com auxílio de um técnico em informática.

11. Preocupação com a segurança e autenticidade dos dados processuais

Com os autos tradicionais, em papel, não são muito comuns os casos de falsificação de documentos processuais.

Falsificar um documento em papel é bem mais fácil do que falsificar um documento digital protegido com mecanismos de segurança (assinatura digital, criptografia, senha, biometria etc). Sobretudo com os modernos escaners (scanners) e impressoras, qualquer criança é capaz de reproduzir com fidelidade impressionante documentos em papel, inclusive dinheiro.

A princípio, portanto, toda essa preocupação em torno da segurança e autenticidade dos dados na comunicação virtual dos atos processuais seria sem sentido, já que são raros os casos de falsificação dos autos em papel e, portanto, seriam também raros os casos de falsificação/adulteração de documentos digitais.

Porém, no mundo virtual, há um submundo em que vivem pessoas cuja maior diversão é violar sistemas de segurança. Os processos digitais seriam um prato cheio para esses malfeitores cibernéticos, sobretudo se houver possibilidade de lucro com essa atividade. Haverá tentativa de destruição de autos digitais, de adulteração de documentos ou simplesmente violação do sigilo dos processos que tramitam em segredo de justiça.

A preocupação com a segurança, portanto, deverá estar sempre na pauta de discussões dos processualistas.

O Supremo Tribunal Federal, preocupando-se com a segurança dos seus sistema de informática, está adotando o sistema de identificação biométrica, que só permite o acesso à rede com a exibição da impressão digital do usuário. Frise-se, sem querer polemizar, que existem críticas quanto à segurança decorrente da adoção da biometria.

O STJ, ao reconhecer a validade de cópias de acórdãos obtidas de sua Revista Eletrônica de Jurisprudência, adota, como mecanismo de segurança, uma marca d’água com a logomarca do STJ e a certificação digital por um terceiro (Autoridade Certificadora).

O Tribunal de Justiça de São Paulo e a Xerox do Brasil firmaram uma parceria implementando um novo sistema de impressão e produção de certidões, buscando garantir a autenticidade dos dados.

11.1. O debate entre a Ajufe e a OAB

O ano de 2002 se caracterizou, no campo da informatização do processo, pelos debates travados entre a AJUFE – Associação dos Juízes Federais e a OAB.

A AJUFE, com já se noticiou acima, apresentou, através de parlamentar (Deputada Federal Luisa Erundina), projeto de lei tratando da informatização do processo judicial. Nesse projeto, consolidam-se, em nível legal, algumas iniciativas que já vinham sendo implementadas pelos tribunais, como, por exemplo, a validade da intimação do advogado pelo sistema push ou o peticionamento eletrônico mediante prévio credenciamento do advogado.

Alguns setores da OAB manifestaram-se contra o projeto, apontando algumas falhas e possíveis inconstitucionalidades, e apresentaram sugestões no sentido de se adotar o sistema de assinatura digital, através do conceito de chaves públicas e privadas.

O debate é interessante, mas as propostas não se anulam; pelo contrário, complementam-se.

A AJUFE está certa quando diz que não existe ainda uma cultura consolidada da certificação digital através do conceito de chaves públicas e privadas. Também está certa quando diz que o sistema de credenciamento já funciona, com êxito, em diversos tribunais e, até onde se saiba, não surgiram dúvidas ou problemas decorrentes da segurança do sistema.

A OAB também está certa ao afirmar que a assinatura digital, pelo sistema de criptografia assimétrica RSA (chaves públicas e privadas), é, por enquanto, o meio mais seguro de certificação da autenticidade de documentos digitais.

Porém, mesmo sendo o mais seguro atualmente, o sistema de chaves públicas e privadas também não é infalível e, pior do que isso, há possibilidade de, em breve, ele ser ultrapassado por um sistema mais eficiente, como a criptografia quântica, por exemplo. Além disso, é bastante possível que alguns órgãos governamentais (americanos ou ingleses) já tenham descoberto como decifrar os sistema de criptografia assimétrica, mas mantenham essa informação em segredo, conforme alertou o autor norte-americano Simon Sign, no seu “Livro dos Códigos”, que oferece uma agradável abordagem sobre a história da criptografia.

Portanto, em termos legislativos, o ideal é que a autorização para o uso de meios eletrônicos para a prática de atos processuais seja genérica, sem mencionar qualquer sistema, técnica ou método.

Nesse sentido, em carta aberta sobre a regulamentação de procedimentos digitais, o IJURIS – Instituto Jurídico de Inteligência e Sistemas sugere que a lei processual apenas autorize a utilização de meios eletrônicos na prática de atos processuais e procedimentais e disponha sobre os requisitos mínimos de segurança no trânsito de documentos e informações.

Desse modo, seria adotada, num momento inicial, a proposta da AJUFE, ou seja, o credenciamento, que já vem funcionando em diversos tribunais e, posteriormente, com a consolidação do sistema de chaves públicas e privadas, passaria a ser adotada a proposta da OAB. E se, posteriormente, viesse uma solução melhor, adotava-se essa solução sem precisar a toda hora estar mudando a lei.

O TECNOJUSC – Grupo de integração Tecnológica do Poder Judiciário de Santa Catarina também considera que o debate entre a AJUFE e a OAB está levando a discussão para um foco errado:

“Creio que o completo desconhecimento da assinatura digital na sugestão n. 1/01, apresentada pela Ajufe, é o calcanhar de Aquiles do projeto de lei n. 5828/01. A informatização do processo certamente passará pela inserção da tecnologia de certificação digital. Inobstante, o PLC n. 71/2002 radicalizou, ou seja, impôs a assinatura digital para qualquer sistema informático dos Tribunais. Neste aspecto, o engessamento de uma tecnologia ainda não popularizada e sem o domínio dos Tribunais retardaria a informatização do processo judicial como um todo”.

12. Aumento dos poderes cibernéticos dos juízes

Atualmente, a autoridade judicial tem poderes que vão desde de penhorar um automóvel até autorizar escutas telefônicas e determinar quebras de sigilo bancário. Tradicionalmente, essas atividades são feitas mediante ofícios enviados pelo juiz.

Com a tecnologia da informação, essas atividades serão realizadas diretamente pelo juiz, sem intermediários. Por exemplo, se o juiz determinar a penhora de um automóvel, ele próprio (ou um servidor a seu mando) irá efetuar o bloqueio do referido veículo de seu computador. Isso já é feito aqui na Justiça Federal do Ceará.

Outros poderes, ainda mais assustadores, vão surgir.

Com o Bacen Jud, que é um sistema de solicitação de informações via internet, o magistrado pode enviar ordens judiciais ao Sistema Financeiro Nacional com uma facilidade impressionante. Com isso, as quebras de sigilo bancário e os bloqueios de contas correntes de pessoas físicas e jurídicas poderão ser efetivados com alguns cliques.

O juiz será uma espécie de hacker oficial, com poderes para invadir sistemas de computadores, interceptar mensagens eletrônicas e obter livre acesso aos mais sigilosos bancos de dados, compartilhando informações com órgãos como a Polícia Federal, a Interpol, a Receita Federal, o INSS etc.

No combate contra a criminalidade, alguns convênios estão sendo implementados visando facilitar o acesso às informações policiais, como o cadastro de estrangeiros, passaportes, veículos, folhas de antecedentes, procurados, registro de armas, Sistema Nacional de Informação Criminal (Sinic) e Integração Nacional de Informação de Justiça e Segurança Pública (Infoseg).

Obviamente, sem uma plena consciência tecnológica e sem uma efetiva ciberética, haverá inúmeros abusos dos poderes cibernéticos do juiz.

13. Reconhecimento da validade das provas digitais

Já são realizadas pela internet inúmeras transações, que vão desde o comércio eletrônico (e-commerce, e-business, e-banking etc.) até relações afetivas. Obviamente, essas transações possuem conseqüências jurídicas e freqüentemente acarretam conflitos. O Judiciário deve estar preparado para lidar com esses conflitos. Para tanto, deve buscar se familiarizar com as provas digitais.

É vasta a influência da tecnologia da informação no campo probatório. Desde simples mensagens de e-mail até complexas fórmulas matemáticas certificadoras da autenticidade de documentos digitais tornam-se comuns nas discussões forenses.

Já se aceitam como válidas as certidões negativas de débitos fornecidas, on-line, nas páginas dos órgãos públicos.

O STJ reconhece como autêntica a cópia do inteiro teor dos acórdãos disponível na Revista Eletrônica de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Confira-se decisão sobre o tema:

“RECURSO ESPECIAL. Divergência. Precedente do STJ. Diário da Justiça. Site na internet. Indicado como paradigma acórdão do próprio STJ, com referência ao Diário da Justiça da União, órgão de publicação oficial, e com a reprodução do inteiro teor divulgado na página que o STJ mantém na Internet, tem-se por formalmente satisfeita a exigência de indicação da fonte do acórdão que serve para caracterizar o dissídio” (STJ, RESP 327687/SP, 4a Turma, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 21/02/2002)

O documento digitalmente assinado tem não apenas a sua validade reconhecida, mas a própria característica de documento original: a cópia passa a ser o documento físico, impresso.

14. Surgimento de uma nova categoria de excluídos processuais: os desplugados

O processo judicial é, tradicionalmente, um ambiente pouco propício à participação popular. É célebre a frase irônica atribuída a um juiz inglês da época vitoriana, segundo a qual “a Justiça está aberta a todos, como o Hotel Ritz”.

Apesar de todos os benefícios trazidos com a informatização do processo, sem uma política social séria de inclusão digital aumentará ainda mais o abismo entre o povo e a Justiça.

A população de menor renda, que já sente dificuldade de compreender o funcionamento da Justiça tradicional, ficará totalmente excluída da Justiça “virtual”.

A Justiça “on-line” será uma justiça de elites, totalmente inacessível para o chamado “proletariado off line”.

Os “desplugados”, que seriam aqueles que não possuem conhecimentos em informática (analfabetos tecnológicos), não possuem computadores, linhas telefônicas ou nem mesmo são alfabetizados, ficarão isolados, “em ilhas perdidas no oceano informacional. Não navegam. Não interagem. São náufragos do futuro” (ARAS, Vladimir. Governo tem obrigação de promover a inclusão digital).

15. Conclusão

O e-Processo é uma verdadeira revolução. Com ele, a publicidade processual ganha contornos jamais imaginados. A comunicação dos atos processuais ocorre em tempo real. O impulso processual é automático. O contato pessoal entre advogados, servidores, partes, testemunhas, peritos e juízes torna-se praticamente inexistente. O rastreamento de bens do devedor é efetuado diretamente pelo juiz, proporcionando uma efetividade processual inimaginável. A quantidade de informação jurídica se expande velozmente e torna-se disponível a um número infinito de pessoas. Muitos atos processuais deixam de ser praticados pelos juízes ou pelos servidores para serem praticados por máquinas, dotadas de inteligência artificial e capazes de decidir com tanta desenvoltura quanto um ser humano.

Em breve, o que hoje se entende por “autos processuais” não passará de uma pasta virtual que armazenará todas as peças do processo: a petição inicial e os documentos que a instruem, a contestação, as imagens da vídeo-audiência e a sentença. Essa pasta poderá ser acessada através da internet e qualquer pessoa poderá ver seu conteúdo.

Todas essas maravilhas proporcionadas pela tecnologia da informação já estão acarretando um deslumbramento nos operadores do direito, que admiram incredulamente os fantásticos serviços oferecidos on-line.

Contudo, ao lado das inúmeras vantagens que a informatização do processo está trazendo, aparecem sérios problemas que serão capazes de ameaçar a própria legitimidade que o processo judicial oferece.

Inicialmente, há a questão da segurança e autenticidade dos dados processuais. O campo para fraudes será amplo, e as punições esbarram na dúvida quanto à identidade do fraudador ou no território físico em que ele se encontra.

Problema pior é a questão do abismo social existente entre os que têm acesso às mídias digitais e os que não têm esse acesso. Os desplugados serão párias processuais. Não terão acesso às informações jurídicas. Terão dificuldades em contratar um advogado. Serão facilmente ludibriados no mundo virtual.

É difícil saber se a digitalização total do processo será um benefício ou mais um problema a ser enfrentado pelos estudiosos do acesso à justiça. O certo é que essa digitalização virá num piscar de olhos. Os processualistas não estão preparados. Os tribunais não estão preparados. Os juízes não estão preparados. Os advogados não estão preparados. E quem está?

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