É razoável defender com boa-fé a decisão do Supremo sobre prisão antecipada

Autor:  José Jácomo Gimenes (*)

 

A tormentosa e fundamental questão da extensão do princípio da inocência ainda está aberta e candente. O julgamento do Habeas Corpus preventivo do ex-presidente Lula trouxe mais dúvidas e instabilidade ao caso. A divergência continua e brevemente deverá ser resolvida pelo Supremo Tribunal Federal nas ADCs do artigo 283 do CPP, que aguardam julgamento de mérito.

Enfrentamos o tema no artigo “Prisão após condenação de segunda instância não fere a Constituição”, publicado na ConJur[1], em 24 de fevereiro. A importância do assunto pede ampliação e aprofundamento dos debates. Com o objetivo de contribuir com a busca da melhor solução constitucional para o imbróglio, voltamos ao tema em mais seis pontos.

1. Começamos pelo texto da Constituição, a fonte primeira e indispensável para qualquer diálogo e manifestação sobre a divergência, transcrevendo dois incisos do importante artigo 5º:

“LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”;

“LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Qual das duas normas constitucionais acima tem referibilidade direta e imediata com cumprimento de pena condenatória de prisão? Parece que não há a menor dúvida de que a primeira transcrita, o inciso LIV, tem referibilidade direta e imediata com o cumprimento da pena condenatória, pois fala de privação de liberdade, que evidentemente compreende cumprimento de pena de prisão.

A segunda norma transcrita, inciso LVII, não tem nenhuma menção de cumprimento de pena ou mesmo prisão. Fala essa norma do momento da definição de culpado no processo penal, fixando que isso ocorre no trânsito em julgado da sentença condenatória. Para fazer qualquer relação ou juízo com início do cumprimento da pena, é necessária uma ilação e uma interpretação.

Paradoxalmente, a construção doutrinária da extensão do princípio da inocência absoluto está sendo feita somente a partir da segunda norma, inciso LVII acima, a que não se refere à prisão ou cumprimento de pena. A norma que fala direta e claramente sobre restrição de liberdade, portanto sobre cumprimento de pena de prisão, o inciso LIV acima, está sendo desconsiderada, tem sido esquecida sem qualquer justificativa.

O requisito exigido pela nossa Constituição para privar a liberdade de qualquer cidadão é o devido processo legal, como está escrito no inciso LIV acima. A Constituição, portanto, tem regra certa e expressa quanto à condição necessária para cumprimento da pena, qual seja, a observância do devido processo legal, dispensando ilações, interpolações e interpretações apaixonadas.

A questão central é então saber quando o devido processo legal está concluído. Começamos com a realidade, um caso em que o acusado responde a regular inquérito policial, é denunciado pelo Ministério Público, apresenta defesa técnica, produz as provas que entende adequadas, apresenta alegações finais, é condenado à pena de prisão e não recorre da sentença. Não resta dúvida de que esse acusado foi submetido ao devido processo legal e que deverá cumprir a pena.

Esse exemplo, que ocorre cotidianamente, demonstra e prova, pelo caminho da prática, que o devido processo legal é cumprido na primeira instância. No recurso de apelação para o tribunal, segunda instância, não tem mais espaços para provas e novas alegações, apenas revisão do devido processo legal efetivado na primeira instância. No STJ e Supremo, a eventual revisão é ainda muito mais restrita.

Vamos a outro exemplo, também retirado da realidade. Os condenados do foro privilegiado no Supremo começam a cumprir a pena após a sentença condenatória de uma única instância, sem direito a qualquer revisão recursal, e ninguém ousa dizer que não foi cumprido o devido processo legal. Possibilidades de revisões de sentenças, oportunizadas pelo sistema judicial, estão além do devido processo legal, não impedindo início do cumprimento da pena.

Ada Pellegrini Grinover esclarece que:

“No due processo of law, o elemento a que se subordina toda legalidade do procedimento é a efetiva possibilidade da parte de defender-se, de sustentar suas próprias razões, de ter his day in Court, na denominação genérica da Suprema Corte dos Estados Unidos”[2].

Nelson Nery acrescenta os detalhes:

“Direito à citação e ao conhecimento do teor da acusação; b) direito a um rápido e público julgamento; c) direito ao arrolamento de testemunhas e à intimação das mesmas para comparecimento perante o tribunal; e) direito de igualdade entre acusação e defesa; f) direito contra medidas ilegais de busca e apreensão; e) direito de não ser acusado e condenado com base em provas ilegais; h) direito à assistência judiciária, inclusive gratuita; i) privilégio contra a autoincriminação”[3].

Todo o acima exemplificado ocorre na primeira instância, até a sentença condenatória. Prolatada a sentença, concluído está o devido processo legal. Os recursos para instâncias superiores permitem apenas revisão do devido processo legal concluído na primeira instância. Exatamente por isso, a maioria esmagadora das democracias do planeta determina o cumprimento da pena após julgamento da primeira ou segunda instância, porque já atendido o devido processo legal.

Em 2016 e 2017, após sete anos de vigência do princípio da inocência absoluto (de 2009 a 2016), o Supremo Tribunal Federal revisitou o tema e decidiu que o Brasil deveria voltar a seguir o padrão mundial de jurisprudência a respeito do início do cumprimento da pena de prisão, decidindo que a pena de prisão pode ser executada a partir da segunda instância. Esse retorno está em conformidade evidente com o inciso LIV do artigo 5º da Constituição, nada havendo de inconstitucionalidade.

2. Não consta da Constituição o alegado “princípio da inocência absoluto”. Também não consta que o condenado somente pode começar a cumprir a pena após o julgamento do último recurso possível. A Constituição autoriza expressamente a prisão em flagrante no início do processo. A prisão provisória, processual ou para garantir a ordem pública, é reconhecida e aceita como constitucional, mesmo não tendo trânsito em julgado e culpa definitiva. Todas decorrem de uma necessidade insuperável.

O mesmo ocorre com o cumprimento de pena após o julgamento da segunda instância. É também uma necessidade insuperável. Se não for aplicada, vai inviabilizar o funcionamento do sistema penal e da Justiça. Dezenas de recursos levarão todos os processos penais até a suprema corte, gerando prescrição e impunidade. Ricos e poderosos, que podem contratar defesa estruturada, não serão presos. Um reduzido grupo ganha, a sociedade perde.

É insustentável querer retirar do texto constitucional um princípio absoluto, que proíbe a prisão antes do trânsito em julgado na quarta instância, inviabilizando o necessário sistema punitivo, quando a própria Constituição permite prisão processual para proteger o processo penal, que é mero instrumento do sistema punitivo e permite prisões provisórias para proteger a ordem pública. A inviabilização do sistema punitivo é a própria negação do processo penal e da ordem pública.

3. A própria Constituição tem exemplo que permite infirmar o famigerado princípio da inocência absoluto. É o caso do processo de julgamento do presidente da República por crime de responsabilidade, previsto no artigo 86 da Constituição, que determina que o presidente seja suspenso de suas funções com o recebimento da queixa-crime pelo Supremo ou após instauração do processo pelo Senado.

O parágrafo 3º do artigo 85 determina que, “enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito a prisão”, indicando claramente que a Constituição, quando quer proibir a prisão, diz expressamente. Neste caso tão importante, prisão do presidente da República, a Constituição não fala de trânsito em julgado, apenas em sentença condenatória.

4. O termo prisão ou restrição de liberdade não era desconhecido do constituinte. A restrição à liberdade de ir e vir é tratada na Constituição como prisão, em vários incisos (LIV, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI e LXVII) do artigo 5º. A Constituição constrói e restringe o direito estatal de cercear a liberdade com base no termo prisão. A Constituição delimita completamente os fundamentos e requisitos da prisão sem qualquer menção de culpa ou culpado nos mencionados incisos.

Se o consenso dominante na constituinte fosse impedir prisão antes do trânsito em julgado, a Constituição, que tanto fez uso do termo prisão, tendo incisivamente delimitado este importante instituto (devido processo legal e ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente), não seria grafada com palavra e conceito diferente (culpado). Não houve opção deliberada do constituinte em exigir trânsito julgado na última instância para início do cumprimento da pena ou prisão.

5. Tem se falado em prejuízo irreparável do aprisionado em segunda instância e posterior absolvição em tribunal superior. A possibilidade é remotíssima. A própria Constituição, entretanto, reconhecendo expressamente a possibilidade de erros judiciais e prisões além do tempo, apresenta a solução, novamente no contexto do instituto da prisão, determinando o pagamento de indenização (artigo 5º LXXV). É a solução possível e eleita pela Constituição.

6. Por fim, o número de encarcerados e presos provisórios tem sido impropriamente colocado como argumento para aplicação do princípio da inocência absoluto. O número de encarcerados, por volta de 700 mil, decorre da política de combate ao tráfico de entorpecentes eleita pelo legislador e da banalização da violência. Não pode ser motivo para institucionalização de um processo penal faz de conta. O número de presos provisórios, ao contrário da argumentação, tem grande probabilidade de crescimento com a aplicação do princípio da inocência absoluto, porque a prisão provisória tende a ser remédio necessário para fazer as vezes de um processo que não termina.

Um processo penal submetido ao princípio da inocência absoluto, exigindo trânsito em julgado na última instância, se assim institucionalizado, não cabe nas cláusulas fundamentais de igualdade, retidão, democracia e justiça. Por tudo isso, é razoável defender com boa-fé a manutenção da histórica decisão da suprema corte, votada em 2016 e confirmada em 2017, que buscou um adequado meio-termo, acompanhando a maioria das nações civilizadas, permitindo a prisão do acusado já condenado em duas instâncias, com interpretação conforme do artigo 283 do Código de Processo Penal.

 

 

 

Autor:  José Jácomo Gimenes  é juiz federal no Paraná e ex-professor do Departamento de Direito Privado e Processual da Universidade Estadual de Maringá (PR).


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