Educação infantil é um direito que não pode ser adiado

Autores: Alessandra Gotti e Ismar Barbosa Cruz (*)

 

A cada minuto, várias crianças brasileiras completam 3 anos de idade. Encerra-se, nesse momento, a oportunidade de frequentar a creche, que objetiva desenvolvê-las física, psicológica, intelectual e socialmente.

O mesmo quadro se repete para as crianças que completam 5 anos e que não têm acesso à pré-escola, cujo propósito é prepará-las, por meio de jogos e atividades lúdicas e artísticas, para o aprendizado do currículo escolar propriamente dito.

Não é por acaso que as estratégias mundialmente adotadas em termos de política educacional privilegiam a educação infantil como um de seus pilares e, por consequência, uma de suas prioridades. É cientificamente provada a influência dessa etapa de ensino no desenvolvimento das capacidades motoras, afetivas e de relacionamento social do cidadão, com repercussão direta no seu desenvolvimento pessoal e profissional.

A busca ativa como estratégia para garantir a educação infantil
Em auditoria recentemente concluída pelo Tribunal de Contas da União e que envolveu municípios de 17 estados, constatou-se que os gestores de 45% dos municípios pesquisados não sabem ao certo quantas crianças de 0 a 5 anos estão fora da escola e, o que é mais grave, apenas 44% adotam alguma medida para localizá-las e garantir o seu direito à educação infantil.

Segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2017, do Todos Pela Educação, o percentual de crianças de 0 a 3 anos que frequentavam a escola no Brasil, em 2015, era de 30,4%. Todavia, enquanto 52,3% das crianças 25% mais ricas estavam na escola, esse percentual era de 21,9% para as 25% mais pobres. Apesar da pré-escola ser obrigatória desde 2016, 10% das crianças de 4 e 5 anos ainda estão fora do sistema educacional. Quanto à equidade, 96,3% das crianças 25% mais ricas estavam na escola, enquanto para as 25% mais pobres esse percentual era de 88,3%.

O levantamento da demanda e a busca ativa são estratégias cruciais na missão de concretizar a meta 1 (educação infantil) do Plano Nacional de Educação (PNE). Guiam o planejamento da expansão da oferta e orientam a equalização do atendimento educacional ao identificar as crianças que deveriam estar na escola, seja porque se inserem na faixa etária de educação obrigatória, seja em função da sua peculiar condição socioeconômica. Muitos municípios não os realizam porque seus gestores não têm conhecimento de como implementá-los na prática.

O custo da indefinição regulatória na educação
O custo da indefinição regulatória, com a ausência de um Sistema Nacional de Educação em vigor, e da implantação das instâncias permanentes de negociação e cooperação, tem sido alto para a primeira infância. O TCU também chegou a essa conclusão ao considerar que a baixa articulação entre os sistemas de ensino contribui decisivamente para a não inclusão de parcela considerável de crianças brasileiras na educação infantil.

Além de dar visibilidade para as fragilidades que colocam em risco o cumprimento da meta 1, o tribunal trouxe grande contribuição ao mencionar soluções utilizadas por alguns municípios para o levantamento da demanda (a exemplo de técnicas de projeção ou atualização dos bancos de dados existentes e consulta aos dados de terceiros, como assistência social e saúde) e para a busca ativa (com o uso de agentes comunitários para a promoção de visitas familiares periódicas, utilização dos dados do CadÚnico, gerido pelo Ministério do Desenvolvimento Social), que são fundamentais para o êxito no atingimento da meta.

A decisão do TCU, materializada no Acórdão 2.775/2017-Plenário, avança ainda ao propor medidas para fomentar a cooperação interfederativa recomendando, por exemplo, ao Ministério da Educação a expedição de orientações técnicas, a disseminação de boas práticas e a elucidação dos possíveis arranjos institucionais para o levantamento da demanda e a busca ativa, estimulando sua utilização para o planejamento da expansão da oferta.

Na mesma linha, o TCU sugeriu a otimização de dados e da estrutura dos programas federais existentes, como a realização da busca ativa com uso dos dados do CadÚnico, que reúne informações atualizadas de 27 milhões de famílias brasileiras em situação de vulnerabilidade econômica, ou da estrutura do Programa Criança Feliz, que faz visitas domiciliares periódicas. Recomendou, ainda, a atualização periódica dos dados do Mapa de Expansão das Creches, disponível no módulo público do Simec, para seu uso como ferramenta de gestão e planejamento pelos municípios.

Prioridade para as crianças mais pobres
Outro dado de extrema relevância levantado foi que 47% dos municípios avaliados não possuem critérios de priorização de crianças para o acesso à rede de educação infantil, em razão da renda familiar. É fato que a redução das desigualdades educacionais só ocorrerá com a priorização do acesso das crianças mais pobres à rede de ensino e não, obviamente, com a diminuição da taxa de atendimento das crianças mais ricas. É preciso enxergar nessa medida o respeito ao princípio da igualdade de oportunidades, e não uma violação à igualdade formal.

É necessário romper a resistência histórica e discutir amplamente esse ponto e as estratégias para uma educação com mais equidade. No modelo atual, por exemplo, o financiamento federal da educação ocorre basicamente em termos per capita, gerando a distorção de que os estados mais abastados do país recebem o mesmo valor proporcional ao que auferem as unidades da federação com menores índices de desenvolvimento econômico e social, enriquecendo os mais ricos e empobrecendo os mais pobres, por assim dizer.

A respeito desse ponto, o TCU fez recomendação expressa ao MEC para orientar os municípios e o Distrito Federal sobre sua responsabilidade na redução das desigualdades no acesso às creches, em cumprimento à estratégia 1.2 do PNE. Sugeriu também que o governo federal induza os demais entes federativos a adotarem critérios objetivos para a priorização de crianças mais pobres no acesso a creches públicas ou conveniadas.

Espera-se que os demais órgãos de controle, especialmente as cortes de contas municipais e estaduais, utilizem-se das conclusões e recomendações divulgadas pelo TCU para induzir, em todos os níveis de governo, a oferta de uma educação infantil de qualidade, com equidade, evitando-se adiar o exercício desse direito e comprometer a janela de oportunidades da primeira infância das crianças brasileiras.

 

 

 

 

 

Autores: Alessandra Gotti  é sócia do Hesketh Advogados, presidente do Instituto Articule e coordenadora da Célula de Soluções Estratégicas do Grupo de Administração Legal do Conselho Regional de Administração de São Paulo.

Ismar Barbosa Cruz  é secretário de Controle Externo da Educação, Cultura e Desporto do Tribunal de Contas da União.


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