Autor: Roberto Di Cillo (*)
Mais uma vez vale a pena repensar como conciliar o combate à corrupção com a existência de empresas e a manutenção de empregos existentes (e, quem sabe, criação de novos empregos, aumento da arrecadação, criação de valor, inclusive a partir de propriedade intelectual, etc.) à luz do que se deve aprender da legislação que já trata há muito tempo de reparação de danos em questões de interesses difusos.
Poucos anos após a entrada em vigor da legislação norte-americana de combate à corrupção no exterior (isto mesmo, a Foreign Corrupt Practices Act, ou FCPA, e isto mesmo, no exterior, vez que corrupção interna nos EUA é criminalizada e, de outra forma sancionada, por outras leis), o legislativo federal brasileiro decretou e o primeiro presidente civil após anos de ditadura (ainda que eleito indiretamente) sancionou a Lei 7.347/85, disciplinando “a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico” (grifos nossos). O texto aprovado pelo Legislativo terminou sendo vetado no Executivo, pois incluía, na ementa e em seus artigos, uma arriscada referência “a qualquer outro interesse difuso” que, segundo o presidente à época, José Sarney, colocaria em risco a segurança jurídica, em detrimento do bem comum.
A Lei 7.347/85 sofreu algumas alterações ao longo do tempo, sobretudo pela Lei 9.494/97, editada naquele contexto conhecido de muitos, sobretudo os que nasceram na década de 70 e antes, do Programa Nacional de Desestatização (ou PND), que havia sido criado pelo presidente Collor de Mello no conturbado ano de 1990, mas que só ganhou corpo e foi acompanhado por desestatizações estaduais no governo Fernando Henrique Cardoso, alguns anos depois.
Para o que interessa ao presente, vale a pena interpretar o texto atual do Artigo 16 da Lei 7.347/85, que lá não alterou tanto o original:
“Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.” (grifos nossos)
São dois os pontos mais significativos que merecem destaque: em primeiro lugar, há a questão do efeito erga omnes da sentença. E não é de qualquer sentença, mas sim da sentença civil, mesmo porque a lei trata da ação civil para reparação de danos. Em segundo lugar, há a questão da competência territorial do órgão prolator, inovação que não parece ter lá tanta importância da lei de 1997. De fato, talvez a inclusão da restrição à competência territorial do órgão prolator fosse desnecessária, pela obviedade que encerra.
De qualquer forma, no contexto de disputa entre órgãos de fiscalização e controle a respeito de competência para transigir sobre matéria tratada em acordos de leniência (em especial, da tal “reparação integral por danos causados”), importa e muito reconhecer que a par das questões já colocadas em outro texto a respeito das lições que devem ser aprendidas da legislação ambiental em questões de combate à corrupção empresarial, vale a pena observar que lá em 1985 houve uma preocupação do Executivo com segurança jurídica, que talvez não estivesse presente quando da aprovação, quase que às pressas, da Lei 12.846/13, com as incertezas que provocou em razão de suas lacunas. Por outro lado, deve-se ter presente o seguinte da Mensagem de Veto 359/85:
“É preciso que a questão dos interesses difusos, de inegável relevância social, mereça, ainda, maior reflexão e análise. Trata-se de instituto cujos pressupostos conceituais derivam de um processo de elaboração doutrinária, a recomendar, com a publicação desta Lei, discussão abrangente em todas as esferas de nossa vida social.” (grifos nossos)
Será que a tutela jurisdicional dos interesses difusos com relação à corrupção empresarial também já não deveria deixar “de ser uma questão meramente acadêmica, para converter-se em realidade jurídico-positiva, de verdadeiro alcance e conteúdo sociais”? Já não é, a propósito? Com milhões de desempregados não dá, porém, para esperar que o Legislativo responda, como sugerido na Mensagem de Veto 359/85, escrita num contexto histórico também complexo.
Por outro lado e no contexto do vital combate à corrupção e proteção dos demais interesses coletivos e sociais envolvidos, inclusive emprego, quem deveria homologar acordos de leniência? Que tal o juiz cível, para que (a) haja coerência com dispositivo expresso de legislação que talvez devesse ser paradigma, a Lei 7.347/85, e (b) as eventuais dúvidas que já não deveriam existir a respeito da natureza cível e administrativa dos acordos de leniência sejam resolvidas de vez? O enorme bônus da solução ora proposta é, com a consideração de efeitos erga omnes de acordos de leniência, uma enorme segurança jurídica para aqueles que já assinaram e aqueles que venham a assinar esse tipo de acordo.
Autor: Roberto Di Cillo é advogado em São Paulo e LLM pela Universidade de Notre Dame (EUA/Inglaterra).