Autores: Marcelo Mazzola e Paula de Mello Franco (*)
A dinâmica do direito, a evolução das relações, as descobertas científicas e os avanços tecnológicos obrigaram, há muito, o legislador a romper com o “tradicional modelo de tipicidade estrita”[1]. É que a técnica da mera aplicação da norma ao fato (subsunção) se tornou insuficiente para regular todas as situações que poderiam emergir.[2]
Ganharam projeção, assim, os conceitos jurídicos indeterminados, que permitem que o intérprete preencha os “espaços em branco” no momento da subsunção, como forma de maximizar a efetividade da prestação jurisdicional.
Foi assim no Código de Processo Civil de 1973[3] e agora mais fortemente no Novo CPC.[4]
Em razão das dimensões reduzidas deste artigo, analisaremos especificamente os conceitos jurídicos indeterminados da tutela de evidência, fazendo uma correlação com as ações de propriedade intelectual.
Como se sabe, a tutela provisória abrange as tutelas de urgência (cautelar e antecipada, que podem ser antecedentes ou incidentais) e de evidência. No caso da tutela de evidência, dispensa-se a demonstração do perigo na demora, podendo a medida ser deferida quando restar caracterizada uma das quatro hipóteses elencadas no artigo 311 do Novo CPC.
A doutrina também reconhece a hipótese de tutela de evidência recursal, a teor dos artigos 1.012, parágrafo 1º e 1.026, parágrafo 1º, da Lei de Ritos, que possibilitam a atribuição de efeito suspensivo à apelação e aos embargos de declaração, respectivamente, se houver “probabilidade de provimento” ou “risco de dano grave ou de difícil reparação”, sendo relevante a fundamentação.[5]
Para fins de trabalho, analisaremos apenas os incisos I e IV do artigo 311, situações que não autorizam o deferimento liminar da medida, isto é, sem a oitiva da parte contrária (artigo 311, parágrafo único).
Pois bem, em relação ao inciso I, esse determina que a tutela de evidência será concedida quando ficar caracterizado o“abuso do direito de defesa” ou o “manifesto propósito protelatório da parte”.
Veja-se que a preposição empregada pelo legislador é “ou” e não “e”, razão pela qual basta a caracterização de um dos elementos para a concessão da medida.
Quanto à definição de abuso do direito, esse pode ser extraído do artigo 187 do Código Civil[6], porém o dispositivo traz alguns conceitos vagos e, portanto, não resolve o problema.
De qualquer forma, parece haver consenso no sentido de que abusa do direito de defesa aquele que altera a verdade dos fatos, procede de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo, resiste ao cumprimento de obrigação de fazer, apresenta documento já conhecido em âmbito recursal, entre outros.
Por sua vez, protelar significa “adiar” ou “postergar”. Assim, age com manifesto propósito protelatório aquele que opõe resistência injustificada ao andamento do feito (por exemplo, recorrente que sistematicamente deixa de recolher as custas recursais para ganhar tempo, ainda que venha a recolher em dobro oportunamente – artigo 1.007, parágrafo 4º), provoca incidente manifestamente infundado, interpõe recursos sem impugnar os fundamentos da decisão recorrida, etc.
Vejamos agora alguns exemplos na área da propriedade intelectual.
Nas ações de infração ou de nulidade de registro de marca,age com abuso de direito a parte que justifica a inexistência da alegada infração com base em registro ou pedido de registro de marca que, sabidamente, cobre outro ramo de atividades, não tendo relação com a contrafação apontada. Também age com abuso de direito a parte que sustenta o fair use de direitos autorais, ciente de que não se valeu apenas de “pequeno trecho” da obra.[7]
Nessas hipóteses, poderá o autor na réplica, ou o réu reconvinte na resposta à contestação, requerer a concessão de tutela de evidência.
Em relação ao manifesto propósito protelatório, a conduta pode restar configurada quando a parte deduzir tese contrária ao entendimento dos precedentes indicados no artigo 927 do Novo CPC, sem fazer o necessário distinguishing.
Entendemos também que, em alguns casos, é possível sustentar o intuito protelatório quando o réu ignora entendimento consolidado das cortes superiores – ainda que sobre questão processual –, materializado em julgados colacionados na petição inicial, sem apresentar qualquer argumento em sentido contrário.
É o caso do réu que, em ação de concorrência desleal cumulada com indenização, suscita a incompetência do foro de domicílio do autor, pugnando pela remessa dos autos para o foro de seu domicílio, ignorando o entendimento do STJ[8], sem veicular fundamentos capazes de infirmar o paradigma. Ou então quando defende a inexistência de infração de marca,limitando-se a sustentar que os prejuízos sofridos pelo autor não teriam sido comprovados na petição inicial, desprezando completamente o posicionamento consolidado da corte especial.[9]
Nas ações de trade dress, consideramos que age de forma protelatória o réu que invoca produtos ou conjuntos distintivos sem qualquer pertinência com as peculiaridades do caso concreto, apenas para desviar o foco e criar uma presunção de legitimidade.
Já no tocante ao inciso IV do artigo 311, a hipótese autoriza a concessão da tutela de evidência quando “a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável”.
Dúvida razoável é aquela que faz o julgador refletir, inibindo eventuais impulsos e levando-o a melhor aquilatar os fatos. É um sinal de que é necessário examinar com mais profundidade a controvérsia e franquear a ampla dilação probatória.
Porém, se o réu não conseguir, com sua defesa, criar uma dúvida razoável na convicção do julgador e a petição inicial estiver instruída com prova documental suficientemente capaz de corroborar a tese autoral, poderá o juiz deferir a tutela de evidência, caso a medida seja requerida.
Em ações de infração de patente, por exemplo, se o autor demonstrar a violação de seu direito de propriedade industrial, juntando laudos técnicos e pareceres elucidativos, e o réu não conseguir esvaziar a consistência de tal argumentação, o juiz poderá conceder a tutela de evidência.
O mesmo pode ocorrer em ações de trade dress, em que o autor demonstra a semelhança dos produtos, acostando, por exemplo, laudos semióticos e pesquisas de opinião, e o réu não consegue desqualificar ou rechaçar o acervo probatório acostado aos autos.
Todavia, se o réu demonstrar que a embalagem utilizada ou o conjunto distintivo segue uma tendência de mercado ou se justifica pela funcionalidade, provavelmente lançará uma “dúvida razoável” na mente do julgador, minimizando as chances de uma tutela de evidência.
Em resumo, especialmente nas hipóteses de tutela de evidência dos incisos I e IV do artigo 311, caso a medida seja requerida, é dever do magistrado fundamentar a sua decisão (artigos 11 e 489, parágrafo 1º, II), demonstrando, de forma racional, como preencheu o conceito jurídico indeterminado, sob pena de nulidade. Trata-se de conduta que, além de prestigiar o contraditório[10], valoriza a boa-fé (artigo 5º) e a cooperação (artigo 6º), dando concretude às normas fundamentais do processo civil.
Autores: Marcelo Mazzola é advogado e sócio do escritório Dannemann Siemsen. Mestrando em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Paula de Mello Franco é advogada do Dannemann Siemsen Advogados e pós-graduada em Direito da Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.