Ana Cláudia Pinho
Promotora de Justiça e Professora de Direito Penal da FESMP-PA e da ESM-PA
“A máquina legislativa já deu o que tinha que dar. Tem leis demais; leis para impressionar o público e leis para inglês ver; leis simbólicas e leis “tampa-buracos” (da política social). Junto com as leis penais, está aumentando o número das prisões e da população penitenciária. E este sistema penal só enche; enche as prisões de negros e de pobres, de negros quase-pobres, de brancos quase-negros, de pobres quase-brancos-quase-negros”.
Sebastian Scheerer
Professor de Criminologia
Univ. de Hamburgo –
Alemanha.
O conflito latente, próprio da sociedade contemporânea, necessita de técnicas de controle, para garantir um nível razoável de bem estar coletivo.
Abstraindo a religião, a moral e demais recursos não institucionalizados, destaca-se a norma jurídica como o meio aparentemente mais profícuo do qual o Estado pode lançar mão para operar a composição dos conflitos, através da satisfação de direitos subjetivos, a partir da implementação de preceitos e imposição de sanções.
Dentro do universo das normas jurídicas, atenções e cuidados especiais merecem as normas penais, pois, como meio de controle social, caracterizam-se por sua natureza reconhecidamente repressiva e coercitiva, um pouco camuflada ou menos percebida nos demais ramos do Direito.
Destarte, sendo o Direito Penal coativo, cuja sanção principal (pena privativa de liberdade) agride diretamente bem jurídico relevante do ser humano, há que se traçar diretrizes básicas a fim de regular e delimitar o alcance de tais normas, impedindo que a liberdade seja, a todo instante, ameaçada.
Nesse contexto, sobressai o chamado PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA, também conhecido como PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE ou NECESSIDADE, corolário inafastável da legalidade estrita, como forma de tentar restringir ou, até mesmo, eliminar o arbítrio do legislador, no momento da confecção das normas penais incriminadoras.
Afinal, vivemos a época do Direito Penal Humanitário, inaugurada desde os idos tempos do Marquês de Beccaria, em que não basta a máxima nullum crimen sine praevia lege, pois, como destacou GIAN DOMENICO ROMAGNOSI, com muita propriedade, “o Estado, respeitada a prévia legalidade dos delitos e das penas, pode criar figuras delitivas iníquas e instituir penas vexatórias à dignidade humana”.
Fazendo uma digressão nos postulados das escolas filosóficas do pensamento penal, salienta-se que, para os clássicos, o crime é um ente jurídico; ou seja, uma criação do Estado. Assim, sob esse prisma, cabe ao legislador a tarefa de “criar o crime”. Em última análise, portanto, compete ao Poder Legislativo impor à coletividade todos os modelos de conduta que serão reprimidos através da pena criminal.
Mas, será que tal papel legitima o legislador a selecionar qualquer comportamento que, a seu talante, mereça tão grave reprimenda, sem a adoção de algum critério ou processo seletivo? Estaria a sociedade completamente à mercê do arbítrio legislativo?
É constitucionalmente inviolável o direito à liberdade (CF, art. 5º, caput). Por outro lado, a Carta Magna de 1988 elevou, a fundamento do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). A par desses dois princípios (inviolabilidade do direito à liberdade e dignidade da pessoa humana), pode-se concluir, com o Prof. LUIZ LUISI que “a restrição ou privação desses direitos invioláveis somente se legitima se extremamente necessária a sanção penal para a tutela de bens fundamentais do homem, e mesmo de bens instrumentais indispensáveis a sua realização social”. Prossegue, ainda, o ilustre professor, afirmando que “destarte, embora não explícito no texto constitucional, o princípio da intervenção mínima se deduz de normas expressas da nossa Grundnorm, tratando-se, portanto, de um postulado nela inequivocamente implícito”
Considerando, portanto, que o PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA tem amparo constitucional, merecem análise seus ditames e reflexão sua efetividade.
O Direito Penal é, eminentemente, subsidiário; secundário. No dizer de FERNÁNDEZ CARRASQUILA, é “o último guardião da juridicidade”.
Todo o comportamento que contraste com a ordem jurídica institucionalizada merece reprimenda, para que o Direito possa cumprir sua função garantista. Porém, a reação estatal deve ser proporcional à violação, de modo a se fazer respeitar as máximas e princípios constitucionais democráticos. Assim, enquanto as demais técnicas de controle social mostrarem-se suficientes, resguarda-se a sanção penal, a fim de garantir a dignidade da pessoa humana – que não pode ser ameaçada desnecessariamente pela imposição de uma pena – e a própria eficácia do Direito Penal.
Somente fracassando as sanções do ordenamento jurídico positivo, é que deve o Direito Criminal mostrar-se.
A pena, portanto, deve ser sempre utilizada como ultima ratio, e não como prima ou sola ratio.
Infelizmente, ao fazer um breve arcabouço do manancial de leis penais hoje em vigor no Brasil, chega-se à conclusão evidente de que o legislador pátrio não vem observando o princípio da subsidiariedade do Direito Penal. Há um inchaço legislativo no Brasil; uma quantidade absurda de tipos penais. Por conveniência, opta-se por uma política paleorrepressiva, fundada num Direito Penal meramente simbólico, ao invés de apostar no paradigma de uma Justiça Penal consensual.
Ademais as leis são severas. O movimento da law and order, emprestado do modelo anglo-saxão, notadamente do Direito Americano, ganhou espaço em nosso país e encontrou seu ápice na famigerada Lei dos Crimes Hediondos (nº 8.072/90), em que importantes garantias processuais foram inconstitucionalmente amputadas e penas foram elevadas ao extremo, sob o argumento da implementação da chamada “luta contra o crime”.
É preciso entender que o crime, antes de ser uma criação do Estado, é fenômeno social. Assim, a superprodução de leis, muitas vezes francamente casuístas (v.g. lei dos crimes hediondos, lei do crime organizado, lei de tortura, lei do porte de armas, etc.), não é o caminho certo para resolver o problema da criminalidade, senão a adoção de uma política de base, realmente preocupada com a educação e com a justiça social.
Nada adianta fazer do Direito Penal a tábua de salvação para a violência urbana no Brasil, se a causa dessa violência não for estudada e tratada. O máximo que se vai conseguir com isso é ignorar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana – na medida em que a pena criminal estará sendo colocada na vitrine para ser utilizada indiscriminadamente – e o descrédito do próprio Direito Penal, que vai, a cada dia, se vulgarizando, contribuindo, assim, com o jargão de que o Brasil é o país da impunidade.
Por outro lado, é preciso de senso de responsabilidade para administrar a aplicação da justiça penal. Quem vai pagar a conta desse Estado macrocéfalo? O sistema penal pede socorro e tenta emergir. A crise penitenciária é crônica e parece insolúvel.
Esse estado de coisas não leva à outra conclusão senão a de que quanto mais tipos penais são criados, quanto mais se recrudescem as penas, quanto mais se delimitam as garantias individuais, mais normas são infringidas e mais os cárceres se abarrotam.
Apesar da aparente desesperança que o tema sugere, o ceticismo não se mostra a melhor saída.
Felizmente, o sistema começa a dar sinais de reação, com a adoção de alternativas válidas e eficazes ao processo inexorável de minimização do Direito Penal.
Nesse contexto, pioneira foi a lei nº 9.099/95, que criou institutos despenalizadores e, mais recentemente, a chamada lei das penas alternativas (nº 9.714/98), que, dentre outras conquistas, aumentou o âmbito de incidência das penas restritivas de direito, em detrimento das privativas de liberdade.
O mundo marcha em direção a um processo de descriminalização e alternativas viáveis para a violência. O Brasil não pode ficar à margem dessa evolução, pois é medida que se impõe.
Cumpre reestruturar as leis penais em vigor. Descriminalizar condutas que podem, facilmente, ser controladas por outras sanções que não a pena criminal, v.g. o adultério. Descobrir novos mecanismos de desobstrução e repensar o tradicional modelo penal – hoje ainda arraigado na pena privativa de liberdade – são tarefas às quais não podem se furtar os operadores do Direito.
Nesse contexto, importante reavaliar o papel que vem desenvolvendo o MINISTÉRIO PÚBLICO, na esfera criminal.
Por mandamento constitucional, é o Ministério Público o titular da ação penal pública. Constitui atribuição exclusiva do Parquet, desse modo, a iniciativa do processo penal para apurar os crime cujas repercussões coletivas e sociais sobrepõem-se a interesses privados.
Assim, tem nas mãos o Promotor de Justiça todo o aparato legal para empreender uma política eficaz no combate à criminalidade, cujos índices, no Brasil especificamente, causam perplexidade.
Todavia, não somente através do ajuizamento de ações penais vai o Ministério Público implementar um profícuo trabalho em prol da busca de um nível mínimo razoável de paz coletiva.
Se, de um lado, é certo que o processo penal é instrumento legítimo à reparação do tecido social rompido com a prática do crime; de outro, é fato que a quantidade absurda de ações penais em curso demonstra a ineficiência do Poder Judiciário que, como parte de um todo, sofre as conseqüências da crise que assola o Estado Brasileiro.
Um Ministério Público arcaico, ancorado em paradigmas ultrapassados, em nada contribuirá na busca por uma solução ao crônico problema da violência.
Destarte, é preciso redefinir o papel do Ministério Público, enquanto Instituição responsável pelo equilíbrio jurídico, a fim de que o Promotor de Justiça assuma, definitivamente, uma nova mentalidade.
O momento conclama a uma tomada de consciência. É preciso utilizar o manancial legislativo já existente e que viabiliza apostar na nova política de Justiça Criminal, fundada no consenso. Urge romper as amarras que ainda atrelam as Instituições a um modelo tradicional e já superado, que acredita ser o Direito Penal – através da imposição de pena de prisão – a solução para todas as mazelas sociais.
O Promotor de Justiça de hoje não pode ser mais mera “máquina de fazer denúncias”. Com isso, só conseguirá abarrotar o Poder Judiciário e entupir os cárceres, colaborando com a indústria da criminalidade.
Necessário se faz aceitar o desafio que nos foi imposto pela nova ordem. Entender que, ao invés da obrigatoriedade da ação penal, hoje vigora o princípio da discricionariedade ou oportunidade regrada. Acreditar que as penas alternativas, notadamente a prestação de serviço comunitário, para as infrações de pequeno e médio potencial ofensivo, é solução eficaz e salutar, que, ao invés de discriminar e estigmatizar, introduz o indivíduo na realidade social, fazendo-o se sentir útil à coletividade.
O legislador já inicia os primeiros passos na direção de um rompimento com o antigo regime. Disponibilizou aos operadores do Direito as Leis nº 9.099/95 e 9.714/98. É verdade que ainda precisamos avançar em matéria de produção de leis, mas, pelo menos, já sopram os ventos de uma transformação de base, tão sonhada por muitos e que, graças ao tirocínio e persistência de idealistas, começam a deixar de se tornar utopia.
Os tempos são outros! O Direito Penal não pode mais ser utilizado indiscriminadamente, sob pena de sucumbir. A privação da liberdade deve ser reservada somente aos delitos de grande lesividade.
E o Ministério Público, nesse contexto, precisa redefinir seu papel, afastando-se do modelo tradicional e buscando, nas vias alternativas, a adoção de uma política eficaz na busca da paz social. Somente assim estará o Parquet, verdadeiramente, compromissado com as relevantes atribuições que lhe foram conferidas pela Carta Magna e imbuído na luta pelo respeito aos princípios constitucionais basilares que devem nortear o Direito Penal moderno.
Concluindo com o Prof. PAULO DE SOUZA QUEIROZ, “ainda que o próprio Deus ditasse as leis, ainda que os juízes fossem santos, ainda que promotores de justiça fossem super-homens, ainda que delegados e policiais formassem um exército de querubins, ainda assim o direito – e o direito penal em particular – seria um instrumento de desigualdade”.
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1 Genesis del Derecho Penal, 1791, trad. Espanhola, pág. 74
2 Os princípios constitucionais penais. Sérgio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre, 1991. Pág. 26