* Palestra proferida no Seminário Em Nome do Filho promovido pelo IDEF – Instituto Interdisciplinar de Direito de Família, dia 23 de junho de 2001, na sede da Escola Superior da Magistratura, Porto Alegre-RS.
Um dos princípios basilares do estado democrático de direito é o da liberdade que, juntamente com o da isonomia, sustenta o direito maior de respeito à dignidade da pessoa humana, elementos básicos dos direitos humanos fundamentais.
Ao tratar da família a Carta Constitucional, além de a considerar a base da sociedade (art. 226), repetiu o princípio da igualdade: …exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (§ 5º do art. 226). Enfatiza o § 7º do mesmo artigo: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal.
No momento em que é admitido o planejamento familiar e se assegura ao casal a liberdade de decidir sobre a eventualidade da prole, estando consagrada constitucionalmente a paternidade responsável, não é possível excluir qualquer método contraceptivo para manter a família dentro do limite pretendido pelo par. Perante a norma constitucional, que autoriza o planejamento familiar, somente se pode concluir que a prática do aborto restou excluída do rol dos ilícitos penais. Mesmo que não se aceite a interrupção da gestação como meio de controlar a natalidade, inquestionável que gestações involuntárias e indesejadas ocorrem, até porque os métodos preventivos disponíveis não são infalíveis. Via de conseqüência, somente se for respeitado o direito ao aborto, a decisão sobre o planejamento familiar se tornará efetivamente livre, como assegura a Constituição.
Mais. De forma expressa o § 7º do mesmo art. 226 diz que compete ao Estado propiciar recursos educativos e científicos para o exercício desse direito. Portanto, além de não poder proibir a interrupção da gravidez, o Estado tem o dever de proporcionar recursos para sua prática, assegurando os meios para sua realização de forma segura. Propiciar recursos educativos significa fornecer informações sobre métodos contraceptivos e propiciar recursos científicos quer dizer disponibilizar meios contraceptivos, entre eles a interrupção da gestação por médico habilitado e através da rede pública de saúde. Imperioso concluir que, em face da falta de recepção pelo novo sistema jurídico, perdeu o aborto seu caráter ilícito, em qualquer hipótese e não só nas hipóteses em que a lei penal previa a possibilidade sua prática como excludente da criminalidade. A questão deixou de ser penal. Tornou-se – apenas – uma grande questão social, diante da qual não se pode mais manter passiva a cidadania e ativo o preconceito. Moralmente, hoje, crime não é mais abortar, mas ignorar o aborto como fato social existente, clamando por regramento jurídico atualizado e adequado. Fechar os olhos diante dos fatos já de há muito deixou de ser a “solução”. Não obstante tenha o legislador em 1940 criminalizado o aborto, o fato é que a sociedade não aceitou o aborto como crime. Hoje é socialmente aceita – exceção apenas de algumas minorias religiosas radicais – a idéia de que o aborto não é crime.
De outro lado, impor à mulher limitações ao exercício do livre arbítrio sobre o próprio corpo implica afrontar o princípio da igualdade que equipara mulheres e homens. Essa afronta é repelida pela ordem constitucional, que impõe a isonomia.
Mas, falar em isonomia é suscitar outra questão, a saber: qual o papel do pai ante a gestação de um filho que é seu? Se a própria Carta confere ao casal a decisão do planejamento familiar, pergunta-se: em que medida poderá o homem influir, tanto sobre o uso dos métodos contraceptivos, como sobre a possibilidade de interromper a gravidez desejada pela mulher?
Este, com certeza, é um tema sobre o qual não se medita, porque as questões relativas à filiação são tidas como algo que só diz respeito à mulher. Alavancada pelo movimento feminista, a procriação é vista como um direito feminino e a livre decisão sobre a mantença ou não da gestação é a bandeira que leva às últimas conseqüências a emancipação feminina.
A guerra das mulheres pela sua emancipação tem sido, na realidade histórica, uma seqüência de batalhas e vitórias. No começo foi necessário lutar pela cidadania, em busca do direito ao voto. Depois se perseguiu o direito à plena capacidade, perdida em decorrência do casamento. Seguiu-se a busca da sobrevivência, ou seja, o direito ao trabalho economicamente valorado, até que se começou a perseguir o direito à sexualidade, à liberdade de escolher a maternidade, o que foi conquistado com o surgimento dos métodos contraceptivos. Finalmente, para a prática de sua total independência, estão buscando as mulheres o direito de não se submeter à gestação indesejada.
Mesmo que não se negue que a mulher suporta a gravidez e todos os seus transtornos, cabe questionar se a função parental só surge com o nascimento, isto é, se antes que este ocorra nenhuma influência, nenhum significado ou ainda nenhum direito é reconhecido ou assegurado ao pai.
Basta figurar a hipótese de, após um longo e doloroso tratamento, consiga um homem engravidar uma mulher. Se ela, por mero capricho, por birra talvez, quiser interromper a gestação, cabe questionar: será que o genitor, sabendo que não mais poderá ter filhos, não tem legitimidade para tentar impedir o abortamento?
Poderia buscar, na via judicial impedir que tal prática se consuma?
Mais ainda: poderá assumir de forma válida a paternidade, comprometendo-se a assumir a guarda do filho?
Ainda que a lei assegure o direito ao nascituro antes do nascimento, este é um direito do feto e não de quem o concebeu.
Talvez caiba lembrar, para alimentar o debate, que, decidindo a mulher levar adiante a gravidez, nenhuma relevância tem a vontade do genitor. Se ele não aceitar a gestação, qualquer tentativa sua de persuadir a mulher a interrompê-la é tida como gesto hediondo e desumano. Mesmo que não se trate de um filho desejado, a paternidade lhe é impingida, ainda mais no atual estágio da engenharia genética, em que a identificação do vínculo biológico é certa. Assim, além de ser imposta a paternidade, também lhe é imposta a obrigação de mantença do filho, inclusive sob pena de prisão.
Ao certo que não se pode considerar a mulher como mero instrumento reprodutor, mas, vivendo na era dos direitos humanos, em que vicejam e se desdobram como verdadeiros ícones a liberdade, igualdade e fraternidade, há que também se atentar ao direito do pai.
Mais importante que a discriminalização é a regulamentação de sua prática para banir a mais terrível conseqüência que a clandestinidade encerra e os números revelam: ao mesmo tempo que ninguém está cumprindo pena por haver se submetido a aborto, as estatísticas informam que, a cada nascimento, corresponde um aborto. Os dados são mais cruéis: todos os anos são realizados no mundo mais de 20 milhões de abortos, que resultam em 78 mil mortes; a cada dia quase 1.400 mulheres – uma a cada minuto – morrem de complicação de gravidez, ou de parto, ou de aborto; e esse risco de morte é de um em cada sessenta e cinco casos.
Daí a necessidade da desclandestinação, pois o aborto é uma violência contra a vida – contra a vida da mulher e da própria criança. O filho, por não ter sido desejado, nem abortado, quantos abortos não sofrerá vida afora. Sim, sofrerá incontáveis abortos: o aborto da violência, da fome, da indiferença, da cobrança, da exclusão social. Quantas vezes será afrontado o seu direito constitucional à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar? Todos esses direitos só serão exercitados se viver em um “lar” – Lugar de Afeto e Respeito – onde o maior direito é o direito ao amor. Direito de todos e de cada um.
* Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça Rio Grande do Sul – Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM