Em país onde há até bancada em tribunal tudo é possível

por Domingos Franciulli Netto

(artigo públicado na Consultor Jurídico em 25 de maio de 2005)

Ao entardecer de minha carreira, prestes a findar-se por força da aposentadoria compulsória, vejo com certo espanto e alguma amargura a mudança que houve na magistratura de uns tempos a esta parte.

Recordo-me dos tempos felizes em que ser juiz era um cargo e uma honraria bastantes em si, rido por orgulho, mas por vocação cumprida e satisfeita. Lembro-me da indignação – e por que não dizer tristeza – que causou para boa parte da magistratura paulista a atitude de um desembargador que se aposentara para ser secretário de governo estadual.

Depois a moda quase pegou, uma vez que alguns poucos seguiram a mesma trilha até para servir governos municipais. Nada tenho contra a importância e dignidade desses cargos, mas, sem nunca ter sofrido de “juizite”, para minha satisfação pessoal, a maioria vocacionada continuou fiel à toga.

Os tempos foram evoluindo (ou involuindo) e eis senão quando alguns nem precisam mais se aposentar para incursionar no Executivo e no Legislativo sem maiores cerimônias e chegam até a ditar cátedra, bem como pensam ensinar como a coisa deve ser feita.

Fui dormir com essas conjecturas na cabeça e acabei sonhando com Montesquieu. O sonho sonhado foi ou pareceu ser comprido, daí a razão do resumo que se segue.

Montesquieu, dizendo-se estupefato com o que estava acontecendo em Brasília e alhures, começou por me perguntar se sua obra havia chegado ao Brasil e se era conhecida, a que respondi “sim”, tanto que a tripartição de poderes, alicerçada em O Espírito das Leis, estava tradicionalmente consagrada em nossas constituições.

Na atual, aliás, insculpida no art. 2°, acerca dos princípios fundamentais: são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, princípio nem sequer suscetível de ser abolido por emenda ( art. 60, § 4°, III) .

A única exceção ao princípio da independência dos poderes, ao que parece, atalhei, deu-se com a Constituição de novembro de 1937, a rigor verdadeira Carta outorgada por Getúlio Vargas, apelidada de “Polaca”, por Assis Chateaubriand. Montesquieu, curioso no particular, quis saber a razão do estigma.

A duras penas procurei explicar que, segundo alguns, era por ter sido inspirada na Carta Política da Polônia, fruto do Golpe de Estado de 1921. Para outros, contudo, Francisco Campos (o “Chico Ciência”) , o jurista de Getúlio, ter-se-ia servido da malograda Constituição de Weimer (1919) , da Carta de Trabalho da Itália de Mussolini e da Constituição portuguesa de 1933.

Endossa essa última versão o saudoso desembargador do TJ-SP, Emeric Lévay, historiador do Direito, uma vez que a Carta polonesa, revista em 1926, tornou-se democrática ( cf. site do TJSP,www.tj. sp. gov. br) .

Prosseguindo, indagou-me o barão se por uma deturpação vernácula, em português, por acaso, “harmônico” e “promíscuo” não queriam dizer a mesma coisa, única explicação que ele encontrava para certas condutas de altos próceres do Judiciário brasileiro.

– Até onde sei, Charles – a essa altura do sonho era como se fôssemos amigos desde criancinha –, ninguém medianamente instruído faz semelhante confusão.

Então, Montesquieu, com ares agora de Sherlock Holmes, concluiu que só podia estar acontecendo uma coisa: essas preclaras autoridades estavam confundindo-o com o Nicolau. Nicolau Maquiavel, para quem, em se tratando de poder, todas as artimanhas são válidas.

Já um tanto desolado, quis saber se eram tais mandatários chegados às letras, pois, nos idos do século XVIII, penoso lhe fora contrariar aqueles que, por ciência humana ou por invocação divina, defendiam ser a soberania e, portanto, o poder uno e indivisível.

Elucidar esse aspecto não me foi difícil, pois são letrados, sim; não poucos hauriram seu saber das fontes límpidas de Darcy Azambuja e Ruy Cirne Lima, entre outros, daí por que “o buraco não estava aí, só não sei se estava mais em cima ou mais em baixo”.

Tenho a impressão de ter ouvido um sussurro de meu ilustre interlocutor, ao balbuciar que em um país onde havia até bancada em tribunal tudo era possível.

Disse-lhe por derradeiro se deveria acordar deixando toda a esperança de fora, consoante a inscrição da porta do Inferno de Dante. Conquanto visivelmente enraivecido com o que estava vendo em nosso país, Charles-Louis de Secondat escusou-se de responder, sob a alegação de que entendido no assunto era Maquiavel.

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Muita gente vai choramingar depois da reforma do Judiciário

Muita gente vai choramingar depois da reforma do Judiciário
por Domingos Franciulli Netto

Inda agorinha, como diria Bernardo Élis, respeitáveis próceres do Judiciário e do Executivo, nas antevésperas do Carnaval, descobriram os grandes culpados pela morosidade da prestação jurisdicional: os juízes que se julgam donos do mundo e que, choramingando, enxergam tramas diabólicas em cada esquina do País.

Este pobre mortal, conquanto permaneça contra o esdrúxulo Conselho Nacional da Magistratura, notadamente contra a presença de não-magistrados em seu seio, não vestiu a carapuça, a exemplo do que ocorre, entre outros, com os desembargadores Luiz Elias Tâmbara e Celso Luiz Limongi, presidentes, respectivamente, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e da Associação Paulista dos Magistrados (Apamagis).

Vão além os filósofos dos novos tempos: os juízes não são autoridades e devem ser meros servidores.

Como sou e não estou magistrado há quase 40 anos, a par de não ter pretensões políticas presentes e futuras, fico perplexo, como milhares de juízes brasileiros.

É que, sem as luzes desses sábios, na minha ingenuidade, penso que as causas da crise da Justiça são outras e podem ser resolvidas sem agressão à independência dos poderes e ao princípio democrático presidencialista. Ei-las: a enxurrada de feitos da qual participa a Administração Pública, direta ou indireta, mercê principalmente do desejo de empurrar com a barriga suas dívidas ou de arcar com as conseqüências de sua volúpia arrecadatória; as leis processuais emaranhadas e desatualizadas ou mal atualizadas; no que toca ao Código de Processo Civil, de 1973, foram editadas cerca de 50 leis, de sorte que sua homogeneidade foi para o brejo e outras modificações, que nada contribuirão para a maior celeridade processual, estão por vir; por derradeiro, ainda a título exemplificativo, há o despudorado não-cumprimento total ou parcial das decisões judiciais.

O juiz não é estrela solitária dentro da relação processual, na qual, de regra, oficiam também os advogados de ambas as partes, além do Ministério Público, em certas demandas, seja como parte formal, seja como fiscal da lei.

Deveras, ao juiz toca parte preponderante para dirigir o processo com celeridade e decidir os litígios dentro dos prazos legais, o que, contudo, não dispensa a colaboração dos demais partícipes da relação processual.

Asseverar que os juízes precisam despir-se da autoridade é ignorar que, dentro de suas funções, esse é requisito que lhes é inerente.

Nunca vi ou ouvi algum juiz dizer que, em sentido lato, não é servidor público. A diferença é que o juiz é, precipuamente, membro de um dos três poderes existentes no País.

Assim está insculpido em nosso sistema constitucional, que prega serem os poderes independentes, ainda que harmônicos, mas nunca promíscuos.

Tramas diabólicas em cada esquina, a menos que ocorram no recinto fechado de alguns gabinetes, são inimagináveis, mormente em Brasília, onde nem esquina há. A Zé do Caixão e aos autores de dramalhões mexicanos ou de filmes de terror, trata-se de boa sugestão para nome de uma das obras: ‘Tramas diabólicas vistas por juízes em cada esquina’. No campo musical, nem Lupicínio Rodrigues e Vitor Matheus Teixeira, vulgo Teixeirinha, chegaram a tanto. O último é autor de ‘Coração de Luto’, que o povo notabilizou como ‘Churrasquinho de Mãe’. Não consta tenha composto ‘Churrasquinho de Juiz’.

‘Dono do mundo’, fruto provavelmente de ato falho, por sua vez, foi igualmente ótimo título para novela da Globo, mas não se ajusta à maioria esmagadora dos juízes, que nem mesmo sonham com ‘Três alqueires e uma vaca’; de ordinário, essa área é grande e a vaca pode ficar com os acostumados a mamar nas gordas tetas dos cofres públicos.

Como os conceitos dos eruditos foram emitidos sob os fluxos, influxos e refluxos de época pré-carnavalesca, melhor é invocar Noel Rosa: ‘Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do céu que palpite infeliz!’

Choramingar, por fim, é o que muita gente vai fazer depois dessa Reforma do Judiciário. Não faltará, já que se cogitou de tramas diabólicas, quem, tal qual a personagem de Dante, irá dizer que não há dor maior do que se recordar, na miséria, dos tempos felizes.

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Quarentena para ex-juizes é generalização odiosa

por Domingos Franciulli Netto

O artigo 95 da emenda constitucional recém-aprovada pelo Senado Federal dispõe, em seu parágrafo único, inciso V, que é vedado ao juiz exercer advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração.

Cuida-se da instituição do que vulgarmente costuma-se denominar “quarentena”. Vale dizer, isolamento por um determinado período. Anteriormente, era de 42 e passou para 40 dias. Segundo os dicionaristas, a noção teleológica da palavra significa lapso temporal imposto a pessoas ou animais procedentes de portos onde há doenças contagiosas.

Esses portos agora são os tribunais ou juízos, nos quais o magistrado aposentado ou exonerado exerceu a judicatura. Terá de isolar-se deles não por 40 dias, mas pelo lapso de nada mais nada menos de três anos, senão poderá contagiar a vida forense com sua presença nefasta.

Como disse alhures o ministro Humberto Gomes de Barros, do Superior Tribunal de Justiça, trata-se de medida odiosa, uma vez que, para o ingresso de qualquer candidato na carreira da magistratura, ainda que seja pelo quinto constitucional, há necessidade de tratar-se de pessoa de ilibada reputação e de idoneidade moral comprovada.

Então, o corolário daí decorrente é o de que sua permanência nas nobilitantes funções de julgar foi tão nociva a ponto de o contaminar de tal forma que se lhe impõe um drástico isolamento.

Dir-se-ia que se trata de medida em benefício da sociedade, o que também peca pela base, uma vez que o juiz de direito de qualquer escala não é portador de informações privilegiadas, mas apenas de saber, experiência e vivência que lhe foram incorporados ao longo dos anos.

Outros apontam na medida uma espécie de defesa do mercado de trabalho da advocacia, o que se não coaduna com a verdade fria dos fatos, pois os bons e eficientes profissionais não temem concorrência desse jaez.

Achar que todo advogado irá valer-se de sua condição de ex-juiz para dela se prevalecer, ferindo elementares princípios éticos, é uma generalização que apenas encobre a medida mais adequada de punir com coragem eventuais infratores. Ao que parece, nem mesmo serão poupados os aposentados compulsoriamente aos 70 anos, pois a esses, provavelmente, restará, quem sabe, o consolo de advogarem no céu.

artigo publicado no jornal O Globo

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