por Vidal Serrano Nunes Jr e Marilena Lazzarini
Em meio à implantação da reforma do Judiciário, que tem entre seus principais objetivos reduzir a morosidade da tramitação processual, torna-se inexplicável a tentativa de reduzir a abrangência das decisões proferidas em ações civis públicas, que atingem, de uma só vez, todos os lesados e evitam, por isso mesmo, que milhares de pessoas atulhem ainda mais a Justiça com ações individuais.
O equívoco encontra-se no bojo da própria reforma que, como se sabe, não foi ainda concluída. Parcela dos dispositivos aprovados pela Câmara dos Deputados recebeu emendas no Senado, o que determinou a volta desses dispositivos à Câmara dos Deputados.
É aí, na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 358/2005, que se pretende, por meio da inserção do parágrafo 2º ao artigo 105 da Constituição Federal, transferir ao Superior Tribunal de Justiça a competência para definir o alcance territorial das decisões proferidas nas ações civis públicas.
Diz o referido dispositivo que, “nas ações civis públicas e nas propostas por entidades associativas na defesa dos direitos de seus associados, representados ou substituídos, quando a abrangência da lesão ultrapassar a jurisdição de diferentes Tribunais Regionais Federais ou de Tribunais de Justiça dos Estados ou do Distrito Federal ou Territórios, cabe ao STJ, ressalvada a competência da Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral, definir a competência do foro e a extensão territorial da decisão”.
Se aprovada tal como está, a PEC 358 vai contrariar todo o espírito da reforma do Judiciário. Cria um novo entrave à tramitação do processo coletivo ao impor mais uma instância decisória. Conseqüentemente, aumenta a já insuportável lentidão do processo. E, pior, permite a redução do alcance territorial da decisão, como se fosse possível determinar, por exemplo, que um rio seja despoluído dentro do território de um estado e continue poluído no estado vizinho. Ou, ainda, reconhecer que a recuperação das perdas na poupança sofridas pelos brasileiros em planos econômicos seja devida só aos cariocas, e não aos paulistas.
Nos 20 anos recém-completados de vigência da Lei da Ação Civil Pública (lei 7.347, de 24 de julho de 1985), a sociedade brasileira pôde experimentar as vantagens desse inovador instrumento processual: ampliação do acesso à Justiça, fortalecimento da organização social por meio de associações que representam o interesse de um número indeterminado de pessoas e contribuição para reduzir a sobrecarga do Judiciário.
As resistências encontradas não foram poucas. O Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), ao longo de seus 18 anos de atuação em defesa da coletividade, enfrentou a oposição de empresas e do próprio poder público ao uso das ações civis públicas.
Inúmeras vezes viu ser negada a competência do Ministério Público e das associações como entes legítimos para propor ações coletivas, assim como testemunhou serem contestados os efeitos erga omnes das decisões, isto é, que beneficiam todos os que se enquadrem na mesma situação jurídica.
Mas muitos foram os ganhos. Milhares de pessoas já foram beneficiadas diretamente por ações propostas pelo Idec e, certamente, milhões o foram pelas inúmeras ações ajuizadas em todo o país.
Não são de espantar, portanto, os ataques legislativos que tem sofrido esse poderoso mecanismo processual. Aconteceu com a medida provisória que se transformou na Lei 9.494/97 e inseriu o artigo 16 na Lei da Ação Civil Pública, também com o objetivo equivocado e ilógico de limitar a eficácia da sentença à competência territorial do órgão jurisdicional prolator da decisão. Felizmente, essa primeira tentativa tem sido considerada inconstitucional, formal e materialmente.
A nova investida contra as ações civis públicas, feita por meio da PEC 358, que já conta com parecer favorável do relator na Comissão de Constituição e Justiça, deputado Roberto Magalhães (PFL-PE), comete o mesmo erro: confunde jurisdição e efeitos da sentença com competência do órgão jurisdicional e revela-se, portanto, inconstitucional, por atentar contra o princípio de garantia de acesso à Justiça, considerado cláusula pétrea, ou seja, que não pode ser alterado nem por emenda constitucional.
Imprescindível, portanto, que a sociedade brasileira repudie esse duro golpe no sistema de proteção dos direitos do cidadão e se mobilize para preservar o instituto da ação civil pública, evitando que caiam por terra os avanços alcançados. Definitivamente, ela é instrumento de fundamental importância para a distribuição de justiça no país, para o fortalecimento e organização da sociedade e para o Poder Judiciário. Só não interessa a eventuais réus. Que a técnica legislativa e o bom senso prevaleçam!
Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, na quarta-feira (27/7).
Revista Consultor Jurídico