I. Introdução
Não há sociedade sem ordem e nem ordem sem normatividade, porque esta é o espelho daquela (1). A normatividade, tal como ela é concebida juridicamente, provêm da cultura humana, como um dos elementos do fenômeno sócio-cultural, em sua totalidade, que dá sentido a uma conduta (lícita ou ilícita) prenhe de sentido, que é o objeto de sua interpretação por parte dos exegetas, seja esse sentido visto pelo prisma dos valores, da vontade do legislador (mens legislatoris), das reais necessidades sociais ou da vontade popular.
Em sua teoria tridimensional do direito MIGUEL REALE (2) ensina que o direito é a unidade constituída de fato, valor e norma. Como o fato social é pluridimensional, as transformações do direito (como normatividade), para adequá-lo às modificações da sociedade, ressaltam a sua natureza social, notadamente se essas modificações são decorrentes dos costumes, das decisões judiciais e dos ensinamentos doutrinários, por mais que essas modificações custem a se processar numa sociedade, ante a natureza conservadora do seu povo.
As normas jurídicas, classificadas quanto ao grau de seu conteúdo, podem, em razão de suas funções, serem subdivididas, dada a força de seu conteúdo, como lei ordinária, lei complementar e lei constitucional, tendo esta, em razão de sua aplicabilidade, normas consideradas como auto-aplicáveis (self-executing) e normas regulamentáveis (not self-executing ou not self-acting).
Destas normas jurídicas, a lei constitucional é, na lição de PINTO FERREIRA (3), “…uma pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político”, ante o princípio da sua supremacia. Esta supremacia é distinguida na doutrina como supremacia material e supremacia formal.
A supremacia formal, só é concebível, do ponto de vista jurídico, quando se apóia na regra da rigidez, da qual é o primeiro e principal corolário. É o ensinamento de JOSÉ AFONSO DA SILVA (4).
Citando BURDEAU, JOSÉ AFONSO DA SILVA (5) considera que a previsão de um modo especial de revisão constitucional dá nascimento à distinção de duas categorias de leis: as leis ordinárias e as leis constitucionais; a estas, ele acrescenta mais uma: as leis complementares.
A elaboração do ordenamento jurídico deve conformar-se com as normas emanadas da Constituição, ante o princípio da supremacia constitucional, do qual resulta a compatibilidade vertical da normatividade inferior com as de grau superior, sob pena de – assim não se conformando – serem retiradas do mundo jurídico, sob a eiva da inconstitucionalidade, ou da ilegalidade. Qualquer regramento infraconstitucional – ou até mesmo aquele que vise a modificar a Constituição – deve obedecer a regras previamente estabelecidas pela lei suprema de um país. A incompatibilidade da produção legislativa com as normas e princípios constitucionais leva-nos a considerá-la como inconstitucional, na medida em que não são observados certos regramentos formais ou materiais – estes, também chamados de conteúdo.
O festejado mestre de direito constitucional JOSÉ AFONSO DA SILVA (6), é lapidar acerca desse entendimento:
“Essa incompatibilidade vertical de normas inferiores (leis, decretos, etc.) com a constituição é o que, tecnicamente, se chama inconstitucionalidade das leis ou dos atos do Poder Público, e que se manifesta sob dois aspectos: (a) formalmente, quando tais normas são formadas por autoridades incompetentes ou em desacordo com formalidades ou procedimentos estabelecidos pela constituição; (b) materialmente, quando o conteúdo de tais leis ou atos contraria preceito ou princípio da constituição.
Essa incompatibilidade não pode perdurar, porque contrasta com o princípio da coerência e harmonia das normas do ordenamento jurídico, entendido, por isso mesmo, como reunião de normas vinculadas entre si por uma fundamentação unitária.”
Assim, o constituinte originário previu a modificação da Constituição brasileira de 88, através de um procedimento formal a ser deflagrado por um quorum qualificado dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; pelo Presidente da República ou por mais da metade das Assembléias Legislativas dos Estados-membros, através da maioria de seus membros (CF., art. 60, incs. I. II e III), chamado de reforma constitucional.
Outro processo de mudança constitucional é lecionado, entre nós, por J. H. MEIRELLES TEIXEIRA (7), ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ (8) e por UADI LAMÊGO BULOS (9), chamado de mutação constitucional, que não deixa de ser um procedimento informal de mudança de normas constitucionais de constituições rígidas, como a nossa, sem que, necessariamente, o constituinte derivado seja chamado a dele participar.
Desses processos, um vai nos interessar de perto ao desenvolvimento deste estudo, que é o da reforma constitucional, por depender diretamente de procedimentos a serem obedecidos pelo legislador constitucional reformador, ditados pelo legislador constituinte originário, às mudanças formais a serem operadas em nossa Carta Magna.
Dentre as consequências e noções da rigidez de nossa Constituição podemos destacar três, das cinco citadas por MEIRELLES TEIXEIRA (10): (a) distinção entre Poder Constituinte e poderes constituídos; (b) supremacia da Constituição e hierarquia das normas; e (c) noção de inconstitucionalidade de leis e de atos do Poder Público.
PODER CONSTITUINTE E PODER LEGISLATIVO CONSTITUÍDO OU
PODER CONSTITUINTE DERIVADO OU REFORMADOR
Como prelecionava HAURIOU o Poder Legislativo Fundador, exercendo a sua atividade normativa de primeiro grau, ao fixar os fundamentos do Estado e da ordem jurídica e social, numa Constituição escrita, delega ao Poder Legislativo ordinário a função reformadora da ordem constitucional, naquelas normas que ele não “granizou”. Extrapolar dessa competência derivada é incorrer em inconstitucionalidade formal e, dependendo do assunto tratado na norma, material.
Normalmente, o constituinte derivado quando incorre em uma inconstitucionalidade formal, ele também comete uma inconstitucionalidade material, porque, ao extrapolar da competência que lhe foi outorgada originariamente, ele procura compensar com a materialidade da norma a eiva da inconstitucionalidade formal de que a revestiu.
A limitação imposta pela própria Constituição outorgada pelo constituinte originário o impede de modificar a sua competência derivada, daí por que, ao desviar-se desse seu mister, a sua obra torna-se nula de pleno direito.
SUPREMACIA CONSTITUCIONAL SOBRE AS NORMAS DELA DERIVADAS
Nos países que adotam o sistema de Constituição rígida, como o nosso, a Constituição sobreleva-se acima das normas ordinárias ou infraconstitucionais, aqui entendidas aquelas que lhe dão complementaridade, quer sejam elas leis complementares à Constituição ou mesmo leis ordinárias que a complemente.
O nosso ordenamento jurídico tem previsibilidade constitucional albergada na Seção VIII, do Capítulo I, do Título IV, da Constituição Federal de 1988, que trata da Organização dos Poderes e prevê o processo legislativo em seu art. 59 usque 69.
Todas as normas infraconstitucionais – e aquelas que irão operar as mudanças formais do conteúdo constitucional – têm a sua fonte na Constituição. Assim, por lei, em sentido formal, em nosso sistema jurídico, entendemos como sendo as emendas à Constituição, as leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, as medidas provisórias (estas com validade de 30 dias, se não forem convoladas em lei), os decretos legislativos e as resoluções (de ambas as Casas integrantes do Congresso Nacional).
A elaboração, redação, alteração e consolidação da legislação, segue ordenamento próprio, previsto na Lei Complementar nº 95, de 1998, à qual o legislador está jungido umbilicalmente, no processo legislativo.
Assim temos que, as emendas à Constituição devem tratar, única e exclusivamente, das modificações a serem processadas no corpo do texto constitucional, sendo defeso ao constituinte derivado tratar de matéria estranha ou correlata às modificações que forem previstas na emenda constitucional, em dispositivos outros que não os emendatórios da Carta Política, em um rabilonguismo desacerbado, em âmbito material diverso da sua finalidade constitucional.
Esse corolário da rigidez constitucional deriva do fato de ser a própria Constituição quem cria os órgãos elaboradores das normas inferiores e de sua modificação – Poder Legislativo ordinário e Poder Constituinte derivado – (CF/88, Título IV, Capítulo I – Do Poder Legislativo); de quem estabelece rigidamente o processo legislativo ao qual deverá ater-se o Poder Legislativo(CF/88, Título IV, Capítulo I, Seção VIII); de quem delimita expressamente as matérias a serem tratadas através de lei complementar (e.g.: CF, arts. 25, §3º, 59, P.Ún.) e as que devem ser tratadas através de lei ordinária, tanto pela União, como pelos Estados, municípios e Distrito Federal; e de quem estabelece limites permissivos ou proibitivos ao legislador ordinário.
INCONSTITUCIONALIDADE DE LEIS E ATOS DO PODER PÚBLICO
O zelo pela guarda das leis e da Constituição brasileira é da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios (Cf., art. 23, I, initio), sendo que esta, deve ser exercitada diretamente através de ação de inconstitucionalidade, perante o Supremo Tribunal Federal, a ser proposta diretamente pelo Presidente da República, Mesa do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, Partido político com representação no Congresso Nacional, pelo Procurador-Geral da República, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (a nível de União); a nível de Estado, através da Mesa de Assembléia Legislativa ou de Governador de Estado (CF., art. 103, incs. I a IX). Os demais entes federativos (Distrito Federal e municípios), deverão exercitar essa prerrogativa indiretamente através de um dos órgãos acima discriminados, preferencialmente, através do Procurador-Geral da República.
O princípio da legalidade a que está submisso o Poder Público não permite que haja arbitrariedade por parte de qualquer ente que dele faça parte, sob pena de ferir-se de morte o Estado Democrático de Direito e a segurança jurídica – government of laws, not of men (governo de leis, não de homens).
J. H. MEIRELLES TEIXEIRA (11) discorrendo sobre esse princípio acha que a Constituição, apesar da sua supremacia sobre o ordenamento jurídico positivado, encontra-se vulnerável a violações, quer seja por parte do legislador ordinário como das próprias autoridades da Administração Pública, daí por que concorda com DUVERGER que assinala ser necessário que a constitucionalidade das leis seja juridicamente verificada através de um controle da constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público que, em última instância, devem ser escritos, e conforme o ordenamento jurídico vigente.
Para que isso aconteça, é necessário que a própria Constituição organize uma técnica especial para a sua incolumidade, através de um sistema de órgãos e normas que a mantenham inalterável, fora daquele processo de modificação nela previsto, que o legislador constituinte originário previu.
Assim, o Supremo Tribunal Federal tem a competência precípua de ser o seu guardião, processando e julgando, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual.
II. Origem da Constituição e o Poder Constituinte
Tanto na Ciência Política como na Ciência do Direito, a palavra Constituição encontra os mais diversos significados, que não vem ao caso serem aqui discorridos para o entendimento deste nosso estudo. O que nos interessa de perto é saber que a vontade de uma povo, politicamente organizado, deve ser estatuída de maneira que haja uma segurança jurídica no relacionamento populacional (civil) e entre eles e os seus governantes (administrativo) para que não impere a anarquia.
Desde a politéia (normas de organização política) e das nómoi (normas gerais, regras) gregas, distinguidas por Aristóteles, até o estabelecimento de uma ordem normativa fundamental romana (rem publicam constituere) a “Constituição” sempre foi a “lei fundamental” de uma Nação, que só poderia ser modificada por magistrados altamente qualificados ou extraordinariamente designados.
Quer tenha sido elaborada através de pacto, tratado, ou acordo entre o rei e o reino, ou mesmo escrita pelo exercício do poder constituinte, diretamente outorgado pelo povo, a Constituição sempre foi alçada à condição de lex mater, lei fundamental, lex legum, a cujos ditames estão sujeitos governantes e governados, que, no Estado Democrático de Direito, jamais deve ser violada, segundo o princípio democrático de sua gênese.
Hoje, exercitando o princípio democrático da escolha de seus governantes, o povo politicamente organizado delega atribuições a representantes seus para traçarem regras fundamentais do momento político existente naquela oportunidade, com vistas a que suas normas tenham efetividade, e que desmandos observados anteriormente não venham a se repetir futuramente naquele Estado.
Estes representantes populares, que denominamos constituintes, intervém na organização política existente para outorgar uma Constituição, para ab-rogar uma outra já existente, ou modificá-la – segundo ela mesma o permita – a fim de traçar-lhe novo perfil organizacional, que irá dirigir a Nação daí em diante. A ab-rogação reclamará nova intervenção do Poder Constituinte, a modificação não; esta poderá processar-se através do Poder Legislativo instituído pela própria Constituição, ao qual denominamos Poder Constituinte derivado, ou de reforma.
Nada obstante essa outorga popular exclusiva ao constituinte para dar-lhes um documento supremo, quase permanente, este, traçando normas e regramentos que achou por bem estabelecer, delega atribuições ao Poder Legislativo que ele criou, para modificar a Constituição, tendo em vista que a sua previsibilidade futura é quase nenhuma ou, quando muito, suficiente para o ordenamento jurídico de algumas décadas, ante a dinâmica da realidade política.
Assim foi no Brasil até os nosso dias, a evolução político-constitucional elaborou 6 Cartas Políticas (a par da Emenda Constitucional nº 1, de 1969) inaugurada com a outorgar da Carta Imperial de 1824, seguindo a Republicana de 1891, a Revolucionária de 1934, a do Estado Novo de 1946, a do Movimento Militar de 1967 – e sua EC 1/69 – e, finalmente, a Constituição Cidadã de 1988, com as modificações nela introduzidas pelas 6 EC de revisão e as 20 EC seguintes, até agora.
III. O Processo Legislativo
Ao estabelecer para o constituinte derivado (ou legislador ordinário) o processo de modificação da Constituição, o constituinte originário deixou expresso como fazê-lo, sob pena de tornarem-se, essas modificações, nulas de pleno direito, com efeitos ex tunc (desde então).
A previsibilidade constitucional do processo legislativo está albergado, em nossa atual Carta Política, nos arts. 59 e ss., constituindo-se, em numerus clausus, na elaboração de emendas à Constituição, leis complementares à Constituição, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.
A par dessa previsibilidade de produção normativa, a Lei Complementar nº 95, de 1998, veio dispor sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, entendidas estas, aqui, como lei em sentido formal.
Para um melhor entendimento do nosso estudo, podemos dividir, didaticamente, o processo legislativo em 4 grupos de produção legislativa: I) emendas constitucionais; II) leis complementares e leis ordinárias; III) leis delegadas e medidas provisórias; e IV) decretos legislativos e resoluções.
Os decretos legislativos e resoluções são atos normativos que tratam de matérias da exclusiva competência do Poder Legislativo, destinando-se, os decretos legislativos, a regular matérias que não necessitem da sanção governamental, mas que têm força de “lei”, enquanto que as resoluções destinam-se a regular matéria de caráter político, administrativo ou normativo que é dado única e exclusivamente ao Poder Legislativo deliberar e aprovar.
As leis delegadas e as medidas provisórias são atos normativos a serem elaborados pelo Chefe do Poder Executivo, vedando-se, nas primeiras, a delegação dos atos de competência exclusiva do Poder Legislativo e aquelas reservadas à lei complementar; já as medidas provisórias, só têm força de lei nos primeiros 30 dias seguintes à sua edição, perdendo a sua eficácia plena se não forem convertidas em lei pelo Congresso Nacional, dentro desse prazo.
É de se notar que no grupo dos decretos legislativos e resoluções a iniciativa e promulgação é privativa do Poder Legislativo, enquanto que no grupo de medidas provisórias e leis delegadas a iniciativa é privativa do Chefe do Poder Executivo, com promulgação do Poder Legislativo.
No grupo II, que incluímos as leis complementares e as leis ordinárias, podemos distinguir, basicamente, essa produção legislativa pelo conteúdo da matéria nelas tratadas, assim como no quorum para a sua aprovação.
Destarte, quanto ao conteúdo, as leis complementares tratam das matérias para as quais o legislador constituinte originário determinou expressamente que assim fossem legisladas, e.g., CF., arts. 18, § 3º, in fine e 22, P. Ún.; enquanto que, naquelas normas não auto-executáveis, que ele achou por bem serem reguladas pela legislação ordinária, ele apenas se referiu como “a lei…” ou “…na forma da lei” ou, ainda, empregando simplesmente o vocábulo “lei”, para que o legislador ordinário complementasse aquela norma, dando-lhe executoriedade.
Enquanto que na lei ordinária o quorum é simples (metade mais um) dos membros da Casa Legislativa, na lei complementar o quorum é qualificado, ou seja, necessita da maioria absoluta dos membros do Poder Legislativo para a sua aprovação, dado o grau de interesse da matéria não ser tratada sem a concorrência daquele número de integrantes do legislativo.
Todo o processo legislativo tem a sua fonte na Constituição, o que torna comum e sem hierarquia os atos normativos daí decorrentes. O que os diferencia uns dos outros são as fases e os procedimentos necessários à produção legislativa.
Assim, temos atos normativos que variam quanto a iniciativa; quanto à discussão; quanto à votação e quanto à sanção e promulgação.
Quanto à iniciativa nós temos atos privativos o Chefe do Poder Executivo; da Mesa do Poder Legislativo; do Pleno do Poder Judiciário e dos Tribunais de Contas. Os atos normativos não previstos constitucionalmente como privativos desses entes políticos são considerados promíscuos ou concorrentes, tal como acontece com os projetos de lei ordinária.
Quanto à discussão, a nível federal, teremos atos normativos que serão submetidos à deliberação somente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, ou de ambas as Casas Legislativas reunidas (Congresso Nacional), em duas, ou em uma única discussão. Normalmente, essas matérias dizem respeito à competência exclusiva do Poder Legislativo, tais como, e.g., as dos arts. 49, 51 e 52, da CF/88.
Quanto à votação, teremos os atos normativos submetidos à aprovação de quorum qualificado (leis complementares) e matérias que não exigem quorum qualificado (leis ordinárias, decretos legislativos, resoluções, etc.), como já visto.
Finalmente, quanto à sanção e promulgação, teremos atos normativos que seguem à sanção e promulgação do Chefe do Poder Executivo, e atos normativos que dispensam a sanção e promulgação daquela autoridade, sendo promulgados pela Mesa do Poder Legislativo, como é o caso, e.g., dos decretos legislativos, resoluções e leis delegadas.
IV. Emendas Constitucionais
Como visto, as matérias tratadas em atos normativos previstos dentro da produção legislativa constitucional (processo legislativo) têm a sua previsibilidade material e formal (ou processual) em âmbito da própria Constituição, por uma delegação do Poder Constituinte originário ao Poder Constituinte derivado.
Para o desenvolvimento do nosso trabalho, interessa-nos o âmbito material a ser tratado em sede de emenda constitucional, que o legislador constituinte originário previu como um processo de modificação, única e exclusivamente, do texto constitucional, sem que nela fosse permitido tratar de outro ou qualquer assunto correlato à finalidade a que se destina essa produção de ato normativo.
Do mesmo jeito que as matérias a serem tratadas em lei complementar não podem ser tratadas em sede de lei ordinária (e vice-versa), assim também as matérias a serem tratadas por lei ordinária ou lei complementar não pode ser tratadas em sede de emenda constitucional.
A diferença entre esses atos normativos reside no âmbito material e no quorum predeterminado constitucionalmente para essas produções legislativas. Quando o constituinte originário quis, deixou expressamente designado o âmbito material das leis complementares. Assim como os da emenda constitucional.
CELSO BASTOS (12), ao tratar das espécies normativas, a serem elaboradas de acordo com a previsibilidade constitucional, assim se manifesta:
“Não existe hierarquia entre as espécies normativas elencadas no art. 59 da Constituição Federal. Com exceção das Emendas, todas as demais espécies se situam no mesmo plano.
A lei complementar não é superior à lei ordinária, nem esta é superior à lei delegada, e assim por diante.
O que distingue uma espécie normativa da outra são certos aspectos na elaboração e o campo de atuação de cada uma delas.
Lei Complementar não pode cuidar de matéria de lei ordinária, da mesma forma que lei ordinária não pode tratar de matéria de lei complementar ou de matéria reservada a qualquer outra espécie normativa, sob pena de inconstitucionalidade.
De forma que, se cada uma das espécies tem o seu campo próprio de atuação, não há falar em hierarquia. Qualquer contradição entre essas espécies normativas será sempre por invasão de competência de uma pela outra. Se uma espécie invadir o campo de atuação de outra, estará ofendendo diretamente a Constituição. Será inconstitucional.”
Ao excetuar as emendas constitucionais do plano normativo previsto constitucionalmente, os constitucionalistas admitem que esse tipo de norma presta-se, única e tão-somente, à modificação do texto constitucional, sem que regulamente a sua modificação, descendo a conteúdo normativo ordinário.
Para que entendamos perfeitamente esta lição, recorremos aos ensinamentos de outro não menos renomado doutor em direito constitucional da PUC, Prof. MICHEL TEMER (13), e atual Presidente da Câmara dos Deputados. Eis o que preleciona, a respeito, o constituinte derivado:
“(…) o constituinte estabelece documento que é sintético. São as sumas, são as vigas mestras do sistema. O desdobramento para o cumprimento da Constituição deve ser observado pelo legislador infraconstitucional. Portanto, num sentido amplo, todas as leis, todas as espécies normativas são complementares à Constituição. Isto é, se os limites constitucionais não forem obedecidos, não podem ingressar no sistema. Assim, quando se diz complementar – em sentido lato – significa desdobramento de norma constitucional.
Mas o constituinte criou espécie determinada e a rotulou de lei complementar.”
Como bem assinala MEIRELLES TEIXEIRA (14):
“Qualquer desvio, do legislador ordinário, destes como de outros limites negativos ou positivos, estabelecidos pela Constituição, equivalerá a um vício de inconstitucionalidade da lei, ou do ato da Administração, eventualmente baseado nessa lei inconstitucional.”
E, mais adiante, arremata:
“Determinando, destarte, limites rigorosos à ação dos próprios Parlamentos, bem como da Administração, a Constituição rígida reforça o princípio da legalidade, erigindo-se numa superlegalidade, ou numa legalidade reforçada, na expressão de Barthélemy-Duez, que coloca as normas e soluções constitucionais acima da instabilidade política, da inconstância, das paixões e dos interesses do momento, ou mesmo da ação meramente irrefletida ou apressada do legislador ordinário, erigindo-se como já reconhecia Duguit, “em proteção poderosa em favor do indivíduo, contra o arbítrio legislativo, sob a condição indispensável de que existam tribunais fortemente organizados, cuja independência e capacidade estejam acima de toda suspeita e que tenham o poder de recusar-se a aplicar toda e qualquer lei que reputem contrária à Constituição”.
Recentemente – à semelhança do que já vinha fazendo com o beneplácito de todos, o constituinte derivado achou por bem dispor, nas Emendas Constitucionais nºs. 19 e 20, de dispositivos complementares às emendas propostas ao corpo da Carta Política Federal, minudenciando os assuntos ali contidos e modificadores do texto constitucional.
Tal prática vem se verificando desde a EC nº 2, de 1992, que dispôs sobre o plebiscito previsto no art. 2º do ADCT e realizado a 21 de abril do ano seguinte, tratando, em sede de emenda constitucional, de matéria infensa ao seu objetivo, e tratável a nível de legislação infraconstitucional regulamentadora do assunto.
Pior, nota-se que apesar de ter sido modificada a data da realização daquele exercício constitucional de cidadania para o dia 21 de abril de 1993, o texto constitucional permaneceu inalterado, prevendo o dia 7 de setembro de 1993, como aquele para a realização da consulta plebiscitária, sem que a EC nº 2, de 1992, o modificasse formal e substancialmente, regulando, em §§ o único artigo com que foi editada, constituindo-se numa verdadeira aberração legislativa.
Foi assim, também, com a de nº 3/93, regulamentando nos artigos 2º ao 5º, a matéria tratada materialmente por aquele espécie normativa, e com a de nº 17/97, nos arts. 3º ao 5o, nesta, inclusive, retroagindo os efeitos de sua aplicabilidade, ao tratar do Fundo Social de Emergência, a ser previsto na lei orçamentária da União.
Conclusão
Ora, essas “caudas” legislativas inseridas nas “emendas constitucionais”, sempre trarão sérios prejuízos aos administrados, assim como aos entes federativos da República, na medida em que estes arcarão com as despesas de um sistema imposto de fora para dentro.
Exemplo desse prejuízo é o que advirá com a aplicabilidade do disposto no art. 6º, da EC 20/98, com a fixação da alíquota de contribuição do Poder Público semelhante à da contribuição da iniciativa privada.
Assim, o lapidar ensinamento do mestre JOSÉ AFONSO DA SILVA (15) é no sentido de que:
“Toda modificação constitucional, feita com desrespeito do procedimento especial estabelecido (iniciativa, votação, quorum, etc.) ou de preceito que não possa ser objeto de emenda, padecerá de vício de inconstitucionalidade formal ou material, conforme o caso, e assim ficará sujeita ao controle de constitucionalidade pelo Judiciário, tal como se dá com as leis ordinárias.”
É de se entender aqui que os preceitos excluídos das modificações a serem processadas no texto constitucional, por intermédio de “emendas” não serão somente aqueles vedados pelo § 4º do art. 60, da al Carta Política, mas sim, também, toda matéria estranha à sede dessa produção legislativa, daí porque podemos concluir que toda emenda constitucional que inclua no seu conteúdo disposições de legislação infraconstitucional regulamentando o mérito do texto a ser modificado, padece da eiva de inconstitucionalidade material e formal. Material porque estabelece dispositivos regulamentadores não inseridos no texto constitucional; e formal porque trata de matéria regulamentadora cujo quorum não é o qualificado para ser tratado em sede de emenda constitucional, previsto constitucionalmente pelo constituinte originário.
Ora, se toda norma contida nos “direitos e garantias individuais” do Título II, que trata DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS da Carta Política de 88 (arts. 5º ao 17), está albergada pela sua intocabilidade via emenda constitucional – segundo previsibilidade do art. 60, § 4º, IV, do corpo permanente da Lei Fundamental – por que então o rabilongo art. 3º, assegurou o direito adquirido daqueles que já haviam completado o tempo necessário para aposentadoria, com base na legislação infraconstitucional anterior à edição do “emendão”, se este já está assegurado pelo disposto no art. 5º, XXXVI, da Constituição ?
Obviamente foi para dar a impressão, aos desavisados, de que as normas contidas no texto excedente às emendas propostas teriam força constitucional, quando, na realidade, não as têm.
Aliás, diga-se de passagem, que esse texto resultou de “emenda aglutinativa” aprovada pela Câmara dos Deputados e reafirmada pelo Senado da República, depois de ter sido rejeitada pela Câmara Popular.
Em seu voto, como Relator, na ADIn nº 466, o Ministro CELSO DE MELLO, assim deixou consignado:
“Emendas à Constituição – que não são normas constitucionais originárias – podem, assim, incidir, elas próprias, no vício da inconstitucionalidade, configurado pela inobservância de limitações jurídicas superiormente estabelecidas no texto constitucional por deliberação do órgão exercente das funções constituintes primárias ou originárias”.
Prelecionando acerca da observância do processo legislativo, MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (16) não descura a possibilidade do seu controle jurisdicional dizendo que “(…) A violação de preceito constitucional, mesmo de caráter estritamente formal, importa em inconstitucionalidade, e, portanto, seguindo a doutrina clássica, em nulidade do ato violador.”
Qualquer administrado, pessoa jurídica de direito público ou ente federativo, que se ache atingido, em seus direitos ou prerrogativas, pelas normas “caudalosas” contidas em emendas constitucionais, poderá recorrer ao Poder Judiciário para que seja restabelecido o seu direito, tentado subtrair por força da pior ditadura que pode existir, que é a ditadura do direito.
Os prepotentes e arbitrários, que se julgam acima da Constituição e das leis, pretendem escravizar o povo através da arma que o próprio povo lhes outorgou – que é o de legislar em seu benefício, sem quebrar a segurança jurídica. Quebrada a segurança jurídica, restará somente desestabilizar o Judiciário para que se termine com o último escudo contra os golpes que eles nos intentarem.
Notas
1. Daniel Coelho de Souza, Int. à Ciência do Direito, Saraiva, 5ª ed., 1988, p. 47.
2. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno, p. 60
3. Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª ed., 1998, Malheiros.
4. Ob. cit. p. 48.
5. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 32 (Ob. cit. nota de rodapé)
6. Ob. cit. p. 49.
7. Curso de Direito Constitucional, Forense Universitária, 1a ed., 1991.
8. Processos informais de mudança da constituição, Max Limonad, 1986.
9. Mutação constitucional, Saraiva, 1997.
10. Ob. cit., p. 115.
11. Ob. cit. p. 127.
12. Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 18a ed., 1997, p. 355.
13. Elementos de Direito Constitucional, RT, 7ª ed., p. 149.
14. Ob. cit. p. 126.
15. Ob. cit. p. 70.
16. Do Processo Legislativo, 3ª ed., Saraiva, 1995, p. 243.
*José Maria de S. Martinez
Advogado em Belém e técnico em assessoramento legislativo da Assembléia Legislativa do Estado do Pará