Empresa falida pode requerer continuação do negócio

J. A. Almeida Paiva*

O conceito de empresa no último século passou por diversos perfis, desde o patrimonial, em que a empresa é projetada como patrimônio negocial ao corporativo onde o trabalho é sujeito e não objeto da economia, com grande feição social,(I) segundo Alberto Asquin. (II). Ele via a empresa sob quatro perfis: subjetivo, funcional, patrimonial e corporativo.

Sylvio Marcondes, citado por Nelson Abrão, doutrina que “situa-se, pois, no começo do século XIX a concepção fundamental da empresa moderna, que haveria de progredir com o liberalismo econômico e cujas peculiaridades são assim caracterizadas por: distinção entre os possuidores dos fatores produtivos; antecipação sobre a procura do mercado; assunção dos riscos técnicos e econômicos; ser o intento do máximo ganho monetário, pela diferença entre o custo de produção e o preço de venda do bem ou serviço, realizado no quadro jurídico da propriedade privada e da liberdade de contratar, em função do mercado e dos respectivos preços”. (III)

Discutiu-se muito o problema da situação da empresa no contexto do Direito Comercial. Principalmente quando os efeitos da industrialização fizeram passar o capitalismo da fase de predominância comercial para a industrial.(IV) Questionaram o conteúdo econômico da empresa e sua atividade econômica organizada, entrando a discussão no campo metafísico do Direito a exigir explicitação fenomenológica pela ordem jurídica.

A propósito, Giorgio Del Vecchio conclui: “Nunca existiu, nem pode existir, uma fase da vida humana com uma ordem econômica sem uma correspondente ordem jurídica”.

A tendência predominante hoje, no que concerne à preservação da empresa contra os efeitos danosos que se irradiam a partir do momento em que se caracteriza o estado de crise financeira, está direcionada no sentido da preservação da empresa.

A falência não interessa nem ao falido, nem aos credores, nem à produção, nem aos consumidores, nem ao comércio, à indústria de uma maneira geral ou à própria sociedade. Por isso, surge, no dizer de Nelson Abrão “o caráter tipicamente de preservação da empresa”. Esse caráter é adotado pela lei inglesa de 1883 (art. 57); Código Comercial do Líbano (art. 528, alínea 2 e 529, segunda parte); Código Comercial do Chile (artigos 1.407 e ss); Código do Comércio de Honduras (artigos 1479, alínea 4); lei mexicana da falência e da moratória (art. 200-201); decreto brasileiro nº 7.661 (art. 74) e lei falimentar italiana (art. 90)”. (V)

Dentro deste contexto analisaremos aqui as possibilidades que o sistema falimentar coloca à disposição do falido para que possa continuar com sua atividade, paralisada pelo decreto de falência, mas consignamos que para que tal ocorra há necessidade de inexistir nos autos qualquer indício de fraude por parte do falido.

A primeira hipótese vem normada no artigo 74 e seu parágrafo primeiro: “O falido pode requerer a continuação do seu negócio; ouvidos o síndico e o representante do Ministério Público sobre a conveniência do pedido, o juiz, se deferir, nomeará para geri-lo, pessoa idônea, proposta pelo síndico. Parágrafo 1º – A continuação do negócio, salvo este excepcional, a critério do juiz, somente pode ser deferida após o término da arrecadação e juntada dos inventários aos autos da falência”.

A propósito, comenta Nelson Nery Júnior: “Após a declaração da falência pode o falido voltar a comerciar, legalmente, com autorização do juízo, ou clandestinamente. Como não há na nossa sistemática legal a possibilidade de falências paralelas, simultâneas ou sucessivas, se o falido infringir a lei e tornar a comerciar aplica-se-lhe a LF 23 e 39. Se o processo de falência já foi encerrado, a nova falência abrange antigos e novos credores (Valverde, Coment., v. I, p. 262). A continuação do negócio legalmente autorizada (LF 74) não se impõe aos credores, pela fiscalização a que se submete, o risco da atividade comercial clandestina do falido.” (VI)

Comentando a possibilidade do prosseguimento do negócio do falido, Rubens Requião esclarece que “em muitos casos, dadas as peculiaridades do negócio do falido, a sua completa paralisação importa em maiores prejuízos para ao credores”.(VII)

Principalmente, quando a falência afeta a empresa quando está operando em normal atividade, situação em que “a lei, por isso, admite a continuação do negócio do falido, consideradas as circunstâncias e admitida sua conveniência, pelo juiz”. (VIII)

Há críticas de certos doutrinadores a este expediente face às dificuldades que serão enfrentadas pela empresa falida, principalmente na obtenção de crédito, com riscos capazes de comprometer ainda mais o ativo.

Mas a lei dá ao falido a possibilidade de requerer a continuação do seu negócio, desde que preenchidos os requisitos legais, com a concordância do síndico, do MP e deferimento pelo Juiz, que nomeará pessoa idônea para gerir o negócio do falido.

Outra alternativa que suspende os efeitos da falência, ainda que sob certas condições, está normada no artigo 177 do diploma falimentar. O artigo admite que o falido pode requerer a concordata suspensiva, propondo pagar aos credores um mínimo de 35% de seus créditos, se for o pagamento à vista, ou um mínimo de 50% se a prazo, não podendo exceder dois anos.

O pedido deverá ser feito pelo falido, atendendo as disposições dos artigos 111 a 113, nos 5 (cinco) dias seguintes ao do vencimento do prazo para a entrega em cartório do relatório do síndico, conforme dispõem os artigos 178 c/c 63, XIX da LF.

Isto quer dizer que depois de apresentado o quadro geral dos credores (LF art. 96, parágrafo 2º) e do despacho que decidir o inquérito judicial (LF art. 109 e parágrafo 2º), o síndico deverá apresentar em 5 (cinco) dias um relatório circunstanciado com os requisitos do artigo 63, XIX da LF. Este prazo de 5 (cinco) dias conta-se da ocorrência que por último se verificar, dentre as duas acima indicadas.

O assunto é melhor explicitado por Walter T. Álvares, quando doutrina que “este pedido, que pode ser feito em qualquer ocasião, tem, no entanto, um momento adequado para ser realizado, e é o seguinte:

a) apresenta o síndico em cartório o seu relatório previsto no artigo 63, nº XIX, isto é, aquele relatório posterior à formação do quadro geral dos credores e no qual o síndico exporá os atos de administração da massa, o passivo e o ativo, as ações em que a mesma for interessada e os atos suscetíveis de revogação;

b) nos cinco dias seguintes ao vencimento do prazo que tinha o síndico para apresentar o seu relatório, deve o falido requerer a concordata”. (IX)

Em resumo, “o falido pode, antes do aviso de liquidação, requerer a sua concordata suspensiva, se não existirem os impedimentos do art. 140. E mesmo depois do aviso, e já com a liquidação em curso, igual pedido pode ser feito, se existirem as condições adequadas, isto é, não se constatarem os mencionados impedimentos”. (X)

Uma terceira hipótese que possibilita a continuação do negócio já falido, está prevista no artigo 123 e seu parágrafo 5º, da LF. O parágrafo permite que credores que representem dois terços dos créditos podem organizar uma sociedade para continuação do negócio do falido, ou autorizar o síndico a ceder o ativo a terceiro.

Nesta alternativa, os dissidentes deverão receber seus créditos, em dinheiro, da maioria que se organizar em sociedade para continuação do negócio do falido, na base do preço da avaliação dos bens deduzidas as importâncias correspondentes aos encargos e dívidas da massa” (LF, artigo 123, parágrafo 5º).

Decretada a falência e requerida a continuidade do negócio, quer o objetivo seja evitar a paralisação, quer a interrupção da empresa, se comprovado o interesse neste sentido e atendidas as condições autorizadoras, tem-se entendido com endosso da jurisprudência, que o deferimento do pedido do falido é viável, impondo-se a nomeação de pessoa idônea, proposta pelo síndico, para gerir a continuação do negócio.

Oportuno concluir com palavras abalizadas de Nelson Abrão quando doutrina que “aproxima-se remédio de largo aspecto que tem o condão de separar o joio do trigo, numa radical mudança d’água para o vinho, na exata quantificação dos aspectos negativos e nos vetores que levarão a empresa ao encontro do seu objeto social. Bem de ver, pois, na linha de raciocínio pontuada que a recuperação é providência primeira prejudicial, ao contrário da continuação do negócio que deixa entreaberta a quebra e a obediência à forma que atenda aos requisitos procurando mostrar a capacidade de auto-reorganização”. (XI)

O sistema jurídico preocupa-se com a recuperação da empresa em momento de crise financeira, principalmente quando há real possibilidade de levantar-se e voltar a atuar no mercado. Basta que os seus administradores tenham agido com comprovada honestidade e a vulnerabilidade de sua atividade econômica tenha sido um incidente de percurso, sem máculas ou mágicas de sobrevivência na administração, despida de fraudes.

A lei oferece uma nova oportunidade para o empresário correto, que teve a infelicidade de deparar-se com um descompasso em suas contas, poder voltar a atuar no mercado, ainda que enfrentando novos e difíceis obstáculos.

Notas de rodapé

I- Cf. Louis Joseph Lebret, Guide du Militant, 2ª vol., Paris, 1946, p. 39 e ss; Hamel et Lagarde, Traité de Droit Commercial, vol. 1, ns. 207 e ss,

II- Profili dell’Impresa, in Rivista Del Diritto Commerciale, Milão, 1943, p.3

III- A Limitação da Responsabilidade do Comerciante Individual, São Paulo, 1956, p. 118; sic Nelson Abrão, a Continuação do Negócio na Falência, 2ª ed. EUD, 1998, p.18/19

IV- Apud Nelson Abrão, ob. cit. p. 24.

I- dem, ob.ccit. p. 88.

VI- Nelson Nery Junior, CPC Comentado, 4ª ed. RT, nota nº 1, ao art. 74, p. 2141.

VII- Rubens Requião, Curso de Direito Falimentar, 1º vol., p. 233, nº 211, 13ª ed. Saraiva.

VIII- Idem.

IX – Walter T. Álvares, Direito Falimentar, 6ª ed. Sugestões Literárias, nº 657, p. 517.

X Idem.

XI- Nelson Abrão, A Continuação do Negócio na Falência, 2ª EUD, 1998, p. 168.

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J. A. Almeida Paiva é advogado em São Paulo e Professor de Processo Civil

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