João Celso Neto
advogado em Brasília (DF)
“A rigidez das aulas teóricas e no estilo em que são ministradas não conseguem fazer chegar ao aluno o ensino necessário; o estilo livre de “conversas de bar”, não impondo normas castradoras, tem melhor efeito na compreensão de idéias e sua utilização. (Mesa de Bar, de Hugo Thamir Rodrigues)
1.Preliminares
O ensino jurídico parece estar em crise em praticamente todas as faculdades brasileiras, e desde a criação dos primeiros cursos jurídicos em nosso País (11 de agosto de 1827, em São Paulo e Olinda). Muito se tem escrito e discutido sobre as causa dessa situação, e que medidas deveriam ser adotadas, ao reconhecer a degradação continuada e crescente de aspecto tão importante na formação de uma classe de profissionais cujo papel na sociedade continua sendo relevante. Não fosse assim, por que a Constituição Federal destinaria um artigo, para destacar o papel do advogado como “indispensável à administração da justiça”, o que não foi dedicado a outras profissões de realce, como médicos, engenheiros ou professores.
No Brasil, desde 1827, a metodologia de ensino no estilo aula-conferência pouco mudou. Em 1955, pode-se dizer que houve uma tentativa de restauração da supremacia da cultura jurídica e um ensino que tivesse o desenvolvimento, treinamento e efetivo desempenho do raciocínio jurídico. Porém o ensino do direito sofreu poucas alterações. Há a continuidade das aulas-conferências e a desvinculação do ensino à realidade social brasileira.
O perfil padrão do aluno é acomodado, e sua escolha pelo Direito varia com preponderante vantagem por interesses pessoais (a maioria por um futuro financeiro e econômico mais promissor) que não a “paixão” e o gosto pelo Direito em si.
Tenta-se utilizar a instância jurídica para solucionar crises globalizadas. No entanto, o despreparo dos advogados, acostumados e limitados às atividades forenses, para a mutação na realidade social, fruto de cursos de Direito que não acompanharam a evolução, longe de ajudar na solução das crises, a ampliam. As soluções não podem ser reduzidas à simples instância jurídica, não serão encontradas isoladamente, e o ensino atual do Direito reflete tanto a sua crise quanto a do sistema sócio-político-econômico.
2.As causas e as conseqüências
Uma das causas remotas da situação a que chegou o ensino jurídico no Brasil deve-se, em grande parte, à inexistência da pesquisa e da extensão universitária nos cursos jurídicos. “Há a necessidade de tomar-se consciência da indissociabilidade desses elementos. Sem pesquisa não há novo conhecimento a transmitir. Sem extensão não há o cumprimento da função social do conhecimento produzido.” (RODRIGUES, Horácio W., Ensino jurídico e direito alternativo, 1ª. Edição, Editora Acadêmica, São Paulo – SP, 1993, p. 82).
Ensina-se um Direito errado? Todo o nosso ensino jurídico, tradicionalmente, está alicerçado no jusnaturalismo e no positivismo e “ambos são insuficientes para embasar uma verdadeira práxis jurídica em qualquer de suas variadas formas. A complexidade social contemporânea (…..) não pode ser explicada e muito menos solucionada apenas por normas estatais ou ideais transcendentes” (RODRIGUES, Horácio W., ibidem, p. 121). Dentro desses parâmetros clássicos, o Direito não encontra respostas. A ciência jurídica está, assim, dois séculos atrasada com relação às demais ciências. Não é de hoje que jurisfilósofos brasileiros contemporâneos trazem suas ricas contribuições para a evolução do nosso Direito. Pontes de Miranda, Miguel Reale, Roberto Lyra Filho e, mais recentemente, Tércio Sampaio Ferraz Jr. são alguns dos que escreveram e escrevem sobre a concepção do Direito e da Ciência Jurídica; expondo como vêem o objeto desta; discutindo e propondo métodos que devem / podem ser utilizados na análise e no estudo do Direito; e questionando que espécie de relação se estabelece entre o sujeito cognoscente e o objeto do conhecimento no estudo do Direito.
Surgem movimentos críticos do Direito, com diversas teorias, que podem ser agrupados em dois blocos: um de atividades teóricas e outro de práticas. No entanto, a crítica em si consegue diagnosticar o problema, mas não tem conseguido apontar soluções efetivas. Diversos movimentos críticos contemporâneos estão surgindo, em nosso país, e também no exterior, visando à revisão e reestruturação do ensino jurídico. Deles, os mais conhecidos são a Association Critique du Droit (francesa), a NAIR (Nova Escola Jurídica Brasileira) fundada por Roberto Lyra Filho e a ALMED (Associação Latino-americana de Metodologia do Ensino do Direito) fundada na Argentina, embora contando com a participação de professores universitários brasileiros também.
Uma das “saídas” vez por outra recomendada é o chamado Direito Alternativo. Em que consiste? No Direito alternativo, o jurista deve utilizar-se das lacunas, imprecisões, incoerências, contradições, vaguezas e ambigüidades do direito positivo vigente em favor da classe trabalhadora, protegendo e consagrando práticas emancipadoras. Trata-se de movimento teórico-prático originário da Itália, na década de 60, formado principalmente por magistrados, que nega que as tarefas de interpretação e aplicação do Direito seja algo meramente científico, estratificado. O crescente reconhecimento da importância e do significado dessas novas idéias, estendeu-se pela Europa, influenciando magistrados e juristas espanhóis e alemães, antes de vir influenciar juristas e (uns poucos) magistrados brasileiros. Para esse movimento, é fundamental reconhecer que o Direito exerce uma função política, pois, intrinsecamente, serve como instrumento de dominação de classe. Nega, portanto, a apoliticidade, a imparcialidade e a independência do Órgão julgador e, conseqüentemente, que o Juiz seja como que a sede dos interesses gerais e o depositário do bem comum. Aceita o Princípio da Legalidade, desde que o direito positivo seja aplicado no sentido de propiciar uma prática emancipadora, voltada aos segmentos sociais menos favorecidos. Tem como finalidade a luta pela ascensão do pobre; seu suporte é a legitimidade (não a legalidade), um conjunto de direitos conquistados historicamente nas lutas sociais, mesmo que sonegados pela legalidade momentânea. Mais que uma revolução, almeja a evolução do Direito, por meio de interpretações mais progressistas e consentâneas com o mundo e a sociedade deste quase século XXI. “A revolução verdadeira é uma construção constante.”
3.A crise e sua desejada solução
A crise, portanto, é antiga, aparentemente de difícil solução, por faltar, talvez e principalmente, vontade de mudar.
O histórico da nossa educação jurídica, basicamente resumido na evolução verificada desde o primeiro currículo (no Império) – passando pela reforma curricular primeira da República (1895), pela reforma do “Chico Ciência” (1931) e pela de 1962, até chegar à Resolução nº. 3, de 1972, do Conselho Federal de Educação -, longe está de satisfazer às reais necessidades, notadamente por ser uniforme, dogmática e unidisciplinar, enquanto nossa sociedade mudou muito mais, exigindo uma adequação do ensino. Entre os críticos mais ácidos, não falta quem considere haver uma deformação jurídica dos jovens que anseiem por se tornarem operadores do Direito, em qualquer de suas áreas de atuação.
Ainda segundo aquele autor anteriormente citado, contribui para essa situação vivenciada “a disfunção existente entre o seu produto final e as necessidades da sociedade é um dos elementos centrais que gera a contemporânea falta de legitimidade dos operadores jurídicos”, referindo-se ao ensino do Direito. As Escolas de Direito estariam pecando ao desconhecer as mudanças sociais ocorridas, exigindo uma multiplicidade de profissões jurídicas, constituindo, como que, “sistemas que se isolam do meio ambiente”. A sustentação da tese parte de uma constatação feita por ele: os cursos de Direito não formam apenas Advogados (aqueles que vão exercer a profissão, após o registro na seccional da OAB de sua área principal de atuação futura). “A maioria dos bacharéis de Direito nunca irá exercer essa profissão liberal. (…..) uma boa parte daqueles que batem às portas dos cursos jurídicos estão apenas em busca do diploma que lhes proporcionará realizar uma série de concursos públicos para cargos que se as vezes não são tão bem remunerados, possuem ainda, pelo menos um status social que a figura do advogado já perdeu. São os concursos para a magistratura e o ministério público. A esses se somam outros talvez não tão bem cotados socialmente, mas com vantagens econômicas” (p. 147).
O exercício da profissão de advogado não traz mais o prestígio social de há algumas décadas, conquanto a obtenção do diploma de Bacharel em Direito continue resultando em reais probabilidades de ascensão social. E servindo para a postulação de cargos públicos daqueles que exigem como requisito um diploma de nível superior, qualquer que seja ele.
Aliás, a crise começa muito antes: no próprio ensino fundamental de 1º. e de 2º. Graus, cuja degradação também não pode deixar de ser denunciada. Nos últimos 30 ou 35 anos, com os vestibulares unificados e as provas tipo múltipla escolha e similares, que permitem a correção e classificação via computador, muito pouca importância o vestibular passou a ter como forma de seleção e melhoria da qualidade do profissional de 3º. grau, que seria o argumento dos defensores dos Exames de Ordem da OAB para, com ele, aumentar a qualidade do ensino do Direito. O vestibular é apenas e tão-somente uma forma a mais de elitizar a educação, tal como, no Império, os alunos de Direito provinham das classes abastadas.
Não adianta mais que alguém vocacionado para o Direito queira se preparar desde cedo, no sistema de ensino brasileiro, para chegar minimamente capacitado à apreensão (no sentido de entender, compreender) dos conhecimentos que pode, ou deveria, acumular em seus estudos acadêmicos. Se quiser fazê-lo, terá que se tornar um autodidata, uma vez que as escolas que estão à sua disposição, praticamente sem exceção, estão preocupadas em alcançar renome e reconhecimento pelas estatísticas de aprovação. Sem falar nos malfadados cursinhos, verdadeiras máquinas de aprovar, ensinando tão-somente aquilo que cai nas provas.
Outras crises correlatas sempre lembradas e relacionadas são a do mercado de trabalho para o Advogado, a da identidade e legitimidade do Poder Judiciário, a do modelo econômico capitalista e da legitimação deste. Contudo, a discussão não pode deixar de estar centrada na má qualidade e na inadequação dos currículos universitários, na necessidade de urgentes e profundas reformas, malgrado umas poucas Universidades gozarem de melhor conceito, resumidas nas crises curriculares, didático-pedagógica, administrativa e estrutural (a dos paradigmas político-ideológico e epistemológico).
Em meio a isso tudo, é possível questionar a forma de transmissão do conhecimento jurídico, nas faculdades de Direito, redefinindo o próprio objetivo da educação jurídica: repensando as aulas-conferências, investindo mais nas habilitações específicas por meio de extensões do programa (em vez de, simplesmente, considerar o currículo mínimo de que fala a Resolução nº. 3/72 do CFE como se fora o currículo pleno, ou por si só, bastante e suficiente), retomando os estágios como forma de complementar a formação acadêmica e (por que não?) pensar na idéia de implantar o instituto da residência jurídica.
Parece, mais que tudo, inaceitável que a formação de futuros advogados, e outros operadores da Justiça, se faça com base em códigos comentados, limitando (praticamente inibindo) o raciocínio do aluno, que não aprende os pressupostos do Direito ou da lei, mas aquilo que está em vigor, na jurisprudência e na doutrina. Com base neles, ensina-se o momento, mas não se estimula o uso do pensamento, do questionamento, para a possível inovação doutrinária causa primordial da evolução da Ciência Jurídica, sem o que nada se acrescenta ou se constrói. Contribui-se, isto sim, para a potencial e indesejável estagnação do Direito pátrio.
Outra constatação evidente, posto que não se lhe costume dar o merecido comentário crítico, é a deficiência do material didático a que recorrem os alunos, e com o qual se satisfazem os professores (caso contrário, reprovariam a imensa maioria dos alunos). Os ditos livros didáticos pouco ensinam. Quanto menos estimulem o raciocínio e quanto mais dêem as receitas de bolo, mais aceitos se tornam e maior sua vendagem e popularidade. Restringem-se, com raríssimas exceções, a repetir o teor da legislação, que supostamente vão ensinar, com palavras ligeiramente diferentes, nada esclarecendo no que se refira a temas controversos, polêmicos, em que a jurisprudência oscile e a doutrina divirja. Por falar em doutrina, que fim levaram nossos doutrinadores?
No tocante à situação do corpo docente, “o modo pelo qual o professor se integra no ensino tem as seguintes características: leciona em geral uma só disciplina, não realiza trabalhos de pesquisa, não orienta individualmente os alunos, não é portador de uma habilitação didática específica, não participa da vida comunitária da faculdade, exerce outra atividade que é a principal, e a remuneração que percebe como professor é inexpressiva para a composição de sua renda mensal” (FALCÃO, Joaquim de Arruda & MIRALLES, Thereza, Atitudes de professores e alunos do Rio de Janeiro e São Paulo em face do ensino jurídico, apud RODRIGUES Horácio W., op. cit., p. 75).
4.Conclusão
O busílis seria mesmo o tripé ensino – pesquisa – extensão? É verdadeiramente possível aprender o Direito compulsando o que dizem as obras didáticas, se estas foram escritas pelos “servidores do status quo” e se abordam os temas superficialmente (se não, não vendem), transformando nossas Faculdades de Direito em novos cursinhos, aquilo que estudantes de engenharia da PUC-Rio, em trote de gosto duvidoso, nos anos 60, já chamavam máquinas de formar advogados?
O exercício da advocacia vem se tornando uma atividade aética, a valer o resultado positivo nos contraditórios e acordos. O advogado se desloca dos interesses de classe e das questões político-econômicas. O choque da realidade da profissão tende a criar crises de identidade e legitimidade. O interessante, porém, é que tais crises não atingem somente a advocacia, mas também o poder judiciário e o próprio ordenamento jurídico. Fruto de despreparo no ensino jurídico ministrado em contraposição à realidade vivida, só será possível amenizar e, depois, acabar com tais crises mediante uma ampla reformulação nesse ensino.
No entanto, será que meras reformas curriculares solucionarão problemas estruturais? A transformação do estágio de prática forense e organização judiciária em residência jurídica, que surge como uma possibilidade a ser considerada, como necessidade de contato do aluno com situações concretas a resolver, traria melhores resultados?.
A remuneração, algumas vezes inexpressiva, recebida pelo professor de Direito, a não exigência de formação jurídica ou didática especial, a não realização de trabalhos de pesquisa, não orientação individual ao aluno, aliados ao fato de o professor exercer outra atividade, que é a sua principal, são características do corpo docente na maioria de nossas Escolas de Direito, que nem os sucessivos Provões, e os resultados classificatórios das instituições de ensino (A, B, C, D, E), lograram modificar. É fácil, ou possível, mudar isso?
São idéias expostas à discussão daqueles que se preocupem com a questão do ensino jurídico no Brasil, cuja complexidade é conhecida e cujo tratamento não pode admitir simplismos.