Autor: Matheus George Gouvêa da Nóbrega (*)
Até a primeira metade do século XX, boa parte dos Estados nacionais rechaçava o controle de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário. No geral, a jurisdição constitucional era considerada extremamente antidemocrática e, especialmente na Europa, contrária à noção predominante de supremacia do parlamento. Após as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial, sob a égide de governos totalitários que contaram com amplo apoio popular, é que se consolidou a necessidade da criação de sistemas jurídicos aptos a garantir a proteção de minorias contra as maiorias de ocasião. Tais construções político-institucionais deveriam privilegiar tanto o ideal democrático como a proteção de direitos fundamentais, o que favoreceu a criação de órgãos judiciais com a competência para declarar a inconstitucionalidade de leis.
O processo relatado também apresentou outras facetas, como a progressiva centralidade que as cartas constitucionais adquiriram nos sistemas jurídicos, passando a contar com força normativa própria e com princípios que irradiam sua influência por todo o ordenamento. De todo modo, esse desencadeamento histórico disseminou, na maioria das estruturas jurídicas atuais, um modelo que conjuga duas formulações em constante colisão: o constitucionalismo, movimento de limitação do poder estatal e determinação de direitos individuais, nascido com as revoluções liberais francesa e americana no século XVIII; e a democracia, regime de tomada de decisões pelas maiorias numéricas, desenvolvido na Grécia Antiga e fortalecido no início do século XX, com a extensão do direito de participação política às mulheres e às classes sociais menos favorecidas. Tal modelo, conhecido como constitucionalismo democrático, possui tensões intrínsecas ao seu funcionamento. Se cabe ao parlamento, por maioria, deliberar sobre as questões essenciais da nação, lhe é defeso legislar em dissonância com a Constituição e com os direitos das minorias. Assim, em algumas situações, abre-se a possibilidade de uma corte não submetida ao escrutínio das urnas invalidar leis editadas e sancionadas pelos poderes políticos por excelência, nesta ordem, o Legislativo e o Executivo.
Essa conjuntura acarreta a denominada “dificuldade contramajoritária”, fundamento principal das posições doutrinárias que ainda rejeitam[1] o controle judicial de constitucionalidade, especialmente no cenário americano, onde inexiste permissão constitucional expressa para a prática. Todavia, não se pode ignorar que esse mecanismo é hoje adotado na maioria absoluta dos países democráticos. Mesmo o Canadá e o Reino Unido, historicamente avessos ao instituto, admitem atualmente variações do chamado “controle fraco de constitucionalidade”. No Canadá, as decisões da Suprema Corte sobre a inconstitucionalidade de leis geram efeitos imediatos, mas são superáveis por eventual maioria legislativa ordinária, dessa vez vinculando o Poder Judiciário. Já no Reino Unido, as decisões de incompatibilidade com o Human Right Act dependem da aprovação do parlamento para se tornarem efetivas, mas, devido à respeitabilidade da incipiente Suprema Corte perante a opinião pública, essas confirmações têm ocorrido. Por todo o exposto, defendo que o cerne sobre a discussão acerca do judicial review, especialmente no contexto brasileiro, não é mais a sua viabilidade — prevista pelo constituinte originário de 1988 —, mas como essa prerrogativa deve ser exercida e quais são os seus limites. É o que passo a perquirir.
Como é cediço, difundiu-se no Direito pátrio a compreensão de que haveria uma supremacia judicial na interpretação da Carta Política, em virtude de o artigo 102, caput, da Lei Fundamental atribuir ao STF o status de guardião das suas normas. Contudo, embora o Supremo — por razões de segurança jurídica — detenha a prerrogativa de decidir por último nos casos específicos sob sua jurisdição, suas deliberações não necessariamente encerram a discussão constitucional e tampouco dispõem de legitimidade per se. Com efeito, a única supremacia admitida no Estado Democrático de Direito é a da Constituição, que obriga igualmente a todos os Poderes da República e aos cidadãos.
A respeito do caráter não definitivo das manifestações do STF na interpretação constitucional, vale relembrar que os julgamentos proferidos nas ações de controle abstrato — ADI, ADC, ADO e ADPF — jamais vinculam o Poder Legislativo, contra o qual a autoridade dessas manifestações perde seu caráter erga omnes (artigo 102, parágrafo 2°). Assim, afigura-se juridicamente possível ao Congresso Nacional editar leis com conteúdo idêntico ou semelhante a outros diplomas já reconhecidos inconstitucionais pelo Supremo. Tais normas gozam de presunção de constitucionalidade como quaisquer outras, devendo eventual apreciação judicial de sua validade considerar as possíveis mudanças fáticas e jurídicas ocorridas desde o julgamento anterior.
Ademais, a resposta legislativa pode vir igualmente através de mudanças no texto constitucional, situação em que o próprio parâmetro de controle é alterado pela maioria qualificada exigida à sua modificação (3/5 dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em dois turnos de votação). Embora o Supremo reconheça-se competente para extirpar do ordenamento jurídico emendas à Constituição tendentes a abolir as cláusulas pétreas dispostas na Carta Magna, a análise judicial de quais normas estariam contidas no rol do artigo 60, parágrafo 4º, da CF reclama uma interpretação restritiva — ou pelo menos literal — de modo a evitar um engessamento constitucional capaz de subtrair das gerações posteriores ao constituinte originário a mínima capacidade de autodeterminação. A valer, as duas hipóteses referidas inserem-se na ampla liberdade de conformação conferida ao Poder Legislativo, cuja função típica de legislar engloba a eventual superação das decisões proferidas no judicial review.
Por outro lado, as deliberações do STF não possuem legitimidade per se. É dizer: conquanto haja permissão formal expressa para a corte máxima pronunciar-se sobre qualquer embate constitucional que lhe seja processualmente submetido, as suas decisões apenas se revelam legítimas quando comprovam, com argumentação devidamente fundamentada, a(s) incompatibilidade(s) existente(s) entre a norma questionada e a Constituição. Deveras, em Estados Democráticos há discussões controversas que geram desacordos morais razoáveis: duas pessoas de boa-fé podem divergir razoavelmente acerca de assuntos como a permissão da eutanásia, a legalização da maconha ou a liberação dos jogos de azar. Tais temas têm em comum a ausência de disciplina própria na nossa Constituição. Nesses casos, permitir que seis ministros desafiem a política majoritária consubstanciada em lei, utilizando-se de princípios com pouca densidade normativa como o da proporcionalidade, ou cuja abrangência prima facieseja demasiadamente ampla como o da dignidade da pessoa humana, soa profundamente ilegítimo. Tamanha liberdade esvaziaria a esfera de atuação do parlamento, desestimulando o papel cívico de reivindicação perante os mandatários da República. E aqui não cabe invocar a função contramajoritária do STF, que jamais pode ser desempenhada para substituir o espaço da política diante de duas opções constitucionalmente permitidas.
Há ainda determinados assuntos sobre os quais o Judiciário, pela sua própria natureza, carece de conhecimentos específicos para enfrentar. Presume-se que ministros da suprema corte possuam notável saber jurídico, mas não lhe são exigidas, por exemplo, compreensões aprofundadas sobre a regulação da economia ou do setor de aviação civil. Para disciplinar esses temas, há instituições com maior expertise, como o Banco Central e as agências reguladoras. Por isso é que, ao exercer a jurisdição constitucional nos casos que demandem conhecimento técnico, o STF deve considerar a questão das capacidades institucionais, aqui entendida como as “distintas habilidades e limitações”[2] conferidas a cada ente na sua atuação prática, inclusive ao próprio tribunal. Desse modo, longe de centralizar a discussão, ao Supremo incumbe trazer as instituições especializas para o debate e, salvo ameaças cabais à ordem constitucional, priorizar posturas de autocontenção judicial.
Por fim, destaco um argumento de ordem prática contra o mencionado conceito de supremacia judicial: enquanto o parlamento faz reformas completas nas diversas legislações, procedendo ao exame global dos diferentes âmbitos discutidos, as decisões das cortes constitucionais possuem maior propensão a gerar incongruências normativas, porquanto esses órgãos dispõem de faculdades limitadas de ação, tais como a pontualidade das suas intervenções e a vinculação objetiva ao pedido. Essa tendência se potencializa na suprema corte brasileira, cujo modelo de julgamento “seriatim”, composto da sobreposição dos votos individuais de cada membro do colegiado, não raro produz resultados ambíguos. Todos esses fatores elencados contribuem para a propagação de efeitos sistêmicos indesejados resultantes das deliberações do Supremo.
Aqui impõe-se um esclarecimento: as razões expostas não objetivam desqualificar a atuação da corte máxima, mas demonstrar que uma jurisdição constitucional monopolizadora suscita diversas disfunções. Assim, deve-se preferir soluções que propiciem diálogos institucionais e sociais permanentes. Em relação ao povo, destinatário final dos comandos impostos pela Constituição, importa democratizar suas vias de acesso ao processo objetivo de controle. Nesse quesito, a não admissão de amicus curiae, pelo ministro pelator, apenas por vislumbrar uma divergência de posição sobre a questão de fundo é digna de censura, por impedir a pluralização do debate. Há de se revisar, também, as limitações jurisprudenciais quanto aos legitimados ativos para a propositura das ações constitucionais, como a exigência de que as entidades de classe pertençam a categorias econômicas ou profissionais, excluindo do debate setores importantes da sociedade civil organizada. Já em relação às legislações aprovadas com a participação dos cidadãos, como as que decorrem de referendo e plebiscito, ou ainda as oriundas de iniciativa popular e das comissões de participação legislativas, entendo que o Supremo dispõe de um ônus argumentativo maior na análise de possíveis inconstitucionalidades, em virtude de sua redobrada legitimidade democrática.
Impende ainda alertar para decisões judiciais expressamente contrárias à Carta Magna. É preocupante a narrativa — já adotada na ADI 3.470[3] (que trata da comercialização do amianto) — de que o artigo 52, X, da CF sofreu mutação constitucional e o Senado Federal passou a ser responsável apenas por tornar públicas as decisões do Supremo no controle difuso. O problema, esclareço, não reside no mérito da questão debatida, mas na possibilidade de uma instituição concebida pela própria Constituição decidir em desacordo com seu conteúdo expresso. Também injustificada é a superveniência, em sede de controle abstrato, de decisões manipulativas que adicionam palavras ou modificam expressamente dispositivos legais. Agindo assim, o STF atua como legislador positivo fora da única via constitucionalmente adequada para tanto: a edição de súmulas vinculantes por decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional (artigo 103-A).
Além de todo o exposto, apresento um standard geral para o exercício do judicial review pelo STF. John Hart Ely, na sua obra Democracy and Distrust[4], atribui à suprema corte a tarefa de desobstruir os canais de participação política, agindo para aperfeiçoar o processo de tomada de decisões democráticas pelos órgãos competentes. Considerando que a nossa lei fundamental é analítica e apresenta diversos enunciados com textura aberta e sem delimitação semântica, advogo que, na falta de violação categórica ao texto constitucional, a atuação geral do STF deve, como sustenta o citado doutrinador, respaldar as escolhas dos órgãos politicamente responsáveis quando realizadas através dos procedimentos apropriados. Na minha concepção, portanto, essa função desobstrutiva envolveria o combate às inconstitucionalidades formais na elaboração das leis e também a promoção da regularidade do jogo político no seu aspecto qualitativo. Como exemplo de uma atuação nesse sentido, temos o estabelecimento dos ritos do processo de impeachment do presidente da República (ADPF 378), sem o Supremo adentrar no mérito da acusação posta.
Oportuno, aqui, uma advertência final. Os standards propostos não devem ser confundidos com a defesa de um comportamento do STF limitado a visões procedimentais. Com efeito, nos casos que envolvam direitos fundamentais, proteção de minorias e o resguardo das normas elementares de organização política, estaria o tribunal legitimado a agir substancialmente com um maior grau de autonomia interpretativa. Essas três hipóteses sintetizam os valores estruturantes do contexto histórico que inaugura a ordem constitucional e, portanto, ensejam uma atuação mais proativa da corte. Com efeito, o desempenho do Supremo nessas áreas vem gerando bons resultados, tais como o reconhecimento da união estável homoafetiva, a permissão de biografias não autorizadas e a legitimação das ações afirmativas.
É preciso, assim, separar o “joio” do “trigo” em matéria constitucional, conciliando uma eficaz proteção de direitos com a necessária abertura à construção coletiva do melhor sentido das normas constitucionais. Assim, na ausência de inconstitucionalidades flagrantes ou de alguma das três hipóteses supracitadas, o Supremo deve priorizar uma postura mais deferente aos poderes eleitos, que também interpretam autenticamente o texto constitucional e, ademais, gozam da soberania popular conferida aos seus representantes.
É natural que em contextos institucionais marcados pela corrupção generalizada e pelo alto índice de rejeição dos parlamentares, a jurisdição constitucional surja como alternativa moralizadora para a alteração dos locus tradicionais de decisão. Não se pode olvidar, todavia, que a cúpula do Judiciário é fruto desse mesmo sistema político e, em maior ou menor grau, também está sujeita às suas ingerências. Ainda há muito a ser conquistado, e o Poder Judiciário não pode ser o único farol a “iluminar” nosso trajeto civilizatório.
Autor: Matheus George Gouvêa da Nóbrega é graduando do curso de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Foi estagiário do Supremo Tribunal Federal no gabinete do ministro Luiz Fux e da Procuradoria-Geral da República no gabinete do subprocurador-geral da República Nicolao Dino.