Enunciado 421 do STJ precisa ser revisitado e modificado

Autor: Vitor Eduardo Tavares de Oliveira (*)

 

A Defensoria Pública, exercendo sua função institucional prevista no artigo 4º, XXI, da Lei Complementar 80/1994[1], deve receber verbas honorárias sucumbenciais decorrentes de sua atuação: “reconhece-se o direito ao recebimento dos honorários advocatícios se a atuação se dá em face de ente federativo diverso, como, por exemplo, quando a Defensoria Pública Estadual atua contra Município.”[2]

O enunciado sumular 412 do Superior Tribunal de Justiça dispõe: “os honorários advocatícios não são devidos à Defensoria Pública quando ela atua contra pessoa jurídica de direito público à qual pertença”. Todavia, os Estados e a União também devem arcar com os honorários de sucumbência, tendo em vista a autonomia administrativa, financeira e orçamentária da instituição Defensoria Pública, assegurada pela Emenda Constitucional 45/2004 (Defensorias Públicas Estaduais) e 74/2013 (Defensoria Pública da União e Defensoria Pública do Distrito Federal) e diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal.

Ademais, não há que se falar em confusão patrimonial quando a Defensoria Pública do Estado requer a condenação em honorários do Estado ou a Defensoria Pública Federal requer honorários da União, pois o patrimônio e o orçamento da Defensoria Pública é autônomo e não se comunica com a administração direta ou inderita dos entes estatais referidos.

Nesse sentido, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região entendeu que a condenação em honorários advocatícios em prol do Fundo de Aparelhamento da Defensoria Pública pode incidir sobre a mesma pessoa jurídica de direito público que integra a mesma Fazenda Pública:

BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. PESSOA INCAPACITADA DE PROVER A PRÓPRIA MANUTENÇÃO OU TÊ-LA PROVIDA DE OUTRA FORMA. COMPROVAÇÃO. CONCESSÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS. DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. CABIMENTO. 1. Procede o pedido de concessão do benefício assistencial previsto no art. 203, V da CF/88 quando atendidos os requisitos previstos na Lei nº 8.742/1993. 2. São devidos honorários advocatícios à Defensoria Pública mesmo atuando contra pessoa jurídica de direito público que integra a mesma Fazenda Pública, a partir da edição da Lei Complementar nº 132/2009, objetivando o fortalecimento e autonomia administrativa e financeira da Entidade, bem como o aparelhamento e capacitação de seus membros e servidores por meio das verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação. 3. Os precedentes contrários do Superior Tribunal de Justiça estão baseados na tese da confusão, ou seja, de que a Defensoria Pública é parte do Estado e com ele se confunde. Todavia, a Defensoria Pública da União não pertence à Autarquia Previdenciária, tratando-se de pessoas jurídicas distintas, com personalidade, patrimônio e receita própria, de modo que não há confusão possível entre as Instituições. 4. Como a Instituição possui personalidade jurídica própria e pode executar suas verbas sucumbenciais, pressupõe-se o direito de percepção dos honorários por ocasião da atuação judicial vitoriosa. 5. Entendimento no sentido contrário ensejaria a declaração de inconstitucionalidade do art. 4º, inciso XXI, da Lei Complementar nº 80/1994, alterado pela Lei Complementar nº 132/2009, em vista da expressa previsão da execução e recebimento das verbas sucumbenciais decorrentes da atuação da Defensoria Pública. (TRF-4, Relator: ROGERIO FAVRETO, Data de Julgamento: 10/06/2014, QUINTA TURMA)

A Lei Complementar 80/94, não impediu ou limitou a cobrança de honorários pela Defensoria Pública, seja da União, seja dos Estados Federados, portanto os precedentes do Superior Tribunal de Justiça fazem interpretação restritiva e desarrazoada:

Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:

(…) XXI – executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação, inclusive quando devidas por quaisquer entes públicos, destinando-as a fundos geridos pela Defensoria Pública e destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação profissional de seus membros e servidores; (g.n.)

Os precedentes contrários do Superior Tribunal de Justiça estão baseados na tese da confusão patrimonial, sendo que eles foram firmados na época em que a Defensoria Pública Federal era vinculada a administração direta da União. Todavia, a Defensoria Pública da União não pertence mais à administração direta ou indireta da União (desde a Emenda Constitucional 74/2013), tratando-se de pessoas jurídicas distintas, com personalidade, patrimônio e receita própria, de modo que não há confusão possível entre as Instituições.

Desse modo, a Defensoria Pública possui personalidade jurídica própria e pode executar suas verbas sucumbenciais, ou seja, detém o direito de percepção dos honorários por ocasião da atuação judicial vitoriosa contra qualquer ente público que conste no polo passivo da demanda. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acolheu o mesmo entendimento, em diversos precedentes:

APELAÇÃO – (…) HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DA DEFENSORIA PÚBLICA. Pagamento pelo Estado. Possibilidade. Autonomia constitucional. Ausência de confusão entre as partes. Valor. Razoabilidade. Sentença de procedência mantida. Reexame necessário e recursos voluntários desprovidos. (TJ-SP, Relator: Marcelo Semer, Data de Julgamento: 13/04/2015, 10ª Câmara de Direito Público)

“AÇÃO ORDINÁRIA Fornecimento de medicamento para tratamento de osteoartrite e nódulo de Herbeden Alegado direito à vida e á saúde, cabendo ao Estado propiciar o atendimento médico da autora, fornecendo o medicamento prescrito. É necessário que esse direito venha a ser respeitado e implementado pelo Estado, destinatário do comando constitucional Sentença de procedência Pretensão de afastamento da condenação da Fazenda Pública ao pagamento de honorários advocatícios à Defensoria Pública Autonomia constitucional da Defensoria Pública Verba honorária devida, não se tratando de confusão entre as partes Multa mantida Recursos não providos” (TJSP. Apelação Cível 0051780- 97.2012.8.0053, São Paulo, 7ª Câmara de Direito Público, v.u, 23/06/14, rel. Magalhães Coelho).

Destaca-se, ainda, que diversamente do que ocorre com advogados públicos, os honorários jamais compõem a remuneração dos Defensores Públicos sendo destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação profissional de seus membros e servidores, conforme dispõe expressamente os artigos 46, III, e 130, inciso III, ambos da LC 80/94.

Outrossim, a Emenda Constitucional 80/2014 dispõe que no prazo de 8 anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais. Aliado a esse dado, a falta de Defensores Públicos e de aparelhagem das Defensorias Públicas é fato notório e se deve a omissão estatal da União e dos Estados Federados.

Informações do último censo do IBGE dão conta de que cerca de 82% da população brasileira, que recebem até três salários mínimos, são potenciais usuários da Defensoria Pública. De um universo de 160 milhões de pessoas, apenas 45 milhões têm, hoje, acesso à instituição. Segundo o Mapa da Defensoria Pública do Brasil, faltam defensores públicos em 72% das comarcas brasileiras. Ainda, de acordo com o Portal do Atlas do Acesso à Justiça no Brasil, divulgado pelo Ministério da Justiça, o Brasil tem somente 3,93 defensores públicos para cada 100 mil habitantes[3].

Apesar do Brasil ter um total de 8.489 cargos de Defensor Público criados, apenas 5.054 estão providos (59,5%). Essa informação é de grande relevância, pois indica que — quando necessária — a ampliação da cobertura territorial pelas Defensorias no Brasil depende, em geral, menos de leis que criem cargos e mais de medidas administrativas e orçamento para nomeação dos aprovados em concurso[4].

Outrossim, os dados coletados pelo Mapa da Defensoria indicam que os estados contam com 11.835 magistrados, 9.963 membros do Ministério Público e 5.054 defensores públicos (nas 1ª e 2ª instâncias), ou seja, uma distorção de forças entre as instituições da justiça. O número de magistrados e de membros do Ministério Público permite que esses serviços sejam oferecidos na quase totalidade das comarcas brasileiras. Na maioria delas (72%), contudo, a população conta apenas com o estado-juiz, o estado-acusação/fiscal da lei, mas não conta com o estado-defensor, que promove a defesa dos interesses jurídicos da grande maioria da população, que não pode contratar um advogado particular[5].

Assim, a condenação dos Estados e da União em honorários advocatícios estará em consonância com a Lei Complementar 80/94 e auxiliará o fortalecimento e implementação da Defensoria Pública, almejada pela Emenda Constitucional 80/2014. Nesse sentido, a omissão estatal não pode frustrar o direito do cidadão necessitado em acessar o Poder Judiciário, conforme precedente da lavra do ministro Celso de Melo, do Supremo Tribunal Federal:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO RECURSO DE AGRAVO – DEFENSORIA PÚBLICA – IMPLANTAÇÃO – OMISSÃO ESTATAL QUE COMPROMETE E FRUSTRA DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PESSOAS NECESSITADAS – (…) – Assiste a toda e qualquer pessoa – especialmente àquelas que nada têm e que de tudo necessitam – uma prerrogativa básica essencial à viabilização dos demais direitos e liberdades fundamentais, consistente no reconhecimento de que toda pessoa tem direito a ter direitos, o que põe em evidência a significativa importância jurídico-institucional e político-social da Defensoria Pública. – O descumprimento, pelo Poder Público, do dever que lhe impõe o art. 134 da Constituição da República traduz grave omissão que frustra, injustamente, o direito dos necessitados à plena orientação jurídica e à integral assistência judiciária e que culmina, em razão desse inconstitucional inadimplemento, por transformar os direitos e as liberdades fundamentais em proclamações inúteis, convertendo-os em expectativas vãs. – É que de nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam – além de desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares – também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional (CF, art. 134), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da norma inscrita no art. 5º, inciso LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no art. 134, ambos da Constituição da República. – (…) (AI 598212 ED, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 25/03/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-077 DIVULG 23-04-2014 PUBLIC 24-04-2014)

Desse modo, necessário que o Superior Tribunal de Justiça realize ooverruling do enunciado 421 de sua súmula, de modo a extinguir o entendimento que veda o recebimento de honorários advocatícios pelas Defensorias Públicas.

O enunciado 421 do STJ precisa ser revisitado e modificado, tendo em vista que o precedente não pode mais ser aplicado diante da ausência de eventual confusão patrimonial, de violar a autonomia administrativa, financeira e orçamentária assegurada pela norma constitucional às Defensoria Públicas e, a luz dos objetivos constitucionais, o entendimento exarado impede, indiretamente, a efetivação da Emenda Constitucional 80/2014, na medida que impede a estruturação desta Instituição essencial à justiça.


1 “Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (…) XXI – executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação, inclusive quando devidas por quaisquer entes públicos, destinando-as a fundos geridos pela Defensoria Pública e destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação profissional de seus membros e servidores;” (incluído pela Lei Complementar nº 132/2009) (grifamos)

2 STJ – REsp 1.108.013/RJ – Corte Especial – Rel. Min. Eliana Calmon – j. 03.06.2009 – DJe 22/06/2009 REVFOR vol. 405 p. 443 RSSTJ vol. 40 p. 327.

3 Mapa da Defensoria Pública no Brasil. ANADEP e IPEA. 1ª Edição. Brasília. 2013. Disponível em:http://www.anadep.org.br/wtksite/mapa_da_defensoria_publica_no_brasil_impresso_.pdf. Acessado em16.03.2013.

4 Mapa da Defensoria Pública no Brasil. ANADEP e IPEA. 1ª Edição. Brasília. 2013. Disponível em:http://www.anadep.org.br/wtksite/mapa_da_defensoria_publica_no_brasil_impresso_.pdf. Acessado em16.03.2013.

5 Mapa da Defensoria Pública no Brasil. ANADEP e IPEA. 1ª Edição. Brasília. 2013. Disponível em:http://www.anadep.org.br/wtksite/mapa_da_defensoria_publica_no_brasil_impresso_.pdf. Acessado em16.03.2013.

 

 

 

 

 

Autor:  é defensor público do Estado do Maranhão, titular do Núcleo Regional de Imperatriz, pós-graduado pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e pela UNITAR (ONU).


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