Questão relevante que pouco tem sido discutida na doutrina processual penal é a hipótese de cabimento de indiciação de pessoa investigada, mediante inquérito policial, por prática de infração de menor potencial ofensivo.
Numa visão sistemática do regime a que se submete a persecução penal nesta categoria de infrações, não se pode admitir o instituto do indiciamento, como restará demonstrado abaixo, em resumidos argumentos.
Ordinariamente, o procedimento de investigação mediante inquérito policial não possui roteiro pré-definido. Ficam as providências e rumos da investigação a cargo da discricionariedade da autoridade policial que o preside. Não obstante, a lei entendeu por bem tipificar algumas poucas medidas pré-processuais. O ato de indiciamento, também chamado de indiciação, não é expressamente pormenorizado pelo Código de Processo Penal (CPP). Porém, a prática policial padronizou-o e terminou por compor as “formalidades de indiciamento”. São elas compostas pelo despacho de indiciação, auto de qualificação e interrogatório, boletim de vida pregressa e prontuário de identificação criminal.
Assim, quando a autoridade policial constata a existência de uma infração penal e descobre o autor e partícipes do fato, deve necessariamente indiciá-los. Trata-se de ato formal de Polícia judiciária que tem por efeito principal a conversão do status do sujeito passivo de “investigado” para “indiciado”. Isto significa maior sujeição à investigação preliminar e insinua a adoção de medidas pré-processuais invasivas, conforme o caso. Um outro efeito, de natureza prática, é o registro da imputação nos assentamentos pessoais no indiciado, nos termos do artigo 23 do CPP.
As chamadas “infrações de menor potencial ofensivo” têm disciplina própria na processualística brasileira. As medidas despenalizadoras (indiretas) deferidas pela Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, dão tratamento bem mais brando aos indigitados autores de infrações desta natureza. A composição civil e transação penal (artigo 72 e seguintes) e a suspensão condicional do processo (artigo 89) permitem que seja antecipadamente extinta a punibilidade do agente de forma a evitar os “efeitos estigmatizantes do processo”. Afora a exigência de representação para lesões corporais leves e culposas (artigo 88) e o afastamento da prisão em flagrante em caso de comparecimento imediato ao juizado especial criminal ou assinatura do respectivo termo de compromisso.
Desse modo, não há que se falar em inquérito policial em sede de juizados especiais criminais, salvo nas hipóteses taxativamente previstas nos artigos 66, parágrafo único, e 77, parágrafo 2º da lei de regência. Acusados não encontrados para citação, fatos complexos ou circunstâncias que não permitam a formulação imediata de denúncia determinam a adoção do “procedimento previsto em lei”, vale dizer, instauração de inquérito policial, na maioria dos casos.
Aí reside o problema: instaurado o inquérito policial e presentes os demais requisitos, deve o autor do fato ser indiciado? A resposta negativa se impõe.
O parágrafo 6º do artigo 77 da lei em comento determina que a sanção imposta em razão da transação penal não constará de certidão de antecedentes criminais tampouco produzirá efeitos civis. Isto significa que o devido processo legal referente aos crimes de menor potencial ofensivo não admite consignação desta natureza nos assentamentos dos envolvidos.
Por outro lado, em caso de indiciamento, inexiste previsão legal expressa que permita a retirada desta pecha dos respectivos registros pessoais. Ainda que o inquérito seja arquivado ou mesmo seja o indiciado denunciado, processado e absolvido mediante plena consagração da tese de inocência, permanecerá o registro, por exemplo, para fins de apuração de antecedentes.
Se é assim, não se pode admitir que o suposto autor de infração de menor potencial ofensivo seja indiciado, pelo menos até que fique afastada a possibilidade da transação penal.
Em sentido contrário, argumentar-se-ia que o artigo 76, parágrafo 6º, desloca o procedimento para “o rito previsto em lei” e aí estaria implícita a possibilidade de indiciamento em razão da instauração de inquérito. Se um instituto de maior projeção jurídica não pode se sobrepor ao de menor alcance e a transação produz efeitos muito mais drásticos na persecução penal do que o indiciamento. Então a ponderação acima não é aplicável, ou seja, não pode o indiciamento sobrepor-se à transação.
Ademais, a Lei 9.099/95 é lei especial em relação às infrações de menor potencial ofensivo (lex specialis) derrogadora do Código de Processo Penal, que é lei geral (lex generalis).
Pelo exposto, é de se concluir que, instaurado o inquérito, cumpre à autoridade policial encerrar ordinariamente a investigação mediante elaboração do respectivo relatório (artigo 10, parágrafo 1º, CPP) apontando suas conclusões e, mesmo que revelada a autoria, deve abster-se de indiciar o autor de fato.
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Mauro de Ávila Martins Filho: é delegado da Polícia Federal, chefe da Delegacia de Repressão a Crimes contra o Patrimônio em Manaus.