Erro Médico e Hospital

Os hospitais por serem campo de atuação dos médicos, e outros profissionais de saúde, quando no atendimento a pacientes internados ou ambulatoriais, utilizando-se dos equipamentos e instalações tecnologicamente adequadas para casos, que, sem dúvida, tendem a ser os mais complexos por necessitarem atenção em cuidados de saúde no ambiente hospitalar, são, por vezes, palco de atos causadores de danos a determinados pacientes. Vamos aqui analisar como, nestas situações, em nosso ordenamento jurídico, é abordada a responsabilidade civil destes entes hospitalares.

Um estabelecimento hospitalar é um fornecedor de serviços – serviços de saúde médico-hospitalares – e está, portanto, sujeito às normas do Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei nº8.078, de 11 de setembro de 1990) e do Código Civil brasileiro, no que couber, além de outras normas legais de nosso ordenamento jurídico, quer no que tange ao atendimento de pacientes internados nas suas dependências, quer no que se refere à prestação de serviços aos pacientes que procurem atendimento ambulatorial (pacientes externos) em caráter eletivo, de urgência ou emergência. A relação jurídica dos hospitais brasileiros quando da prestação de serviços aos seus pacientes é contratual. Trata-se a responsabilidade dos hospitais face aos seus pacientes, de responsabilidade objetiva (há autores que falam em presunção de culpa do hospital nestes casos e não responsabilidade objetiva). Conceitualmente, na teoria da responsabilidade objetiva não há que se falar em culpa, basta o dano e o nexo causal (relação de causa e efeito) para ser responsabilizado civilmente o agente, no caso hospital, causador do dano. Em caso de haver presunção de culpa – juris tantum – pressupõe-se que o hospital tenha culpa, presentes estando o dano e o nexo causal deste com o ato lesante praticado no paciente pelo qual o nosocômio for responsável.

A responsabilidade dos médicos é contratual e como os médicos executam procedimentos no ambiente hospitalar – hoje em dia já se caracterizando o atendimento no hospital como uma atividade multiprofissional – além deste contrato entre o médico e o paciente, surge também um contrato, mais amplo, já que não se restringe aos cuidados médicos, entre o hospital e o paciente, que traz como conseqüência poder ser o hospital responsabilizado em caso de dano a um paciente. Este contrato amplo do hospital com o paciente abarca também as atividades complementares ao atendimento do paciente, entre elas enfermagem, serviço de controle de infecção hospitalar, limpeza, recepção, transporte e serviços complementares de diagnóstico e tratamento (laboratório, radiologia, hemoterapia, fisioterapia, nutrição). Entre o paciente e o hospital se estabelece uma legítima relação de consumo, com todas as suas características e implicações legais daí decorrentes.

E este contrato, não aceita cláusula de exclusão de responsabilidade, por tratar, em grande parte das vezes, da própria vida – existência – do paciente, bem indisponível em nosso ordenamento jurídico. No que se refere à integridade física, colocar esta como objeto de cláusula contratual, excluindo previamente no contrato a responsabilidade do hospital pela mesma sob determinadas condições, fere o paciente em sua dignidade humana, direito individual difuso, princípio constitucional fundamental (expresso no artigo 1º, da Constituição Federal brasileira, em seu caput e inciso III, verbis: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana;”) do qual, pode-se afirmar, é derivado o princípio da manutenção da integridade física. Igualmente, o Código Penal brasileiro através do artigo 129, caput, verbis: “Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:”, descreve o tipo penal que tutela especificamente este bem jurídico, a integridade física do ser humano, o qual interessa à sociedade proteger. Em nosso Código Penal, este artigo 129 (norma, pois, de direito público, que tutela, frise-se, interesse público) prevê sanções de privação da liberdade, variáveis com a gravidade da lesão corporal, para quem pratique ato que seja, pelo julgador, subsumido legalmente no tipo penal descrito na referida norma, ou seja, pratique o tipo penal descrito nela. Os direitos da personalidade – pilares da dignidade humana -, e entre eles inclua-se a integridade física, têm a sua indisponibilidade prevista no Código Civil brasileiro. Neste Código há tutela jurídica expressa em seu CAPÍTULO II, que tem por título: DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE, onde, no artigo 11, está determinado: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.”. Em caso de “diminuição permanente da integridade física” há até, no mesmo capítulo: DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE, tutela específica no artigo 13 de nosso Código Civil, verbis: “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.”. E, o Código De Defesa do Consumidor – CDC, no caput e inciso IV, do seu artigo 51, prevê: “São nulas de pleno direito, entre outras as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (…) IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;”. Nada mais iníquo do que pretender “negociar” a integridade física, ferindo assim a dignidade humana, de um determinado indivíduo. Diz mais, ainda, o CDC, em seu artigo 25, caput, verbis “É vedada a utilização de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas Seções anteriores.”. Não se pode também dizer que esteja presente a boa-fé subjetiva no ato daquele contratado que pretenda excluir a manutenção da integridade física do paciente de um contrato de prestação de serviços médicos hospitalares, sob qualquer condição que seja. E, a boa-fé é imprescindível aos contratantes, inclusive como norma do Código Civil brasileiro, no seu artigo 422, que determina: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”.

Neste contrato a obrigação do hospital no seu atendimento ao paciente, gize-se, é de meios e não de resultado. O hospital não tem a obrigação de curar um determinado paciente. A sua obrigação está relacionada diretamente com os aspectos da assistência médica que prestar, devendo ser, esta, a mais adequada possível. O atendimento hospitalar deve ser diligente e prudente, e deve, o hospital, dispor de pessoal com habilidade profissional – competência – nos procedimentos médico-hospitalares os quais se dispõe oferecer aos seus pacientes.

Há, no contrato entre o hospital e seu paciente, implícita uma cláusula de incolumidade, por ocasião do atendimento hospitalar que diferencia-se da obrigação de meios a qual se obriga o hospital com o paciente, ou seja, além de agir com prudência, diligência e perícia através dos seus recursos humanos, no atendimento ao paciente, tem também o hospital a obrigação de manter incólume o paciente durante sua estadia em suas dependências. Esta obrigação do hospital para com o paciente, durante sua estada no hospital, tem características de uma obrigação de resultado. O resultado a alcançar é o dever que o hospital tem de manter incólume o paciente, livre de outras lesões que não as, necessariamente e inevitavelmente, decorrentes dos procedimentos médicos.

Os conceitos de responsabilidade in eligendo e in vigilando, são primordiais no entendimento da responsabilização do hospital pelas ações das pessoas que nele labutam. Sob a ótica da responsabilidade in eligendo é obrigação do hospital escolher bem aqueles – quer sejam da classe médica, quer não sejam – que nele labutam. O hospital, pois é o responsável tanto pela habilidade profissional, como pela conduta social (bons costumes) dos seus funcionários, incluindo médicos, e membros de seu Corpo Clínico, que selecionou para desempenharem atividades profissionais no atendimento aos pacientes que utilizem os seus serviços. Também pode ser responsabilizado o hospital face à responsabilidade in vigilando, pois não basta ter escolhido bem os profissionais que vão desempenhar atividades em suas dependências, também tem o hospital que exercer uma “fiscalização” – controle – destes para que desempenhem com perícia, prudência e diligência as suas atividades. Não o fazendo e com isto ocorrendo dano ao paciente o hospital será responsabilizado pelo atuar incorreto do seu funcionário, ou mesmo do médico, de seu Corpo Clínico, que nele execute seus atos profissionais inadequadamente. E, os procedimentos que, porventura, venham a causar dano por ocasião de um atendimento médico-hospitalar, em nosso ordenamento jurídico, geram a necessidade de serem ressarcidos os prejuízos pelo causador do dano como se depreende da leitura de nosso Código Civil, na exegese de seus seguintes artigos: o de nº186 (“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”), o de nº927, caput (“Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”), e o de nº951 (“O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.”).

Quando a causadora de um dano ao paciente for uma atividade característica de atendimento médico, e este médico for funcionário ou membro do Corpo Clínico deste nosocômio, para ser responsabilizado o hospital tem que haver culpa no agir deste profissional. É assim que determina o artigo 14, do Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei nº8078/1990) em seu parágrafo 4º, que diz, verbis: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.”. Mas, esta culpa tem que ser provada, embora possa ser levíssima, como está estabelecido desde a Lei Aquília (LEX AQUILIA DE DAMNO), do Direito Romano, no século III a.C.. Assim, mesmo a culpa levíssima na conduta do agente lesante levava à sua responsabilização pelos danos a outrem. Como se depreende do escólio do jurista Ulpiano que o Imperador Justiniano, no século VI d.C., registrou numa compilação dos ensinamentos dos jurisconsultos romanos: DIGESTO – Livro Nono (Dig.9.2.44pr.; Ulpianus 42 ad sab.): “In lege aquilia et levissima culpa venit” (tradução livre do autor: Na lei aquília até a culpa levíssima é valorizada). Estando presente a culpa, mesmo que levíssima, no agir do médico, o hospital será responsabilizado civilmente por eventuais danos a um paciente.

Depois de averiguada a presença de culpa no agir do médico é que, objetivamente, será responsabilizada a entidade hospitalar pelo dano causado ao paciente. Como estatui o artigo 932, do Código Civil brasileiro em seu inciso III, que especifica: “São também responsáveis pela reparação civil: (…) III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;”. O que é complementado pelo Artigo 933, do mesmo Código Civil, que diz: “As pessoas indicadas nos incisos I a IV do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, respondem pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.”. Portanto, basta haver culpa no agir do médico, para o hospital ser responsabilizado pelos danos porventura ocorridos a um paciente, independente de haver culpa provada no atuar do hospital como entidade prestadora dos serviços de saúde a este paciente. É presumida, nestes casos a culpa do hospital. Neste sentido já há, inclusive, consagrada Súmula do STF –Supremo Tribunal Federal, de nº 341, verbis: ”.É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto.”

As atividades características de atendimento essencialmente hospitalar – “não médicas” – se revestem de um caráter de objetividade, pois ao tratarmos de danos causados por serviço de recepção, infecção hospitalar, enfermagem, nutrição, limpeza, hemoterapia, cuja competência de execução seja atribuída exclusivamente à empresa hospitalar a tendência majoritária – dominante – na jurisprudência e na doutrina pátrias, parece ser pela imputação objetiva na responsabilização do ente hospitalar. Até pela cláusula de incolumidade implícita no contrato de atendimento médico-hospitalar celebrado entre o paciente e o hospital. Só se eximirá o hospital de ser responsabilizado judicialmente pelos danos decorrentes destas suas atividades, ditas próprias de um hospital, se provar que estas são decorrentes de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva do paciente (consumidor) ou de terceiros. Atuam, pois, estas situações como causas de exclusão (excludentes) da responsabilização civil do hospital por eventual dano ao seu paciente. As duas últimas como determina o inciso II, do parágrafo 3º, do artigo 14 do CDC, verbis: “§3º O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: (…) II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.”. E, as duas primeiras como estabelece o Código Civil brasileiro, em seu artigo 393, verbis: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.”, ficando por conta do parágrafo único deste mesmo artigo, do nosso Código Civil, conceituar caso fortuito e força maior: “Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”. Portanto, com razão, se aplicam na responsabilização do hospital pelos danos ao paciente causados por funcionários dos seus serviços próprios – atividade essencialmente da empresa hospital – os dispositivos legais já citados, quais sejam, os artigos 932 (caput e inciso III) e artigo 933, ambos de nosso Código Civil, e a Súmula de nº341, do STF. Quanto ao artigo 14, do Código de Defesa do Consumidor, no caso de funcionários não-médicos (que não sejam profissionais liberais), não há aplicação do parágrafo 4º do referido artigo e sim utilização, pelo julgador, do caput do mesmo artigo 14 do CDC, que diz: “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação de danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.” E, sendo um contrato a relação jurídica que se estabelece entre o paciente e o hospital, a esta relação se aplica inteiramente o artigo 389 do Código Civil brasileiro, verbis: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.”. Este dispositivo legal cabe, aqui, integralmente: o erro médico-hospitalar é o não cumprimento bem caracterizado de um contrato, por tratar-se de uma falha na prestação de serviços, no caso, hospitalares. Há, pois, obrigação de indenizar o lesado, ou seja, o paciente que teve o seu direito violado. É uma situação em que se faz presente a necessidade de reparação civil por danos oriunda do inadimplemento de uma relação contratual.

Não parece haver dúvida quanto ao caráter de serviço público, mesmo que delegado, da atividade de prestação de serviços hospitalares por parte dos hospitais privados (pessoas jurídicas de direito privado).

Diz o artigo 196, da nossa Constituição Federal : “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Portanto, se aplica na responsabilização em caso de dano a um paciente o previsto no artigo 37, da Constituição Federal brasileira, que em seu parágrafo 6º reza: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”. E, ninguém mais prestador de um serviço público – delegado, e relevante – que um hospital. Entre o paciente e o hospital se estabelece uma relação de consumo com a conseqüente responsabilização legal do hospital pelo ressarcimento dos prejuízos, em caso de dano ao paciente, advinda das regras jurídicas que regem a prestação de um serviço público (delegado). No caso do hospital público (pessoa jurídica de direito público), além do comando constitucional do parágrafo 6º, do artigo 37, da nossa Constituição Federal, o Código Civil brasileiro explicita esta sua responsabilidade objetiva, em seu artigo 43, verbis: “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.”. Esta objetividade na responsabilização do hospital público, por atos daqueles que nele labutam, permite responsabilizar o ente público até por atendimentos de médicos que não pertençam ao seu quadro funcional, sob qualquer vínculo que seja, e venham a realizar um eventual – fortuito – atendimento em suas dependências e causem um dano a um paciente. A doutrina e a jurisprudência brasileiras, têm, até agora, aceitado admitir que, neste caso específico de atendimento eventual – isolado – realizado por um médico não vinculado sob nenhuma forma ao hospital, não seja responsabilizado o hospital privado pelo dano causado por um ato médico.

Sempre haverá espaço para atuações do hospital em que se caracteriza uma relação extracontratual com o paciente, ou seja, naquelas situações de incapacidade legal do paciente, como o enfermo inconsciente, menor de idade ou alienado mental, que em caráter de emergência ou mesmo urgência, necessite atendimento médico-hospitalar sem que haja tempo hábil para que seja suprida esta incapacidade. A estes casos de reparação civil, por relação extracontratual do hospital com o paciente, dão os nossos tribunais, acompanhando a doutrina brasileira sobre o tema, o mesmo tratamento jurídico dos casos de responsabilidade civil dos hospitais por danos em relação contratual.

Fica bem expressa, aqui, a natureza, via de regra, contratual da relação que o hospital estabelece com seu paciente, cabendo, averiguada pelos tribunais a procedência da imputação ao hospital da responsabilidade pelo dano causado ao paciente, o ressarcimento, pelo hospital, dos prejuízos que haja causado, como for determinado na decisão judicial.

* Neri Tadeu Camara Souza
Advogado e Médico em Porto Alegre-RS

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