Estabilidade: quem a merece, dela não precisa. Quem dela precisa, não a merece

Talvez esteja o momento de efetuar-se um questionamento quanto ao próprio instituto da estabilidade dos servidores públicos, mesmo porque os servidores que se destacam por sua competência, que, em uma análise meritória, dela não necessitam

Dênerson Dias Rosa

Durante a época do Brasil Império, o desempenho de funções públicas dava-se por meio de delegação, direta ou indireta, do Imperador. Tinha-se tão-somente o exercício de cargos sob a modalidade “em confiança”, podendo o Imperador admitir ou exonerar funcionários públicos quando julgasse conveniente.

Esta situação fundamentava-se na presunção de que a vontade do Imperador confundia-se com a vontade do próprio Estado e, conseqüentemente, com a vontade e interesse coletivo.

Sob a Ordem Imperial, como não havia qualquer responsabilidade do Imperador por seus atos, por considerar-se este como não sujeito a falhas ou erros, a necessidade de resguardar-se os funcionários públicos quanto a eventual excesso praticado pelo Imperador não se vislumbrava presente, todavia, sob o regime republicano, extinto o princípio da presunção da infalibilidade do governante, tornou-se necessária uma normatização relativa a funcionários públicos que os protegesse de eventuais mandos e desmandos ocorridos da gestão da Administração Pública.

Estabelecer proteção aos funcionários públicos de modo a resguardá-los de excessos ou abusos era necessário, não pelos belos “olhos azuis” dos mesmos, mas porque a sociedade clamava por uma polícia que apurasse todos os crimes, o que não aconteceria se a Administração Pública pudesse demitir os policiais que insistissem em investigar crimes praticados por pessoas influentes, porque a sociedade clamava por uma distribuição dos encargos tributários por todos, o que não aconteceria caso pudesse a Administração Pública demitir fiscais que insistissem em fiscalizar e multar grandes conglomerados empresariais, para ficar-se apenas nestes exemplos. Ou seja, dentro de um Estado Republicano, para que não seja toda a máquina administrativa colocada em prol dos interesses do governante, e não da população, é necessário que os funcionários públicos tenham um mecanismo que lhes assegure proteção no desempenho de suas funções.

Esta proteção adveio quando da promulgação da Carta Constitucional de 1934, que estabeleceu que após dois anos, caso nomeados em virtude de concurso público, ou dez anos, caso nomeados mediante outro processo, não poderiam os funcionários públicos ser demitidos senão em virtude de sentença judicial ou processo administrativo.

Desde sua instituição, o único período no qual não vigorou o princípio da estabilidade foi quando da vigência do Ato Institucional nº 5, de 13/12/68, que, suspendendo a garantia constitucional da estabilidade, outorgou ao Presidente da República a competência para demitir funcionários públicos a seu único e exclusivo critério.

Todavia, a estabilidade hoje existente não se reveste da mesma forma que se revestia quando de sua criação, posto que veio sofrendo alterações ao longo do tempo. Em 1946, para os funcionários admitidos sem concurso público, passou a ocorrer a estabilidade após cinco anos de exercício. Em 1967, a estabilidade tornou-se restrita aos funcionários admitidos por concurso público, situação que foi mantida pela Constituição de 1988, a qual, todavia, tornou estáveis todos os servidores públicos que, nomeados sem concurso público, contavam, na data de promulgação da mesma, mais de cinco anos de exercício.

Em 04/06/98, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 19 que, aumentando, de dois para três anos, o tempo de exercício necessário para adquirir-se a estabilidade, estabeleceu, além das formas já existentes, quais sejam, sentença judicial e processo administrativo, a hipótese de demissão de servidor público estável em virtude de insuficiência de desempenho, bem como a hipótese de a Administração Pública exonerar servidores estáveis para adequar sua folha de pagamento aos patamares previstos em Lei Complementar.

Caso fosse a estabilidade analisada como um direito dos servidores públicos, seria fácil chegar-se à conclusão que deveria ser estendida a todos os trabalhadores, sob pena de estar-se desrespeitando um dos princípios basilares de um Estado de Direito, qual seja, a de que todos são iguais perante a lei, todavia, apesar de a estabilidade ainda ser vista, ao menos pela maioria, como um direito ou garantia dos servidores públicos, na verdade, esta é uma garantia do Estado, ou, em um conceito mais amplo, uma garantia da própria sociedade.

Desta constatação que a estabilidade é uma garantia da própria sociedade, e não dos servidores públicos, advém-se a constatação de que somente deveriam ser considerados estáveis os servidores públicos tais como os membros do Ministério Público, os servidores judiciais, os fiscais, os policiais, dentre outros que desempenham funções tipicamente estatais.

Quanto aos servidores meramente administrativos, não há razão plausível para mantê-los considerados como estáveis, mesmo porque a permanência de um, ou a sua exoneração e contratação de outro em seu lugar, não acarreta qualquer transtorno ou perda para a Administração Pública ou mesmo para a sociedade, devendo, por questão de justiça, a estes ser atribuído o mesmo regime aplicável hoje aos trabalhadores em geral, que, não possuindo estabilidade, tem outros mecanismos para compensar uma eventual perda do emprego.

Não se pode esquecer, também, que a estabilidade, concedida indiscriminadamente, tal como hoje ocorre, implica em total subversão do motivo de sua existência, posto que tem conseqüências nefastas para a Administração Pública e para a própria sociedade, dentre as quais um estímulo à baixa produtividade, visto que, além de não ser este um caráter determinante do salário dos servidores públicos, não podem ser estes demitidos por esta razão, a não ser em casos absolutamente gritantes, o que resulta da necessidade sempre crescente de contratação de mais servidores públicos e o conseqüente engessamento da máquina administrativa, que se vê obrigada a destinar quase todos os seus recursos para o pagamento de sua folha, muito pouco restando para investimentos em áreas de grande relevância.

Talvez esteja o momento de efetuar-se um questionamento quanto ao próprio instituto da estabilidade dos servidores públicos, mesmo porque os servidores que se destacam por sua competência, que, em uma análise meritória, seriam os que deveriam fazer jus à estabilidade, dela não necessitam, posto que sua competência já é sua “garantia”, na própria Administração Pública ou no mercado de trabalho. Quanto aos servidores públicos que efetivamente necessitam da estabilidade como garantia, infelizmente é fácil concluir que estes não a merecem.

Dênerson Dias Rosa é Consultor Tributário da Tibúrcio, Peña & Associados S/C e ex-Auditor Fiscal da Secretaria da Fazenda de Goiás

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