Vinício C. Martinez
doutor em Educação pela USP, professor da Faculdade de Direito da Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha em Marília (SP)
RESUMO: O objetivo do texto é tratar o direito liberal quando confrontado ao que chamaremos de Estado Funcional, mas que funciona mal ou que funciona para poucos, restritivamente, como é o nosso caso (1). Mas é bom lembrar que, de certa forma, nas sociedades capitalistas modernas, sentimo-nos órfãos de qualquer sentimento/sentido liberal: referimo-nos à livre-concorrência ora substituída pelos monopólios; às mil formas de censura impostas pelo opressivo Estado Grande-Irmão que, por exemplo, multiplica seus olhos eletrônicos de vigilância, com milhões de câmeras eletrônicas espalhadas por toda parte (2); cabe lembrar, ainda, a multiplicação das ideologias de consumo que camuflam o atual avanço controlativo (3).
PALAVRAS-CHAVE: Estado, funcionalismo, Direito, Justiça, desigualdade social.
SUMÁRIO: 1. Estado Funcional de Direito Aparentemente Liberal; 2. Preceitos e Preconceitos Teóricos; 3. Estado Oculto ou Direito Imoral; 4. Pluralismo Jurídico; 5. Direitos Sociais Fundamentais.
Estado Funcional de Direito Aparentemente Liberal
Como veremos ao longo do trabalho, o título mais adequado ao trabalho seria Estado Funcional de Direito Aparentemente Liberal. Também não é demais lembrar, inicialmente, que, de forma estranha e contraditória, este modelo de Estado Funcional (funcionalista), em essência, funciona muito mal ou mal funciona no Brasil, porque procura atender basicamente aos interesses dominantes ou conformar-se aos aspectos mais relevantes às classes predominantes ou aos privilégios dos grupos de poder hegemônicos.
Observando-se o mundo, entretanto, pode-se objetar que se trata de fenômeno amplo, globalizado e exterior à economia nacional, e isso vindo de longa data (o neoliberalismo de Thatcher e Regan) – fato que também serviria para amenizar a responsabilidade dos responsáveis pela condução do atual estado famélico por que passa a sociedade brasileira: esta crise sócio-econômica seria anunciada pela derrocada do Estado de Bem-Estar Social. Como nos diz Brunhof (1991, p. 62), a tônica ou regra básica da coisa toda está em desovar a massa de salários no mercado de consumo:
Segundo as normas de auto-regulação mercantil, todos os rendimentos dos trabalhadores devem formar-se e esgotar-se nos mercados. Venda da mercadoria-trabalho, salário, compras de bens de consumo (…) exclui as medidas de proteção social, não apenas aquelas que concernem à assistência, mas também as que repousam sobre um sistema de seguridade social.
Quanto a este aspecto elementar da nova forma de produção-circulação do mercado especulativo, não será demais frisar que devemos enfrentar, no biênio 2004-2005, as várias propostas de flexibilização dos direitos trabalhistas (também seria da Justiça do Trabalho?). Lembremos que já passamos por sucessivas reformas da Previdência Social (na última década) e, ao que se sabe, a massa de salários não foi mais bem dividida. Como diz Calmon de Passos (2001):
A par disso, a ciência, aparelhando e fortalecendo o capitalismo com seu aparato técnico, otimizador da produção ampliada e da padronização das preferências, os dois pilares que asseguram a expansão capitalista, injetou na vida social, em termos nunca antes experimentados, o veneno da competição como o valor supremo da convivência humana, transformando o outro num adversário. O consórcio entre o poder disciplinar da ciência e o poder político do direito exacerbou a regulação em detrimento da emancipação e estimulou a competição, em detrimento da solidariedade, fazendo da derrota do outro nossa coroa de louros. De tudo isso resulta a ênfase dada à coerção, cada vez mais necessária para assegurar as chamadas ordem social, ordem política e ordem jurídica e cada vez mais desqualificadora da condição humana (p. 80).
Assim, de fato, o Direito está muito distante da idéia de equilíbrio, e muito mais próximo da simples prescrição/aplicação coercitiva. Em termos gerais, isto quer dizer que seguimos a tônica do capital externo, além do que (e isso esperamos indicar mais claramente) a estrutura interna do país não dispõe de condições maduras ou adequadas para responder a estes desafios caracterizados pelo Estado Funcional Mundial (4). Então, quais são esses tão estreitos limites do Estado Funcional (5), no Brasil?
Preceitos e Preconceitos Teóricos
Antes da crítica, no entanto, e buscando a didática, pensemos num tipo de “Estado Funcional”, agora baseando-nos nas sugestões que muitos doutrinadores constitucionalistas apresentam acerca destas características e funções institucionais. As funções, nós sabemos, vêm da clássica separação dos poderes e sintetizam-se assim: 1) legislativa: lembremos que, além de editar as normas de Direito, o Poder Legislativo também deve fiscalizar o executivo; 2) administrativa: veja-se que o executivo, utilizando-se do sistema de freios e contrapesos, também pode propor “projetos de lei” – invocando a necessidade de agilizar os trabalhos de um legislativo moroso; 3) judiciária: vamos gravar que este deveria ser o mais equilibrado dos três poderes, mas que sofre a pena das ingerências do Executivo, sobretudo com as nomeações dos juízes do Supremo Tribunal Federal.
Mas como é que o legislativo pode permitir a mutação das medidas provisórias em “condição permanente” – será recebendo verbas suplementares? Quanto ao executivo, é certo que o Presidente da República indique seus próprios juízes? Ou seja, não é por acaso que o judiciário enfrenta tamanha pressão pela criação de um controle social externo. Nessa arenga do poder, é óbvio que não pode haver tantas trocas de favores, pois “um Estado não pode funcionar nessa base”: seus beneficiários imediatos acabam digladiando-se, sobretudo quando vêem minguar as rações e sem que haja possibilidade de satisfazer a volúpia dos mais fortes ou dos mais violentos (6).
Já as características podem assim ser resumidas: a) complexidade: enorme emaranhado e multiplicidade de atos e funções de significado público (no caso brasileiro, seria complexo ou desorganizado?); b) institucionalização: racionalização ou “constitucionalização da política” e da administração, visando à consecução da gestão pública (de outro modo, dir-se-ia burocratização e multiplicação exagerada da ação normativa) (7); c) coercibilidade: o Estado procura organizar a segurança pública dos indivíduos e das instituições, monopolizando o uso da força (vimos como se transforma no Estado Grande-Irmão que lê, ilegalmente, até e-mail das pessoas); d) autonomia: o Estado organiza a burocracia e a administração pública para o seu próprio gerenciamento e isso necessita de uma maior margem de autonomia para estas instituições (mas, por que no Estado Empresa não há liberdade ou participação popular?); e) continuidade: a sedentariedade dos agrupamentos humanos estimulou a permanência ou durabilidade das próprias instituições – diz-se que: “há permanência do poder político”. Se é assim, por que no Brasil não temos raízes democráticas solidificadas e mais profundas?
A título de exemplo, vejam-se algumas das respostas clássicas mais conhecidas: sofremos das heranças mal-vindas do Estado Patrimonial e do escravismo; trata-se do racismo latente; as elites são refratárias à participação popular e por isso obstaculizam as iniciativas sociais de origem popular; os preconceitos dão sobrevida aos privilégios dos grupos abastados e das classes dominantes; há um resto de “eurocentrismo tropical” aliado ao colonialismo cultural e econômico; somos vítimas do coronelismo tardio renitente e da violência política institucionalizada.
Outros ainda dirão que, devido ao fato de o Brasil ser um verdadeiro país continental, é muito difícil solucionar as crises sociais e políticas. Uma análise que, certamente, levaria qualquer matuto a questionar as dimensões territoriais brasileiras (antes sinônimo de pujança e força), pois, pela lógica, bastaria então dividir, repartir o país em parcelas menores para que seus problemas também fossem menores. Porém, concluindo com o matuto, não seria exatamente essa a característica e função primordial do Estado Federal, a divisão da Federação em Estados-membros? Isso não equivale a repartir funções para melhor administrar?
Lembremo-nos ainda que, no Estado Funcional de Direito Aparentemente Liberal, as finalidades ou objetivos do Estado não são analisados (as famosas “normas constitucionais programáticas”), simplesmente porque o debate constitucional acentua a gestão da máquina e não a teleologia pública e estatal: não parece que seja à toa que os gestores e os burocratas prefiram adotar o termo “máquina do Estado”, pois uma máquina deve funcionar – apenas isso, deve ter as engrenagens sempre funcionando. De outro modo, quando se diz que os objetivos globais foram propostos e não alcançados, estar-se-ia tratando do como e de para quem a máquina é posta a rodar. A Constituição também só será efetivamente dirigente se coloca em prática.
Por fim, ressaltemos que o Estado Grande-Irmão driblou todos os princípios do direito liberal: desde a seguridade dos direitos individuais, passando pelo engessamento e monopolização do chamado mercado livre, até culminar no Estado-Aparelho, aparelhado por interesses puramente corporativos: não se diz de um Estado Equipado, porque nem se discutem mais os famosos “equipamentos sociais”: há pouco garantias institucionais, hoje, lazer, cultura e trabalho são coisas do passado, são dotes dos afortunados.
Também o pluralismo político-partidário (8), sem que haja seguridade dos direitos civis e políticos, está convalescendo (9). Não há exagero em dizer que o Estado Funcional ou funcionalista é a cada dia mais e mais controlativo (e assim censurador), ao passo que o Direito está cada vez menos liberado do jugo do poder econômico. Um tripé composto pela relação entre Direito/política/economia, como define Calmon de Passos (2001):
E esse modo de pensar põe o jurista definitivamente comprometido com o político que, por sua vez, remete ao econômico e tudo isso finda por nos conscientizar de que todo saber é saber do homem e só se legitima se também for saber para o homem (p. 82).
De modo semelhante, mas em tom menos panfletário, pode-se dizer que os ideais e a própria fixação do direito liberal (direitos civis e individuais) perdeu muito terreno para esse endurecimento da economia (especulativa) e da política (democracia excessivamente, quase exclusivamente, formal). É certo lembrar que o Estado de Direito Liberal remonta à Revolução Gloriosa, inglesa (no Bill of Rights, primou-se pelo direito de ir, vir e permanecer), à Americana (desde a Declaração da Virgínia) e à Francesa (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão), mas é mais oportuno indagar onde encontraremos estas mesmas referências liberais hoje em dia.
De modo sucinto, as alegações anteriores podem ser tomadas como algumas características gerais do que chamei de Estado Funcional de Direito Aparentemente Liberal: o Estado de cunho funcionalista (funcionando para grupos seletos) e que apregoa a existência de um suposto direito liberal, mas que se mantém inalterado diante desta finalidade exclusivista.
Pode-se pensar neste Estado Funcional como o modelo que se veio formando já a partir de 1986 (na Assembléia Nacional Constituinte), mas, mais claramente ao longo das sucessivas reformas por que passou a CF de 88. Este modelo funcional habitava (como habita) as elites sedentas e ávidas por maior lucratividade (em face dos grupos políticos mais conservadores (10)), desde a Constituinte, com todos os arautos necessários à prescrição da reengenharia do modo de produção e do Estado (ou às custas do próprio Estado Democrático e social) e também em contraste com o modelo teórico do Estado Democrático de Direito. É evidente que não podemos identificar, nestes moldes, o que se chamaria de Estado Democrático de Direito Hegemônico:
É que o modo democrático pelo qual o Direito é produzido (Democracia Formal ou Estado Democrático de Direito), associado ao compromisso do Direito com a proteção do indivíduo e a promoção das massas, a partir da valorização do trabalho humano (Democracia material ou Estado de Direito Democrático), adquire a suprema virtude de legitimar o poder político (Ayres Britto, 2001, p. 46).
Teoricamente, o modelo social acabou protelado, sendo deixado para segundo plano. O próprio conceito de Estado Democrático de Direito Hegemônico necessita ser apresentado/analisado em seu cunho mais social e menos liberal, menos material e mais formal, de implicações políticas e não só redundância jurídica.
No caso concreto, trata-se aqui de tipo ou modelo atual do Estado brasileiro porque pode ser contrastado com a nossa própria herança histórica, esta postergada pelo chamado Estado Patrimonial – a fase mais emblemática do Estado brasileiro e que, portanto, deitou inúmeras raízes políticas e culturais. Tais raízes ou representações da política nacional são imensas, mas pensemos nos (des)caminhos e nas práticas sociais e políticas que vão do jeitinho ao mandonismo, que perpassam pelo populismo e pelo culto à personalidade, e que podem culminar na usurpação do poder e dos cofres públicos. O culto à personalidade, por exemplo, é um traço fascista que vem dos anos 30. Mas, e hoje?
O quadro, como descrito por alguns, chega a ser dramático, um vilipêndio à razão, à dignidade da pessoa humana, um escárnio da constituição e um contra-senso histórico, político e ideológico:
Pois bem. Disto tudo é razoável concluir que, quaisquer que sejam os programas e projetos governamentais, ou eles se ajustam aos limites, princípios ou diretrizes constitucionais, ou inexoravelmente, haverão de ser tidos como inválidos, juridicamente insubsistentes. Entre o mundo do dever-ser constitucional e a realidade atualmente vivida, porém, existe uma distância incomensurável. Não satisfeitos em comprometer de forma talvez irremediável a própria soberania nacional (ao alienar nossas imensas riquezas minerais, ao abrir mão do controle sobre as comunicações e ao permitir a fuga incontrolada de capitais, tudo para gáudio e gozo dos especuladores internacionais), os atuais detentores dos postos de governo se hão esmerado em escarnecer da Constituição (Pontes Fo, 2001, p. 654).
Pensemos ainda na onda de privatização e precarização em todos os setores da administração pública – o sucateamento do material humano antes especializado, o aligeiramento da qualificação dos servidores e a conseqüente insuficiência da prestação dos serviços públicos – a isso se dá o nome de “terceirização do serviço público”. Agora, pensemos no que poderia ser o referencial desse mesmo serviço público:
Pode-se pensar de modo evolutivo no tocante ao serviço público. A concepção clássica pode não vigorar hoje nos seus exatos termos. Aliás, deve-se lembrar que em sua noção Duguit (11) não associou serviço público a gestão estatal. O serviço público muda sua conformação segundo as transformações da sociedade, da tecnologia, da política. Pode-se inserir o dado econômico, a concorrência, a gestão privada, sem nunca deixar de lado o social, a coesão social, os direitos sociais. E sem abolir a presença do Estado (12). As atividades essenciais à coletividade não podem ficar à mercê somente do jogo do mercado (…) Eu diria: é elemento de proteção de toda a coletividade (Medauar, 2003, pp. 537-538).
A seguir, veremos que esse tipo de Estado pode produzir um direito imoral (13). Esta relação parece clara em si mesma, porém, deve-se lembrar que o Estado Democrático de Direito deve ser funcional para o público, não lhe sendo ocultas as ações em virtude e em proveito de um Direito igualmente democrático. Isto é, atentando-se ao que vimos ao longo do texto, o Estado Funcional brasileiro vem ocultando a justiça social e a democracia popular, bem como salientando o Direito imoral imposto.
Estado Oculto ou Direito Imoral
Estado e Direito, assim como Direito e moral, são distintos, mas devem ser relacionados. Simplificando, pensemos no Direito como na ordem do “ser”, aquilo que é de fato, e a moral como o núcleo de expressão do “dever-ser”. Porém, a explicação é falha, porque, por exemplo, quando relacionamos Direito e justiça, nós pensamos que “o Direito deve ser bom”. No exemplo, a moral guiou-se pelo bom-senso e migrou para dentro do Direito, mas, de modo contrário, há muito direito imoral, injusto, indigno. Em síntese: o Direito é imposto pelo Estado, enquanto a justiça é interposta entre as pessoas.
O Direito é uma espécie de bom-senso, o eixo de gravitação do senso comum, ou Direito consensual. De outra forma, no entanto, o arbítrio e a imposição não geram o consenso, um tipo de “senso em comum”, como valor compartilhado. Ao contrário, geram só um ato imposto, nunca requerido e nem aceito. Estes dois parágrafos são eles próprios exemplos do senso comum acerca do Direito: o que pensamos em comum do próprio bom-senso e do Direito.
Direito também é senso-comum: uma espécie de consenso (mas ainda temporário, provisório e apenas relativamente duradouro). Neste caso, há uma nebulosa envolvendo nossa percepção do sentido do Direito – quando o bom-senso ainda não foi estabelecido. Por isso, Direito não é sinônimo de justiça: esta, a justiça, como opção pelo direito correto, pelo melhor; já o senso comum do Direito pode ser tomado como o “simples consenso ou avaliação geral” de que seu descumprimento pode implicar em punições e aflições. Isto é, nem sempre se cumpre o Direito porque se quer, julgando-lhe correto, mas em geral porque é imposto forçosamente.
O Direito como “consenso pleno e real”, portanto, é um Direito requerido, que se requer – é querido, porque se quer livremente, porque se quer por perto, ao alcance. O Direito imposto, no entanto, pode ser cumprido em virtude do bom-senso – o medo é um alerta, um sinal de sobrevivência, uma indicação de que os efeitos da sanção/coerção são por demais aflitivos.
O Direito seguido da aplicação da sanção é, então, um direito penoso, pesaroso, enquanto o consenso traz como primeiro resultado a negociação e a aceitação. O consenso é bem dito, principalmente se oposto ao arbítrio inerente ao Direito Imposto: este que é uma grande parte do Direito Posto. Se o Direito é requerido, acaba aceito; mas, se o Direito é imposto, acaba contestado. Com o que também se vê que, a eficácia (objetividade e racionalidade jurídica) nem sempre é eficiente na avaliação da maioria (a subjetividade da interpretação política).
O Direito aceito (14) consensualmente é inerentemente coletivo, já a imposição tem reflexos particularizados: as sanções são implicações afetas aos atos específicos. “Vós sois responsáveis por vossos atos” – embora nem todos os responsáveis sejam responsabilizados. O Direito construído socialmente (não só promulgado) é desejado e bem vindo; já o mero “império da lei”, a condição de aplicabilidade/aplicação, pode ser mal-sã: é o caso típico da pena que não ressocializa ninguém.
O Direito pode ser tanto o desejo por justiça, quanto a repulsa ao arbítrio, a denúncia do abuso da força e “da tirania dos poderosos”. O Bom Direito, portanto, é um exercício de comando (“efetuar com…”), em que pese a imposição revele o ato e o autor do mandonismo. O Comando representa, o mandonismo quer simular: no fundo, todo mandarim procura por um direito que lhe permita mandar sem ser comandado (15). O direito que vem do comando é a súmula de cada um, o interior “comum a todos”, em virtude do mandarinato que se resume a um sumo que só consta da casca, sendo este o exterior isolado do que possa haver de melhor (16). Vê-se que o Direito social é próximo à moral e que o Direito como poder pode limitar-se ao malgrado uso da força.
De forma não dogmática e nem ideológica, o Direito tanto pode ser o Direito Injusto (próximo à moral oficialmente estabelecida, dos valores forçadamente equiparados), quanto pode ser resistência, contrariando a moral estabelecida e assim colocando-se como princípio de justiça – neste caso, se e quando a moral oficial torna-se indesejada pode ser alterada revolucionariamente. O estudo do Direito esclarece tanto sobre clareza e justiça, quanto acerca do cinismo, da injustiça (17). Enfim, o Direito é um filamento social: tanto pode ser o fio condutor da consciência e da liberdade, quanto pode gerar um curto-circuito entre as pessoas, a sociedade e o Estado.
De todo modo, não há um Direito amoral, pois todo Direito é relacionado à “consciência dos valores”, havendo o reconhecimento dos valores propostos, seja para recepcioná-los, seja para afrontá-los. Mas, já dissemos, há muito direito imoral, especialmente num Estado que funciona mal, como é o nosso caso. Também pudemos observar que, na vigência deste modelo de Estado Funcional (não-liberal), a justiça é irreal.
No bojo do Estado social e politicamente exclusivista, também a visão plural necessária à prestação jurisdicional, está depreciada. Este, entretanto, é um aspecto por demais relevante que preferimos tratar como se fora o próprio objeto do que se convencionou chamar de pluralismo jurídico.
Pluralismo Jurídico
O Brasil não é justo? Direito não é Justiça? Como isto se relaciona com o pluralismo jurídico?
Tradicionalmente, define-se o chamado pluralismo jurídico (uma forma de análise crítica do Direito), como uma análise investigativa dos fatores externos à produção do Direito: aspectos econômicos, sociológicos, políticos, antropológicos. Pois, a produção do Direito tanto segue diretrizes e normas institucionais (processo legislativo estatal), quanto se intercomunica com as fontes sociais, plurais, globais, portanto, menos tradicionais do Direito.
Assim, têm-se no Direito um fenômeno de projeção social e não apenas estatal. Neste caso, o Direito é interpretado como constructo social ou parte do processo social e apenas subsidiariamente como artefato do aparelho estatal: “o Estado é parte integrante da sociedade, não é independente e nem está acima ou abaixo dela, pois não fica numa ilha isolada do Pacífico”. Nesta concepção, privilegia-se mais a relação Estado/sociedade e menos a função legislativa do Estado: mais a demanda social e menos a vontade do Estado. Portanto, requer-se a justiça social (o Direito Justo), muitas vezes em detrimento do próprio ordenamento jurídico.
E o que se deve considerar no âmbito desse pluralismo jurídico?
Analisemos alguns poucos aspectos, como: 1) expressões da vida produtiva; 2) especificidades da formação sócio-cultural; 3) representações sociais e instituições; 4) modo de produção; 5) organização político-institucional, especialmente a estrutura do Estado; 6) processos ideológicos de dominação
E o que implica cada item? Vejamos uma breve sinopse:
1) deve-se considerar a produção da vida social e pessoal, por exemplo: os níveis de desemprego estrutural da sociedade ou o chamado subemprego, a economia informal ou, até, a evasão de divisas advindas da produção (ou corrupção);
2) por organização social deve-se ressaltar a análise da organização social, estabelecida no contexto da divisão em classes sociais e/ou em grupos de poder. No nosso caso, tome-se o “jeitinho brasileiro” (as tentativas de burlar o que é regular ou, simplesmente, corromper algumas estruturas morais e institucionais), o racismo, o elitismo, a miscigenação, o patriarcalismo (“Estado nominalmente liberal”) e o “verde-amarelismo” (o patriotismo piegas que não vê falhas na formação cultural, acrítico: do tipo “Deus é brasileiro”);
3) no Brasil, temos uma organização política basicamente liberal e nominal: limitando e restringindo a prática política popular e limitando-se à democracia política, aos direitos políticos, à democracia representativa. Mas, inversamente, não poderíamos ter avançado em direção à democracia social ou social-democracia? De qualquer modo, ainda se deve discutir a democracia econômica, a democracia ativa (plebiscitária, mas não limitada ao “direito de voto”) e a democracia radical: a auto-organização social e popular como “um poder constituinte popular, ativo, permanente, inovador”;
4) como se organiza o capitalismo no Brasil? Está integrado, globalizado, e sofre dos males da mundialização do capital especulativo. Porém, de modo periférico ao capitalismo, tem traços de relação feudal (“mandonismo”) e escravidão;
5) como se organiza nossa “República Federativa”: como Estado Unitário, teria menos problemas? Por que no Estado Democrático de Direito brasileiro (em Portugal é Estado de Direito Democrático) há tamanha centralização político-administrativa?
6) Nosso Direito está estruturado em bases ideológicas, a fim de manter a dominação de classe e a manutenção dos privilégios de grupos sociais e políticos dominantes e hegemônicos. Nosso liberalismo nominal, desde a Proclamação da República, vem alimentando o formalismo processual e limitando as ações do Estado às formalidades e garantias dos direitos individuais;
7) o “formalismo e o nominalismo jurídico” não permitem a concretização dos direitos sociais. Mas, por quê?
Direitos Sociais Fundamentais
Inicialmente, pode-se indagar se os direitos fundamentais são da ordem da natureza humana (Direito Natural) ou se, ao contrário, partem de um amplo constructo social, isto é, seriam construídos socialmente. Será que expressam só a vontade do Estado ou são clássicas conquistas populares e democráticas?
Os direitos fundamentais representam garantias populares resguardadas pela Vontade de Constituição (a reserva de justiça obtida por meio de um maior grau de constitucionalização do poder político) ou, contrariamente, são meras deduções teóricas desse mesmo Estado Constitucional?
É óbvio que não se responde prontamente a essas questões, pois, se são teorias (ideologias), são também construções históricas (sociais). De todo modo, são direitos democráticos e assegurados, constitucionalizados, legitimados – muitos tornados auto-aplicáveis. Para Canotilho (s/d, pp. 285-286):
Da mesma forma que o princípio do estado de direito, também o princípio democrático é um princípio jurídico-constitucional com dimensões materiais e dimensões organizativo-procedimentais (…) normativo-substancialmente, porque a constituição condicionou a legitimidade do domínio político à prossecução de determinados fins e à realização de determinados valores e princípios (soberania popular, garantia dos direitos fundamentais, pluralismo de expressão e organização política democrática); normativo-processualmente, porque vinculou a legitimação do poder à observância de determinadas regras e processos.
Poder-se-á, no entanto, objetar honestamente que há limites práticos, objetivos, efetivos (não só políticos ou partidários), na capacidade do Estado e da sociedade para se efetivarem os direitos fundamentais. Para essa modalidade de crítica do Direito, a alegação política de cunho humanitário, encontra uma constante e eficaz barreira econômica, que impede a passagem da teoria do direito à prática da justiça.
No Brasil, há uma incapacidade ou insuficiência econômica aliada à inoperância institucional, há despreparo e descaso como há o acaso da natureza (os sertões e a caatinga convivem pari passu com a indústria da seca). Mas, por que é que os direitos fundamentais não encontram meios de se realizarem ou simplesmente são descumpridos?
Não é de se estranhar, com o que viemos analisando, que outros tantos teóricos cheguem a defender a idéia de que os direitos sociais fundamentais, em grande parte, espelham a visão longínqua das normas constitucionais programáticas e, por isso, necessitam de posterior regulamentação em legislação infraconsitucional – além de que são meros objetivos, só uma sinalização de longo prazo, expressão da boa vontade do legislador para com a sociedade e deveriam nortear os passos dos governantes da ocasião. A despeito da boa vontade, da crença sincera de muitos que assim se posicionam, isto soa mais para cinismo e escapismo do que inspira qualquer relevância analítica e teórica. Isto é, a base político-jurídica assenta-se em outras dimensões muito mais alongadas e profundas, como ainda temos em Canotilho (s/d, p. 289):
Tal como são um elemento constitutivo do estado de direito, os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma função democrática dado que o exercício democrático do poder: (1) significa a contribuição de todos os cidadãos (…) para seu exercício (princípio-direito da igualdade e da participação política); (2) implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício (o direito de associação, de formação de partidos, de liberdade de expressão, são, por ex., direitos constitutivos do próprio princípio democrático); (3) co-envolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais, econômicos e culturais, constitutivos de uma democracia econômica, social e cultural (…) Realce-se esta dinâmica dialética entre os direitos fundamentais e o princípio democrático.
E este parece que é o real motor que deveria impulsionar os direitos sociais fundamentais, ou seja, o princípio democrático que, nesta fase avançada da reflexão jurídica, deveria coabitar todo o conjunto do ordenamento jurídico. Ao contrário daquela estreita análise que ainda se baseia nas meras intenções do Estado, pois, não querendo o administrador subordinar-se ao preâmbulo da Constituição, estaria livre para aplicar sua própria concepção do realismo político. O que, certamente, não se coaduna com os clássicos do Estado Democrático de Direito Social:
Ao pressupor a participação igual dos cidadãos, o princípio democrático entrelaça-se com os direitos subjetivos de participação e associação, que se tornam, assim, fundamentos funcionais da democracia. Por sua vez, os direitos fundamentais, como direitos subjetivos de liberdade, criam um espaço pessoal contra o exercício de poder antidemocrático, e, como direitos legitimadores de um domínio democrático, asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática (princípio majoritário, publicidade crítica, direito eleitoral). Por fim, como direitos subjetivos a prestações sociais, econômicas e culturais, os direitos fundamentais constituem dimensões impositivas para o preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos (Canotilho, s/d, p. 289).
De todo modo, diante da hipossuficiência social e econômica que enfrentamos há séculos (agravada na última década), é claro que temos de tomar o Direito como algo além de um belo e ordeiro “sistema fechado de normas”. Nessa mesma esteira, podemos entender porque não bastam (ou nem são necessários ou oportunos) os assim chamados operadores do direito: intérpretes pragmáticos, funcionais, utilitários, estruturais da lei (do Direito Posto). Ou seja, em oposição, podemos concluir pela necessidade e oportunidade (extrema relevância) dos agentes de transformação do Direito e da sociedade.
Nesta perspectiva histórica, portanto, são vistos como direitos fundamentais, os direitos sociais, culturais, trabalhistas, bem como tanto é elementar a saúde e a educação, quanto o direito ao lazer. Mas deve-se ressaltar que, na práxis política estatal, os direitos fundamentais recebem uma interpretação restritiva, limitada, relegando-os ao plano inicial dos direitos individuais – na verdade, a única geração de direitos que recebe a salvaguarda das cláusulas pétreas. Daí que os direitos fundamentais são entendidos limitadamente como sendo porta-vozes dos direitos civis ou individuais.
Em sentido complementar também vem a onda apelidada de desregulamentação (já vista como “flexibilização”), que na melhor das hipóteses remete ao mercado a atribuição moral de substituir o Estado na sua capacidade jurisdicional. Em sentido um tanto diverso, pois destaca a idéia da desregulamentação da própria Constituição Dirigente (a constitucionalização programática das finalidades do Estado), Eros Roberto Grau nos adverte acerca da imensa/intensa necessidade de combatermos pela continuidade da constitucionalização do poder político. Assim, advertia-nos:
A minimização das responsabilidades políticas empalmadas pelo Estado em benefício de leis pretensamente naturais, que passariam a guiar nossos destinos, conduzirá ao sacrifício ainda maior da sociedade e ao surgimento de um “Estado Javert (18)”, policialesco, autoritário, mesquinho (Grau, 2003, p. 434).
Os direitos fundamentais, no entanto, são direitos sociais (e não vagamente naturais), coletivos, de amplitude integral e devem dar cobertura ao próprio princípio da dignidade da pessoa humana. E se nosso legislador entendeu de forma contrária, é porque o fez sob pressão econômica de grupos interessados em que os direitos protegidos pelas cláusulas pétreas fossem apenas os direitos individuais (na Constituinte de 1986, chama-se “Centrão”). Trata-se, enfim, de uma deformação política e institucional, e não de um problema de ordem teórica, como se poderia aventar: a justiça social só existe na prática. Também esperamos ter indicado alguns motivos ou fatores que levaram e ainda hoje levam este tipo de Estado Funcional brasileiro a ter tantas disfunções.
Deve-se frisar que, todo Estado moderno é um Estado Funcionalista – sobretudo em razão de se oferecer ou propugnar-se por um serviço público, com o Estado funcionando para isso – especialmente no século XX. Ademais, o modelo preponderante neste curso de meio século é o próprio Estado Capitalista, com o capital ditando as regras e os objetivos gerais do próprio Estado. Porém, nos últimos 50 anos, vimos um acirramento ou recrudescimento desse modelo, com a reclusão quase absoluta dos ideais liberais – livre mercado, livre concorrência – definhando-se, portanto, e definindo-se mais proximamente do que a literatura sociológica chama de Capitalismo Monopolista de Estado.
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Notas
1 Adiantando-nos a uma outra discussão trazida pelo texto, veremos que este Direito Liberal é apenas aparentemente liberal, pois que só existe na aparência das relações sociais, políticas e jurídicas. No fundo, o direito aparentemente liberal enaltece uma forma de direito imoral, injusto, e isto se dá porque é imposto a todos com o caráter de servir a alguns poucos. Por isso, a justiça também acaba irreal.
2 Veja-se, por exemplo, Debray, 1994.
3 Um crescimento do controle até mesmo sobre a Internet: o meio de interação mais livre já desenvolvido. Esta ofensiva que, por sua vez, é só uma pequena espora desta gestão indevida e controlativa do espaço público e privado, uma vez que faz parte de um amplo processo de coisificação.
4 Em muitas partes desenvolvidas da economia global, os Estados-Nação organizados e renitentes ainda conseguem servir adequadamente às suas economias internas. Deve-se dizer, seguindo a lógica elementar do novo mercado, que quanto maior a massa salarial, maior a demanda pelos bens de consumo. Ora, no Brasil, há uma década, experimentamos crises crônicas de desemprego e redução nominal nos pagamentos. Aliás, para agravar a situação, a economia brasileira decresceu em 2004 – o PIB (Produto Interno Bruto) foi de – 0,2%, um crescimento negativo.
5 Cabe frisar que, com esta terminologia, queremos destacar alguns contornos internos, a própria adaptação do Estado Neoliberal no Brasil – de forma geral, aqui, a idéia de eficiência do mercado (trabalho-consumo, e não poupança, como até recentemente) esbarra na hipossuficiência social e incompetência política.
6 Apenas como um dado prosaico desta situação, veja-se que ontem era o PT (Partido dos Trabalhadores) golpeando Fernando Collor de Melo e a Casa da Dinda – até a desocupação do Palácio -, e hoje é José Serra (candidato derrotado por Luís Inácio Lula da Silva) e o PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro) contra o mesmo PT de outrora, Lula, José Dirceu (“o presidente de fato” em 2003) e os bicheiros. Nos dois casos, a senha de ingresso para o butim do Estado foi a comum truculência política.
7 Lembremos que os Estados de traço ou ranço nazi-fascista promovem um processo de aculturação baseado no culto à personalidade, que é exatamente a indissociação entre a personalidade pública (o governante) e o cargo que ocupa ou função que exerce. Há uma sobreposição do primeiro sobre o segundo, isto é, a negação veemente desta característica democrática.
8 No final do texto, ainda veremos uma breve análise do pluralismo jurídico em consonância com esta aparente pluralidade política e econômica atual.
9 No Brasil, o maior partido político brasileiro chama-se Rede Globo e esta, por sua vez, segue as trilhas do Partido Mundial – a CNN americana.
10 Neste contraste, por exemplo, as elites modernas ou modernizantes podem ser francamente favoráveis à reforma agrária, como forma de contenção da violência, no campo e nas cidades, opondo-se abertamente à UDR: esta sim mais refratária à idéia de reforma social.
11 Um autor francês clássico do Direito Administrativo, um dos primeiros formuladores da própria expressão “serviço público”, notabilizando-se a partir de 1950.
12 Pode-se entender que deve haver um limite claro à privatização dos serviços essenciais ao público?
13 Refiro-me ao direito imoral como todo o Direito Posto que afronta os princípios gerais do direito.
14 O Direito aceito equivale ao direito proposto, confrontado, debatido, reconhecido e “promulgado”.
15 Uma situação que representa a quebra da regra da bilateralidade da norma jurídica, fazendo cessar o equilíbrio intrínseco à formulação teórica do Estado Jurídico. Em outras palavras, é como se o Estado estivesse se furtando da responsabilidade pública atribuída por ele próprio – sem dúvida, um contra-senso.
16 Em um breve resumo: o comando gera mais interação e solidariedade (que vem de solidus), ao passo que o mandonismo espelha a entropia e a esterilidade da apatia social.
17 O Direito faz parte do processo civilizatório, impulsionando-o, porque reúne condições objetivas, tem força moral e institucional, instrumentos, princípios e dogmas capazes de nos redimir das barbáries e do achacamento perpetrados pelo realismo político.
18 O autor faz referência ao romance Os Miseráveis, de Victor Hugo, no qual Javert, a personagem de um policial vingativo, limitado e burocrata, passa seus dias perseguindo Jean Valjan, um criminoso concenado às galés, mas que, fugitivo, esforça-se por recompor parte da vida e, assim, enriquecendo, passa a atuar como benemérito, como um criminoso-altruísta. Jean Valjan sofre uma perseguição implacável.