Por Marcelo Guerra Martins
A competência da Justiça Federal para processar e julgar as execuções fiscais promovidas pelos diversos conselhos de fiscalização profissional (CRM, CRO, CREA, CRECI, etc.) é fora de dúvida, eis que tais órgãos ostentam a natureza de autarquias federais. A eles se aplica, portanto, a previsão do artigo 109, inciso I, da Constituição de 1988, conforme já decidiu o STF em diversas ocasiões (v.g. MS 21.797 e 22.643).
Em média, 36,4% (ou seja, mais de um terço) de todas as centenas de milhares de execuções fiscais que tramitam pelos pretórios federais ostentam algum conselho de fiscalização profissional como autor. É o que constatou estudo engrendrado pelo Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)[1]. Dentre outras revelações, a citada pesquisa aponta que:
a) o valor médio das execuções fiscais em curso na Justiça Federal é de R$ 22.507,51, sendo: R$ 26.303,81 nas cobranças da União e R$ 1.540,74 para os casos dos conselhos;
b) o custo médio de cada uma dessas cobranças (independentemente de quem figure no polo ativo) é de R$ 4.685,39.
Dentro dessa realidade, considerando que os objetivos primordiais dos conselhos ligam-se muito mais à consecução de interesses comuns dos membros de uma categoria profissional do que ao financiamento do Estado na consecução das necessidades públicas, defende-se que essas cobranças passem por um juízo prévio de admissibilidade.
Seria oportuno, por exemplo, que as execuções dos conselhos passassem pelo crivo da economicidade, de modo a determinar-lhe o processamento ou, noutro giro, o arquivamento sem baixa na distribuição.
A economicidade nada mais significa do que uma análise de custo-benefício sobre determinada atividade ou situação. Conforme previsto no caput do art. 70 da Constituição, a economicidade é um dos parâmetros utilizados no controle e fiscalização das despesas públicas, ao lado da legalidade e da moralidade. Na lição de Romeu Bacellar Filho[2]:
“a economicidade exprime a idéia de proporcionalidade entre fins e meios, notadamente na relação custo-benefício. Ademais, é deveras relevante que na ação administrativa se busque o melhor resultado pelo menor custo”.
Em analogia, a economicidade aproxima-se do “agir racionalmente” sugerido pelos economistas neoclássicos, bem sintetizado por Richard Posner[3], ou seja, as inúmeras opções tomadas por alguém (presumivelmente um ser racional) repousam na expectativa de que os benefícios daí gerados superarão os custos incorridos em face da escolha.
Aplicada na execução fiscal, atender à economicidade nada mais significa do que prever que o custo da cobrança seja inferior ao benefício buscado. Aliás, chega a ser intuitivo que respeitar tal critério é de suma importância, ainda mais quando estiverem em cena recursos públicos (in casu os gastos com a manutenção do sistema judiciário), sempre preciosos, escassos e finitos, notadamente em países em desenvolvimento como é o caso do Brasil.
Acontece que, conforme apontado acima, o valor médio das execuções dos conselhos (R$ 1.540,74) é muito inferior ao custo médio da cobrança fiscal federal (R$ 4.685,39).
Nesse contexto, indaga-se: é razoável permitir que mais de um terço das centenas de milhares de execuções fiscais que se processam perante a Justiça Federal simplesmente ignore a questão da economicidade? Sob pena de subverter a racionalidade, fica difícil admitir resposta diversa da negativa.
Em adição, conforme constatou a mencionada pesquisa CNJ-IPEA: “A execução fiscal vem sendo utilizada pelos conselhos de fiscalização das profissões liberais como instrumento primeiro da cobrança de anuidades”[4]. Ao que tudo indica, os Conselhos sequer laboram em tentativas prévias de cobrança amigável, como é usual ocorrer nos créditos da União.
Levando em conta que o pré-falado “agir racionalmente”, em tese, permeia todas as ações humanas, infere-se que para os conselhos provavelmente sai mais barato ajuizar diretamente a execução ao invés de tentar a cobrança amigável, com os custos de envio de cartas e notificações.
De fato, essa assertiva fica ainda mais plausível se for lembrado que os Conselhos encontram-se isentos do pagamento das custas judiciais nas execuções, a teor do artigo 39 da Lei de Execuções Fiscais.
Contudo, tal postura, sem qualquer dúvida, mostra-se contrária ao interesse da sociedade como um todo, ainda mais porque, segundo já afirmado, os objetivos dos conselhos se amoldam muito mais aos interesses comuns de determinada categoria profissional do que ao financiamento das principais necessidades públicas.
Assim, em resumo, a grande maioria dos contribuintes financia a cobrança de créditos que, embora qualificados como tributos, pouco ou nada acrescentarão em termos de melhoria das atividades e serviços estatais. E, ainda por cima, essas cobranças são altamente deficitárias, isso é, implicam num custo muito maior do que o possível resultado.
No âmbito das execuções da União (capitaneadas pela PGFN), o artigo 20 da Lei 10.522/02 (com a redação dada pelo artigo 21 da Lei 11.033/04), estabelece que as cobranças inferiores a R$ 10.000,00 devam ser arquivadas, sem baixa na distribuição, podendo a execução ser retomada caso a dívida consolidada supere a dita importância.
Ora, trata-se de evidente juízo de economicidade. Desse modo, o credor pode concentrar esforços nas execuções de maior valor, majorando a possibilidade de satisfação de seu crédito, bem como há alívio na máquina judiciária, com menos casos tramitando.
Em tais hipóteses, remeter a execução ao arquivo não significa extinguir por sentença o crédito fiscal, prática, aliás, não admitida pela lei, conforme decidiu o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp. 1.111.982 (Rel. Min. Castro Meira, j. 25.05.2009), submetido à sistemática do artigo 543-C do Código de Processo Civil.
Não obstante a sistemática do artigo 20 da Lei 10.522/02 dirigir-se aos créditos da União, dado o mandamento constitucional da economicidade (artigo 70, caput da Carta Magna), nada impede sua aplicação, mesmo que por analogia, às cobranças fiscais dos conselhos.
Aliás, nesse diapasão, decidiu o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar agravo no REsp. 945.488, proveniente de execução fiscal promovida pelo Conselho Regional de Farmácia de São Paulo. Ainda que o julgado não mencione expressamente a economicidade, as razões de decidir deixam implícito esse sopesamento. A ementa é a seguinte:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CONSELHO REGIONAL DE FARMÁCIA. EXECUÇÃO FISCAL. DÉBITO INFERIOR A R$ 10.000, 00. ARQUIVAMENTO DO FEITO, SEM BAIXA NA DISTRIBUIÇÃO. AGRAVO IMPROVIDO.
1. A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.111.982/SP, Relator Ministro Castro Meira, publicado no DJe de 25/5/2009, submetido à sistemática do artigo 543-C do Código de Processo Civil (recursos repetitivos), firmou o entendimento de que a execução fiscal relativa a débitos iguais ou inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais) deve ter seus autos arquivados, sem baixa na distribuição, devendo ser reativados se os valores dos débitos vierem a ultrapassar tal limite, como resulta da letra do artigo 20 da Lei nº 10.522/2002.
2. Agravo regimental improvido.
(1ª Turma, j. 10.11.2009, Rel. Min. Hamilton Carvalhido).
Por conseguinte, defende-se que as execuções fiscais aforadas pelos conselhos de fiscalização que busquem valores inferiores ao custo médio de cobrança (R$ 4.685,39) devem ser, de plano, remetidas ao arquivo (por ofensa ao princípio constitucional da economicidade), lá devendo permanecer até que o montante da dívida supere o ônus esperado para o respectivo processamento.
Conforme visto, há precedente do Superior Tribunal de Justiça nessa linha, decisão que inclusive tomou postura mais rigorosa ao determinar o arquivamento de execução fiscal com valor inferior a R$ 10.000,00.
Interpretação contrária, além de agredir a economicidade, não se coaduna com a razoabilidade, parâmetro que, indiscutivelmente, deve inspirar todas as ações e políticas estatais.
É preciso, outrossim, que a comunidade jurídica, principalmente os juízes, comecem a refletir sobre o tema e sopesem os interesses em jogo na tomada de decisões mais abalizadas a respeito, mesmo que seja para desacolher os argumentos aqui lançados.
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[1] O estudo foi desenvolvido em 2010 e tem como título: Custo unitário do processo de execução fiscal na justiça federal. Encontrara-se disponível no site do IPEA in:
[2] Tribunal de contas. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 59.
[3] Trata-se de Richard Posner, baluarte do movimento da Law and Economics nos Estados Unidos, na Universidade de Chicago. Segundo o autor: “Deve ficar subentendido que tanto as satisfações não-monetárias quanto as monetárias entram no cálculo individual de maximização (de fato, para a maioria das pessoas o dinheiro é um meio, e não um fim), e que as decisões, para serem racionais, não precisam ser bem pensadas no nível consciente – na verdade, não precisam ser de modo algum conscientes. Não nos esqueçamos de que “racional” denota adequação de meios a fins, e não meditação sobre as coisas, e que boa parte de nosso conhecimento é tácita” (in Problemas de filosofia do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 474).
[4] Página 8.
Marcelo Guerra Martins é juiz federal em São Paulo, convocado no STF desde 2009. Mestre e Doutor pela Universidade de São Paulo.