Autor: Francisco Sannini Neto (*)
Na quarta-feira (17/2), durante o julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP, de relatoria do ministro Teori Zavascki, o Supremo Tribunal Federal modificou sua jurisprudência e firmou o entendimento no sentido de permitir a execução provisória da pena após a confirmação de condenações criminais em segunda instância, vale dizer, pelos tribunais de Justiça.
A decisão se deu por maioria de sete a quatro, sendo vencidos os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. No seu voto, o relator destacou, em outras palavras, que é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, demais disso, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado. Para o ministro Zavascki, os recursos de natureza extraordinária não seriam desdobramento do duplo grau de jurisdição, uma vez que não são recursos de ampla devolutiva, pois não servem ao debate da matéria fática probatória.
Criou-se, nesse contexto, uma verdadeira inversão da presunção de inocência a partir da manutenção da condenação pelos tribunais. Por óbvio, a decisão do STF gerou repercussão imediata no meio jurídico, merecendo, de um modo geral, os elogios de juízes e promotores e severas críticas de advogados.
Particularmente, parece-nos que estamos diante de mais uma decisão política do STF, influenciada pelo clamor público. Aliás, nas palavras do ministro Luiz Fux, “houve uma deformação eloquente da presunção de não culpabilidade”, previsto na Constituição da República, sendo que, para ele, “isso não corresponde à expectativa da sociedade”.
De fato, não nos surpreendeu essa decisão, especialmente em tempos de operação “lava jato”, num cenário onde toda a sociedade clama por justiça e pela caça aos corruptos. É claro que essa mudança de paradigma na jurisprudência da nossa corte maior tem por foco os acusados da lava-jato. Estamos diante do império do “contorcionismo jurídico”, onde uma boa dose de retórica é capaz de mudar o rumo da justiça criminal. Foi o que acorreu, por exemplo, no julgamento do RE 593.727, em que o STF reconheceu o poder investigatório do Ministério Público, a meu ver, ser qualquer respaldo constitucional.
Nesse sentido, não causará surpresa se amanhã ou depois o Supremo, visando atender os anseios da sociedade e da própria mídia, decidir que em todos os casos de morte no trânsito decorrente de embriaguez ao volante, o motorista deverá responder por homicídio doloso a título de dolo eventual.
Voltando ao tema, Cesare Beccaria ensina, na sua estupenda obra Dos delitos e das penas, que “um homem não pode ser chamado de réu antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada”.[1]
Em estreita síntese, podemos afirmar que o princípio da presunção de inocência, ou, como preferem alguns, o estado de inocência, significa que nenhuma pessoa será considerada culpada antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória [2]. Destaque-se que este princípio encontra respaldo legal no Pacto de São José da Costa Rica e, sobretudo, na Constituição da República.
Na verdade, se analisarmos o conteúdo do artigo 5º, inciso LVII, da CR, nós perceberemos que este dispositivo consagra o princípio da presunção de não culpabilidade, senão vejamos: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Conforme se depreende da análise do dispositivo, há, de fato, uma presunção de não culpabilidade, mas não de inocência. Parece-nos que a intenção do legislador constituinte foi assegurar que nenhuma pessoa seja tratada como culpada antes da sentença final, o que, com a devida vênia, é bem diferente de considerá-la inocente. O que ocorre, nesse caso, é uma equivocada interpretação sobre o termo presunção, que indica apenas que uma pessoa provavelmente seja inocente, sem que haja qualquer juízo de certeza sobre este fato. Justamente por isso, nada impede que esta pessoa seja investigada, processada e até submetida a uma medida cautelar, afinal, não se pode afastar, de pronto, a possibilidade de ela ser culpada.
Como corolário lógico da adoção deste princípio pelo nosso ordenamento jurídico, surgem duas regras fundamentais: regra probatória (in dubio pro reo) e regra de tratamento.
Em virtude dessa primeira premissa que impõe uma regra probatória, cabe à acusação demonstrar a culpabilidade do acusado sem que haja qualquer dúvida razoável. Consequentemente, o réu não precisa provar a sua inocência, afinal, já há uma presunção nesse sentido. Assim, tendo em vista que a sentença final condenatória exige um juízo de certeza sobre os fatos, o princípio da presunção de inocência acaba se confundindo, ao menos nesse aspecto, com o princípio do in dubio pro reo. Havendo dúvida, portanto, o juiz deve absolver o acusado.
A regra de tratamento, por outro lado, proíbe que o Estado-Juiz ou o Estado-Investigador se comporte em relação ao acusado/investigado como se ele já tivesse sido condenado definitivamente. O reflexo dessa compreensão impõe, entre outras coisas, que a prisão cautelar seja decretada apenas em último caso, quando as demais medidas cautelares se mostrarem insuficientes ou inadequadas. Vale salientar, ademais, que tal regra de tratamento produz efeitos, inclusive, para fora do processo, impedindo, por exemplo, a publicidade abusiva e a estigmatização do acusado/investigado.
Estabelecidas essas premissas, deve-se reiterar que com o julgamento desta quarta-feira o STF alterou o sentido do princípio da presunção de inocência, estabelecendo uma verdadeira inversão dessa lógica a partir da condenação em segundo grau. Vejamos as palavras do relator:
“Nessas circunstâncias, tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundados em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado”.
Data máxima vênia, por mais que sejamos contra os excessos recursais hoje existentes, não enxergamos espaço para essa interpretação do artigo 5°, LVII, da CR, afinal, o texto fala em trânsito em julgado e isso significa a impossibilidade de qualquer tipo de recurso. Com efeito, a famigerada decisão repercutirá em outros temas penais, por exemplo, no conceito de reincidência. Será que agora o sujeito poderá ser considerado reincidente a partir da confirmação da condenação pelos tribunais?! Acreditamos que não!
Contudo, entendemos que nesse cenário tais decisões devem servir, pelo menos, para gerar maus antecedentes, como já deixou transparecer a corte no julgamento dos Habeas Corpus 94.620 e 94.680, onde a maioria dos ministros, ao rever uma decisão com repercussão geral (RE 591.054), se manifestaram no sentido de que inquéritos policiais e ações penais em andamento podem ser considerados no cálculo da dosimetria da pena.
Percebe-se, assim, a dimensão da importância da decisão proferida nesta quarta-feira. Parece-nos que se o objetivo era dar uma resposta mais célere aos criminosos, o ideal seria firmar o entendimento de que eventual condenação em segundo grau poderia justificar a decretação da prisão preventiva do acusado e não a execução provisória da pena. Dessa forma, seria resguardado o sentido de presunção de inocência previsto no texto constitucional, não sendo afetado, outrossim, o próprio significado detrânsito em julgado.
Isto, pois, o conceito de ordem pública é fluído, sendo que para a maioria da doutrina ele se relaciona com a periculosidade do agente e com a manutenção da paz social. Não é outro o escólio de Pacelli, senão vejamos:
a prisão para a garantia da ordem pública não se destina a proteger o processo penal, enquanto instrumento de aplicação da lei penal. Dirige-se, ao contrário, à proteção da própria comunidade, coletivamente considerada, no pressuposto de que ela seria duramente atingida pelo não-aprisionamento de autores de crimes que causassem intranquilidade social.[3]
Em sentido semelhante, Gomes Filho leciona que
à ordem pública relacionam-se todas aquelas finalidades do encarceramento provisório que não se enquadram nas exigências de caráter cautelar propriamente ditas, mas constituem formas de privação da liberdade adotadas como medidas de defesa social; fala-se, então, em ‘exemplaridade’, no sentido de imediata reação ao delito, que teria como efeito satisfazer o sentimento de justiça da sociedade; ou, ainda, a prevenção especial, assim entendida a necessidade de se evitar novos crimes.[4]
Nesse contexto, se a restrição da liberdade é possível mesmo na fase de investigação criminal, onde o juízo de culpabilidade sobre o investigado ainda está em formação, muito mais justificável seria a decretação de sua prisão após uma decisão condenatória em segundo grau, onde, conforme exposto, já teria se exaurido a possibilidade de exame de fatos e provas e, inclusive, já estaria delimitada a responsabilidade criminal do acusado.
Assim, tais condenações caracterizariam uma verdadeira presunção (relativa) de periculosidade do acusado, destacando-se a prisão preventiva como medida necessária e adequada para assegurar a garantia da ordem pública e restabelecer a paz social abalada pela prática do crime.
Em conclusão, a despeito do caráter político da decisão proferida pelo STF, reforçamos a distinção feita pela doutrina entre o princípio da presunção de inocência e o princípio da presunção de não culpabilidade, afinal, garantir que o acusado não seja tratado como culpado é bem diferente de se afirmar a sua inocência de maneira peremptória. Agora só nos resta aguardar os desdobramentos desse julgamento!
Autor: Francisco Sannini Neto é delegado de polícia do Estado de São Paulo, mestrando em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. É professor da Graduação e da Pós-graduação da UNISAL/Lorena.