ESTATUTO DO DESARMAMENTO – armas de uso permitido e restrito e outras considerações

Ainda sobre a nova Lei das Armas, resolvi concatenar outras reflexões, que tenho a honra de compartilhar com o gentil leitor.

1. Uso permitido x uso restrito.

Com o advento do Estatuto do Desarmamento, surgiu nas lides forenses uma incompreensível polêmica em torno da caracterização do crime do art. 16 da Lei n.º 10.826/03, ao argumento de que, com a revogação expressa da Lei nº 9.437/97, determinada pelo art. 36 do nóvel Estatuto, o Decreto n.º 2.222/97, que regulamentava a velha Lei, também teria sido revogado, já que a revogação da Lei regulamentada implicaria na revogação do decreto regulamentador, até mesmo diante de uma máxima de que o “acessório segue o principal”.

Sem embargo do acerto da premissa, penso que as conclusões que dela se tiram são absolutamente equivocadas, data maxima venia.

Chegou-se ao cúmulo de dizer que, até que viesse o Decreto regulamentador da nova Lei, não haveria como ninguém ser punido pelo crime de porte de arma, dada a suposta inexistência de norma a definir os conceitos de “arma de fogo de uso permitido” e “arma de fogo de uso restrito”. Afirmara-se, então, que, sendo o art. 14 e o próprio art. 16 do Estatuto normas penais em branco, dependeriam do aguardado Decreto regulamentador para que se aperfeiçoassem em sua tipicidade.

A posição, sem embargo do respeito que merecem seus doutos defensores, não pode prosperar.

Em primeiro lugar, destaca-se o absurdo da assertiva quanto à suposta atipicidade do art. 14, porque em momento algum seria preciso regulamentar o que seria “arma de fogo de uso permitido”. O que era preciso, ad argumentandum, era regulamentar o que seria “arma de fogo de uso restrito”. Assim, no mínimo, convenhamos, poder-se-ia discutir que, até que viesse o tal Decreto, não haveria como distinguirem-se as armas de fogo em “de uso restrito” e “de uso permitido”, ficando-se, no suposto silêncio regulamentar, sempre com o crime do art. 14, inaplicando-se, somente, o art. 16 (até que viesse o regulamento, incidiria em qualquer caso o crime de porte de arma “de uso permitido”, cuja conceituação, por seu caráter residual, dispensa qualquer regulamentação).

Reduzida a controvérsia a apenas esta vertente, ainda assim mostra-se seu equívoco.

É que o prefalado Decreto n.º 2.222/97 não dedicava uma única linha para classificar legalmente as armas de fogo, reportando-se, nesta tarefa, ao Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados do Exército, o conhecido R – 105, que não está ligado umbilicalmente a nenhuma lei de armas, até porque é anterior à própria Lei nº 9.437/97. Portanto, tal Regulamento continuava, como continua, em pleno vigor, tendo sido recepcionado pela Lei n.º 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), apto, portanto, a conceituar o que seja “arma de fogo de uso restrito” e, residualmente, “arma de fogo de uso permitido”, de sorte a permitir a plena aplicação dos tipos dos arts. 14 e 16 do Estatuto, conforme o caso.

Ora, se as próprias Constituições Federais, ao serem editadas, recepcionam as Leis Infraconstitucionais que com elas não conflitarem, não há a menor razão, por um princípio de continuidade normativa, para que o Estatuto do Desarmamento não tenha recepcionado as regras do R – 105.

Com bastante atraso, venho, enfim, o esperado Decreto regulamentador do Estatuto, o Decreto n.º 5.123/04, de 1o de julho, publicado no dia seguinte.

Tanta polêmica, tanta expectativa, para o decreto se limitar a dizer, neste ponto, em seu art. 10, que “arma de fogo de uso permitido é aquela cuja utilização é autorizada a pessoas físicas, bem como a pessoas jurídicas, de acordo com as normas do Comando do Exército e nas condições previstas na Lei n.º 10.826, de 2003” (os grifos são nossos), e em seu art. 11, que “arma de fogo de uso restrito é aquela de uso exclusivo das Forças Armadas, de instituições de segurança pública e de pessoas físicas e jurídicas habilitadas, devidamente autorizadas pelo Comando do Exército, de acordo com legislação específica”. Para arrematar, repetindo o Decreto n.º 2.222/97, ainda dispõe o art. 49 do novo Decreto: “a classificação legal, técnica e geral e a definição das armas de fogo e demais produtos controlados, de uso restrito ou permitido, são as constantes do Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados e sua legislação complementar”.

Em suma, a classificação legal das armas era feita, continou e continuará sendo feita nos termos do R – 105, inexistindo qualquer razão para se postergar aplicação ao art. 16 do Estatuto do Desarmamento, evidentemente para os crimes ocorridos após a entrada em vigor do Estatuto.

Neste diapasão, são armas de fogo de uso restrito, dentre outras, nos termos do art. 16, III, do R – 105, as “armas de fogo curtas, cuja munição comum tenha, na saída do cano, energia superior a trezentas libras-pre ou quatrocentos e sete Joules e suas munições, como por exemplo os calibres .357 Magnum, 9 mm Luger, .38 Super Auto, .40 S & W, .44 SPL, .44 Magnum, .45 Colt, e .45 Auto”. E são armas de fogo de uso permitido, dentre outras, nos termos do art. 17, I, do R – 105, as “armas de fogo curtas, de repetição ou semi-automáticas, cuja munição comum tenha, na saída do cano, energia de até trezentas libras-pe ou quatrocentos e sete Joules e suas munições, como por exemplo os calibres .22 LR, .32-20, .38-40 e .44-40”.

Aqui se tomam, apenas, as armas de fogo curtas, para ilustrar, porque armas cujo porte é mais corriqueiro, valendo, todavia, uma consulta ao R – 105, em especial seus arts. 16 e 17, cujas disposições, reafirma-se, são as que fornecem os elementos necessários à complementação das normas em branco dos arts. 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento, a definir, portanto, quando se trata de “arma de fogo de uso restrito” e quando se trata de “arma de fogo de uso permitido”.

2. Abolitio criminis.

Um outro equívoco tem ocorrido, decorrente de interpretação equivocada do art. 36 do Estatuto do Desarmamento. Tal artigo, como dito, revogou expressamente a Lei nº 9.437/97. Mas isto não acarreta em abolitio criminis, na forma do art. 2o c/c 107, III, do Código Penal.

É que a abolitio só ocorre quando a Lei posterior deixa de considerar o fato como criminoso, o que nem de longe aconteceu. Com efeito, o Estatuto continua considerando o porte de arma como crime, inclusive agrava-lhe desmedidamente as sanções.

Não é pelo simples fato de uma lei incriminadora ter sido objeto de revogação expressa que a conseqüência disto será a abolitio. Tal não ocorrerá quando a Lei revogadora redefinir o fato como crime, modificando-lhe a sanção ou introduzindo outras modalidades de conduta, o que aconteceu na hipótese em exame. Aqui o fato – portar arma de fogo – continua sendo crime, razão pela qual não haverá abolitio, pouco importando se este fato passa a ser regido por outra Lei que, inclusive, teria aplicação retroativa, nos termos do próprio art. 2o do Código Penal, repetido pelo art. 5o, XL, da vigente Constituição Federal, caso fosse novatio legis in melius, o que não é o caso do Estatuto.

Como o Estatuto, neste ponto, foi novatio legis in pejus, só terá aplicação aos crimes que ocorrem após a sua entrada em vigor, em prestígio ao princípio da anterioridade da lei penal, permanecendo, todavia, os crimes ocorridos sob o pálio da revogada Lei nº 9.437/97 por ela regidos. É a diferença entre vigência e eficácia das leis, já consolidada no conhecimento jurídico.

3. Medida Provisória em matéria penal e Lei n.º 10.884/04. Ainda em torno da incidência do art. 12 do Estatuto.

Sobre a incidência do art. 12 do Estatuto – posse irregular de arma de fogo de uso permitido – este autor já teve a oportunidade de escrever, em artigo intitulado “Estatuto do Desarmamento – não incidência, por ora, de seu art. 12”, publicado no Boletim IBCcrim (Informativo n.º 137, de abril do corrente ano).

Ora, enquanto fluir o prazo para os proprietários de armas de fogo sem registro regularizarem suas situações ou entregar aquelas armas à Polícia Federal, não se pode ter por configurado o crime de posse de tais armas dentro de casa. De se notar que a referência é à simples posse da arma dentro de casa; jamais ao porte dessas armas fora de casa, caso em que incidirão perfeitamente os arts. 14 e 16 do Estatuto, conforme o caso (se mesmo sendo registrada a arma, pode-se configurar o crime relativo ao seu porte sem autorização, quanto mais não o sendo). Se ainda há prazo para promover o registro da arma ou dela se livrar, presumindo-se a boa fé, não há como rotular o proprietário da arma de criminoso. Pensa-se que a conduta, até então, será atípica, porque não se concebe que a Lei dê um direito com um mão e o retire com a outra mão.

Esses prazos vêm estipulados nos arts. 30 e 32 do Estatuto e são de 180 (cento e oitenta) dias.

O problema todo gira em torno de seu termo a quo e, por conseguinte, sendo o que mais interessa, o seu termo ad quem, isto porque a conclusão lógica que se tira é no sentido de que ao término do prazo para regularização ou deposição das armas irregulares corresponderá o início da incidência do crime o art. 12 do Estatuto, ora em comento.

Inicialmente, tais prazos seriam contados do dia que se seguisse ao da publicação da Lei, nos precisos termos dos prefalados arts. 30 e 32. Como o Estatuto foi publicado em 23 de dezembro de 2003, os prazos terminariam em 20 de junho do corrente ano, podendo, no dia seguinte, 21 de junho, passar a incidir o crime do art. 12, concernente à posse de armas irregulares dentro de casa.

Sucede que a Medida Provisória n.º 174/04, adotada em 18 de março do corrente ano, estabeleceu que aqueles prazos só começariam a ser contados a partir da data de publicação do decreto que viesse a regulamentar a Lei. Pretendeu a Medida Provisória sustar a contagem dos prazos que havia se iniciado deste o dia seguinte ao da publicação da Lei e, a fortiori, impedir a incidência do tipo penal do art. 12.

Em artigo publicado em seu site, sob o título “Estatuto do Desarmamento: medida provisória pode adiar o início de vigência de norma penal incriminadora?”, Damásio de Jesus levanta pertinentes objeções à via legislativa elencada pelo Governo para, inicialmente, prorrogar os prazos para a regularização e deposição das armas, mas que, ainda que por via transversa, inexoravelmente repercutiriam na configuração de uma norma penal incriminadora, o destacado art. 12 do Estatuto. É que, neste ponto, ter-se-ia aborrecido o disposto no art. 62, § 1o, I, “b”, da Constituição Federal (redação dada pela Emenda Constitucional n.º 32/01), que veda a adoção de medida provisória em matéria penal. A conclusão, então, seria pela inconsticionalidade formal da Medida Provisória, o que faria com que o prazo estivesse fluindo e, então, se encerraria, como dito acima, no dia 20 de junho.

Para estancar qualquer dúvida e felizmente a tempo de evitar mais uma polêmica, foi sancionada a Lei n.º 10.884/04, publicada em 18 de junho do corrente ano. Esta lei substituiu e acabou por prejudicar a Medida Provisória n.º 174/04, que ficou sem objeto.

Nos termos do art. 1o da Lei em comento – que não é Lei de conversão, mas Lei em sentido formal, tranqüilizando o intérprete, porque imune de qualquer vício de constitucionalidade – os prazos de regularização/deposição de armas passariam a fluir da publicação do decreto, até então nos mesmos termos da Medida Provisória, com a seguinte novidade: “não ultrapassando, para ter efeito, a data limite de 23 de junho de 2004”.

O Decreto em questão – n.º 5.123/04 – foi publicado, para vigência imediata, em 02 de julho de 2004, portanto após aquela data limite estabelecida pela Lei n.º 10.884/04.

Afirma-se, então, que os prazos dos arts. 30 e 32 do Estatuto começaram, enfim, a correr desde o dia 23 de junho de 2004, inclusive (“não ultrapassando … a data-limite de 23 de junho…” – grifamos). Contando-se 180 (cento e oitenta) dias, segundo a regra do art. 10 do Código Penal, já que se trata de prazo penal, por sua repercussão na configuração de uma norma penal incriminadora, tem-se que terminarão em 19 de dezembro de 2004 os prazos para regularização, com a promoção do registro, ou a entrega à Polícia Federal, das armas de fogo em situação irregular.

Daí porque só a partir do dia seguinte – 20 de dezembro de 2004 – poder-se-á ter como cofigurado o crime do art. 12 do Estatuto.

Bom ressalvar, em epílogo, que este calendário sujeita-se, infelizmente, às variantes metajurídicas do Governo Federal.

Marcelo Lessa Bastos
Promotor de Justiça
Professor de Direito Processual Penal
da Faculdade de Direito de Campos
Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva
mlbastos@fdc.br

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