por Rodrigo de Moura Jacob
Nesse estudo não nos aprofundaremos aos tipos penais do estatuto do desarmamento, temos a intenção de tão-somente analisar aspectos intertemporais e processuais da lei 10.826/03, demonstrando que, entre a publicação da lei do desarmamento até 22 de maio de 2004 não há norma vigente para o caso de porte ilegal de arma de fogo, conforme disciplinado no art. 30 da lei 10.826/03.
A Lei 10.826/03 ab-rogou a Lei 9.437/97, ou seja, ocorreu revogação total, tendo em vista que a legislação nova disciplina integralmente sobre registro, posse, comércio, competência administrativa etc para tanto basta uma simples leitura dos dispositivos da lei 9.437/97 e da lei 10.826/03.
Os aspectos materiais que não foram reproduzidos, não mais prevalecerão no ordenamento jurídico, tais como, o uso de arma de brinquedo, aumento da pena por ser o agente servidor público ou ter condenação anterior por determinados crimes.
Para maior compreensão sobre a sucessão de leis nos socorreremos do brilhantismo costumeiro do Professor Luis Flávio Gomes, que, citando Américo A. Taipa de Carvalho, ao comentar a lei 9.983/00 face a lei 8.212/91 em sua obra ‘Crimes Previdenciários’ nos ensina de forma clara a diferenciação entre continuidade e descontinuidade normativa típica.
Assim descreve o conceituado jurista ‘ no que diz respeito especificamente às alíneas ‘d’, ‘e’ e ‘f’, que já retratavam figuras delituosas, não ocorreu nenhuma abolitio criminis porque todas as figuras típicas anteriores acham-se devidamente inseridas nos novos tipos penais. Não se deu como veremos, uma descontinuidade normativo-típica.”
E segue “com base no critério da continuidade (ou descontinuidade) normativo-típica, o emérito jurista citado chega ao ponto nevrálgico da questão ao responder com critério e razoabilidade a seguinte indagação: quando uma lei nova, mantendo uma aparente continuidade normativo-típica em relação ao direito anterior, é descriminalizadora? E quando não seria?
A resposta estampada nas p. 180 e ss. consiste no seguinte: tudo depende do seguinte: se a nova descrição agregou ou não algum dado novo.De outro lado, qual foi o dado típico novo agregado: se se trata de uma dado especial(uma nova característica, uma nova qualidade, que restrinja o âmbito de incidência do tipo anterior, mas nele não compreendida), a lei nova é descriminalizadora; se se trata de um dado meramente especificador (sem alteração do injusto), a lei nova não é, ao menos totalmente, descriminalizadora.”
Desta forma, a nova legislação não aboliu os crimes de porte de arma de fogo, apenas aperfeiçoou na nova lei aos aspectos ontológicos da norma, deixando de reproduzir conceitos que a doutrina e a jurisprudência já vinham entendendo serem inconstitucionais, desfazendo assim, as discussões que surgiram.
A lei 10.826/03 não agregou fato novo, apenas aperfeiçoou a legislação já existente mantendo em seu conteúdo as mesmas condutas típicas, não alterando o que era considerado injusto e ilícito na lei anterior.
Assim, entre a lei 10.826/03 e a lei 9.437/97 houve continuidade normativa, não havendo em se falar em abolitio criminis, porém, como o art. 30 da lei 10.826/03 concedeu um prazo de 180 dias para que os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas, a regularizem, até expirar o prazo não há, como prender ou acusar qualquer indivíduo pelo porte ilegal de arma de fogo.
Fiança e Liberdade Provisória
Com relação aos aspectos processuais algumas considerações deverão ser feitas. Os parágrafos únicos dos arts. 14 e 15, dispõem que os crimes dos mencionados artigos são inafiançáveis e o art. 21 dispõe que os crimes previstos nos arts. 16,17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória.
Em artigo anterior sobre a Lei de Lavagem de Capitais, já nos posicionamos no sentido da inconstitucionalidade da norma que proíbe a fiança nos crimes previstos na lei 9.613/98, não sendo permitido na estrutura normativa uma norma legislativa inferior restringir direitos e garantias prevista na Constituição Federal, a norma infraconstitucional não pode vedar o direito constitucional de liberdade quando garantido pela Constituição Federal, nem tão-pouco ampliar o rol dos crimes considerados inafiançáveis pelo Carta Política.
É regra fundamental de estruturação legislativa que as normas inferiores devem obrigatoriamente respeitar ou não ofender regras superiores, comentando o tema temos a lição de Alexandre de Moraes “a idéia de controle de constitucionalidade está ligada à Supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também, à de rigidez constitucional e proteção dos direitos fundamentais.
Em primeiro lugar, a existência de escalonamento normativo é pressuposto necessário para a supremacia constitucional, pois, ocupando a constituição a hierarquia do sistema normativo é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração legislativa e o seu conteúdo. Além disso, nas constituições rígidas se verifica a superioridade da norma magna em relação àquelas produzidas pelo Poder Legislativo, no exercício da função legiferante ordinária. Desta forma, nelas o fundamento do controle é o de que nenhum ato normativo que lógica e necessariamente dela decorra, pode modificá-la ou suprimi-la.”
Manoel Gonçalves Ferreira Filho define bem a supremacia da norma constitucional: “a constituição rígida é a lei suprema. É ela a base da ordem jurídica e a fonte de sua validade. Por isso, todas as leis a ela se subordinam e nenhuma pode contra ela dispor.
A supremacia da Constituição decorre de sua origem. Provém ela de um poder que institui a todos os outros e não é instituído por qualquer outro, de um poder que constitui os demais e é por isso denominado Poder Constituinte.”
O art. 5º, inciso XLIII, define quais os crimes que a lei considerará inafiançáveis, não prevendo em seu rol os crimes relacionados com o porte de arma de fogo, considerando-se que a regra jurídica-constitucional é a liberdade, sua restrição somente pode ser aceita através de lei que respeite normas constitucionais, desta monta, o porte ilegal de arma de fogo de uso permitido bem como o disparo de arma de fogo por cominarem pena mínima de dois anos de reclusão, são suscetíveis de fiança conforme determina contrario senso o art. 323 do Código de Processo Penal, sendo nulo qualquer dispositivo contrário.
Ao comentar o inciso II do “caput” do art. 2º da Lei 8.072/90, que veda a fiança e a liberdade provisória, Alexandre de Moraes se posiciona no sentido da inconstitucionalidade da vedação da fiança e da constitucionalidade da vedação da liberdade provisória “o legislador constitucional previu no art. 5º, XLIII, que a lei considerará crimes inafiançáveis a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecente e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. Ocorre, porém, que a lei 8.072/90 o legislador ordinário, além de vedar a fiança (o que deveria fazer por expressa manifestação no plano constitucional), considerou também inadmissível, nos crimes hediondos, de tortura, de tráfico de entorpecentes e drogas afins e terrorismo, a concessão da liberdade provisória.
Não nos parece padecer de inconstitucionalidade o referido dispositivo constitucional (sic), uma vez que o tratamento das hipóteses de liberdade provisória é meramente infraconstitucional, sendo, em regra, realizado pelo próprio Código de Processo Penal. Desta forma, nada impede que outra espécie normativa ordinária, de idêntica hierarquia ao Código de Processo Penal, possa prever algumas hipóteses proibitivas de concessão de liberdade provisória, como no presente caso ao tratar dos crimes hediondos e assemelhados.
Ressalta-se que a lei somente não poderia autorizar a concessão de fiança nas hipóteses em que, expressamente, o legislador constituinte vedou-as, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.”
A vedação de fiança, além de inconstitucional é totalmente inócua, tendo em vista o que dispõe o § único do art. 310 do CPP, poderá ser concedida Liberdade Provisória sem fiança sempre que não for caso de prisão preventiva, é esse o entendimento do Prof. Rodolfo Tigre Maia, ao comentar o art. 31 da lei 7.492/86- Crimes contra o Sistema Financeiro que veda também a fiança, ressaltando-se ainda que o legislador não considerou insuscetíveis de liberdade provisória os crimes previstos nos arts.14 e 15, o que fez expressamente em relação aos crimes dos art.s 16, 17 e 18, sendo assim, o que não é vedado é permitido, não sendo possível interpretações que prejudiquem ou restrinjam direitos dos acusados.
Mesmo que inafiançáveis os crimes relacionados com arma de fogo, é admitida a liberdade provisória se o Juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva; do contrário, haverá uma verdadeira antecipação da pena, o que é vetado pelo princípio da presunção de inocência.
Com relação aos crimes de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, comércio ilegal e tráfico internacional de arma de fogo ( art. 16, 17 e 18) as penas mínimas cominadas são superiores à dois anos, motivo pelo qual o legislador não vedou expressamente a fiança, por ser proibida nos termos do art. 323, I do CPP, porém, considerou esses crimes insuscetíveis de liberdade provisória, dispositivo também inconstitucional, por ferir a lei infraconstitucional, direito assegurado na Carta no art. 5º, LXVI.
Luis Flávio Gomes ao comentar a vedação da liberdade provisória na lei 9.613/98 com o acerto de sempre ensina “a proibição de concessão de liberdade provisória, prevista também o art. 3º, segue a mesma linha equivocada da proibição da fiança. É um erro lamentável tentar conter a criminalidade com corte de direitos e garantias fundamentais. E além disso, obviamente, inconstitucional, mesmo porque, ao proibir o texto legal a fiança e a liberdade provisória, acaba de pretender reintroduzir no nosso sistema a prisão compulsória, obrigatória, que desapareceu na década de sessenta com o regime militar.”
A lei não pode jamais restringir a liberdade do cidadão enquanto este não for definitivamente condenado, podendo apenas mantê-lo provisoriamente em cárcere se necessário para o bom andamento processual ou garantia da ordem pública, jamais como antecipação de pena, não estando presentes nenhum dos pressupostos da prisão cautelar é direito subjetivo do acusado sua liberdade, entendimento esse tranqüilo nos Tribunais Superiores.
Manter o acusado preso provisoriamente por vedação de lei infraconstitucional, não estando presentes nenhum dos pressupostos autorizadores da prisão preventiva, é uma das maiores afrontas contra a dignidade da pessoa humana, pois estará o Estado privando um ser humano do seu bem mais precioso que é sua liberdade, com base em meros indícios ou presunções, desrespeitando a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Constituição Federal que dispõem sobre a presunção de inocência, bem como a proibição da prisão quando a Carta Política prevê a possibilidade de liberdade.
Rodrigo de Moura Jacob é advogado, pós-graduado em Direito Mobiliário pela Universidade de São Paulo, sócio do escritório Nilson Jacob Advogados Associados.